O desfile do IV Centenário, no Anhangabaú, passou sob o Viaduto do Chá durante a tarde. |
Eu estava com três anos e meus pais me levaram na festa que teve lugar no Viaduto do Chá, à noite.
Uma multidão como eu nunca vira e as luzes poderosas, refletidas nos aviõezinhos de papel laminado que jorravam do alto dos edifícios, ficaram gravadas para sempre na minha memória.
E eu soube que vivia numa cidade chamada São Paulo. Que essa cidade fazia 400 anos. E que era muito mais imponente naquele local das festividades do que onde eu residia.
Fui captando melhor esse contraste à medida que crescia.
Morava na Mooca, bairro operário que gravitava em torno de um cotonifício gigantesco, o Crespi, tomando um quarteirão inteiro.
Além disso, havia muitas outras fabriquetas. E na Mooca moravam, principalmente, os operários dessas indústrias e os que nelas haviam trabalhado. Gente simples e austera.
Ao centro eu ia com minha mãe uma vez por mês, pois, naquele tempo, pagava-se o aluguel no escritório do locador.
Bom para mim, que via cenários diferentes e era premiado com uma guloseima do Café Moka, na Praça da Sé.
Exatos 30 anos depois, lá estava eu de novo no Anhangabaú, participando, eufórico, do ato público de lançamento da campanha das diretas-já |
Sentia-me achatado pelos arranha-céus e estranhava todos aqueles homens de terno passando apressados. Sentia-me num mundo diferente, de grandes lojas, vitrines enfeitadas e movimento incessante.
Aquilo me parecia o progresso, a modernidade, desvalorizando, aos meus olhos de menino, o bairro pobre do meu dia a dia.
O chamado centro histórico de São Paulo, entre as praças da Sé e da República, concentrava comércio, entretenimento e bancos, principalmente.
E a proximidade do Palácio do Governo, nos Campos Elísios, ajudava a manter essa região como a principal da cidade.
Mas, o palácio se foi para o Morumbi, em 1965.
O cotonifício Crespi parado e trabalhadores protestando na rua: assim se iniciava a histórica greve geral de 1917 |
Os ricaços, aos poucos, mudaram dos arredores. E, a partir da inauguração do Minhocão, em 1971, os Campos Elísios e seu entorno entraram em decadência acelerada.
O comércio moveleiro de alto padrão também migrou da rua das Palmeiras, que ficava ao lado.
Como na agonia do Império Romano, os bárbaros foram tomando os territórios ao redor do centro histórico, cujo brilho só perdurou por um tempinho mais.
A partir da inauguração do metrô, em 1974, o distrito da Sé se definiu como zona de passagem, atravessada por centenas de milhares de pessoas.
Seu comércio chique debandou e as lojas se adequaram ao perfil de uma clientela mais pobre e menos exigente.
Nas minhas sete décadas de vida, presenciei a fase derradeira do esplendor do centro histórico e acompanhei cada momento de sua degradação.
Mais ainda do que ao Caetano, alguma coisa acontecia no meu coração ao cruzar a Ipiranga com a avenida São João.
É difícil transmitir, aos que nela já nasceram, a diferença entre a vida antes e depois da sociedade de consumo. Algo assim como interagirmos antes com pessoas, mesmo que não as melhores possíveis, e depois com meros robôs (o homo economicus em sua plenitude...).
A Avenida Paulista é o cartão postal da São Paulo desumanizada que faz 469 anos... |
Mas, ao falar em aglomerada solidão, ele exagerou. Pois, a indiferença, a impessoalidade, a falta de calor humano iriam intensificar-se mesmo é nas décadas seguintes àquela na qual Tom Zé compôs sua São, São Paulo, meu amor, que lhe valeu a vitória, pelo júri popular, no IV Festival de MPB da TV Record (1968).
E a região da Avenida Paulista, atual cartão postal de São Paulo, não substitui o centro histórico de outrora num aspecto fundamental: expressa a sociedade motorizada, em que pedestres ficam espremidos e os automóveis reinam imponentes.
Os bancos e os escritórios de grandes empresas agora estão na Paulista, tramando e implementando a desumanização, como sempre.
Quanto ao comércio e ao entretenimento, foram confinados nos shopping centers.
...mas a cracolândia expressa bem melhor o que Sampa se tornou; uma velha dama indigna! |
Ao mesmo tempo, em tardia autocrítica, percebo que a existência mais aprazível para seres humanos nunca esteve no Centrão endinheirado, mas sim na Mooca que era humilde da minha infância, mas depois endinheirou-se e descaracterizou-se. O bairro onde comecei a vida já não tem mais vida que valha a pena ser vivida.
Da São Paulo que eu amei deve sobrar um tiquinho nos bairros distantes onde os vizinhos ainda se falam e conhecem, onde as crianças ainda brincam nas ruas e onde as pessoas ainda fazem parte de uma comunidade, não de um condomínio.
Pelo menos é no que eu quero acreditar, pois estou um pouco velho para sair em busca da cidade perdida.
E o pior de tudo é este pressentimento de que nem no mais longínquo bairro da periferia a encontrarei. (por Celso Lungaretti)
Nenhum comentário:
Postar um comentário