segunda-feira, 12 de setembro de 2022

BRASIL DA NECROPOLÍTICA VAI SE TORNANDO UMA APOTEÓSE DO HORROR

josias de souza
NO PAÍS DA INTOLERÂNCIA, MORTES CHEGAM
PONTUALMENTE NAS HORAS MAIS INCERTAS
Há ódio demais no noticiário. A campanha eleitoral cheira a enxofre. 

O Brasil passou a conviver com uma expectativa fúnebre: quem será o próximo cadáver? Não se sabe qual será a sua aparência, seu gênero, sua idade, sua raça ou quem o matará. Ele está andando por aí neste instante sem suspeitar que corre o risco de virar defunto e coadjuvante do noticiário político. 

É um fantasma esperando na fila para acontecer. Se tiver sorte, o próximo morto pode não morrer. Mas tudo parece conspirar a favor da sua condenação. 

Nas pegadas de um 7 de setembro em que Bolsonaro chamou seu principal rival de quadrilheiro de nove dedos, exortando a multidão a extirpar da conjuntura esse tipo de gente, um eleitor de Lula foi morto a facadas no Mato Grosso por um colega de trabalho devoto do bolsonarismo. Após esfaquear, o assassino confesso tentou decapitar a vítima a golpes de machado. 
Um delegado de polícia resumiu a tragédia: 
O que levou ao crime foi a opinião política divergente. A vítima estava defendendo o Lula, e o autor, defendendo o Bolsonaro.
No tempo em que ocupou o trono, Lula cultivou a política do nós contra eles. Bolsonaro deu concretude à metafórica guerra do bem contra o mal. Adicionou à retórica pólvora e gatilhos. O povo armado jamais será escravizado, costuma dizer, para justificar os decretos e portarias que editou para distribuir fuzis, pistolas e munição. 

O morto anterior, um tesoureiro petista de Foz do Iguaçu, foi passado nas armas por um bolsonarista que se abespinhou com a decoração petista de uma festa de aniversário. Antes de morrer, o cadáver do Paraná atirou contra o seu assassino, chutado e pisoteado pelos convidados da festa. 

Concebida como alternativa civilizatória às guerras, a política é subvertida ao redor do mundo. No Brasil, a atividade sempre teve suas facções, organizadas em partidos. O conflito era parte do jogo. Mas nenhuma facção tinha a pretensão de silenciar ou extirpar– adversários. Mesmo os políticos que não se respeitam sabiam que deveriam se enfrentar com respeito. 

Havia exceções desonrosas. Bolsonaro era uma delas. O capitão se fez na política cultivando o ódio. Na Câmara, defendeu o fuzilamento de FHC, lamentou que os índios brasileiros não tivessem sido massacrados como os estadunidenses, enalteceu torturadores, homenageou milicianos, disse que não estupraria uma deputada por falta de merecimento... 

O diabo é que a exceção ganhou musculatura política. Migrou do baixíssimo clero da Câmara para o Planalto. Prevaleceu numa campanha em que falou em fuzilar a petralhada e enviar opositores para a ponta da praia, onde a ditadura desovava os seus cadáveres. 

A emanação da morte vem do apodrecimento da atividade política. Nem o sórdido atentado que Bolsonaro sofreu em Juiz de Fora o fez retirar o ódio do seu pudim. 

Paradoxalmente, a facada de 2018 vem servindo de capital de giro para manter em funcionamento o empreendimento político que industrializa o ódio a partir da Presidência da República. 

Até outro dia, esse ódio vadiava pelas redes sociais. Agora, circula pelas ruas à procura de encrenca. Tratada como instrumento político banal, a raiva contamina a sociedade. 

Pesquisa nacional feita pela Quaest por encomenda de um grupo de estudiosos da Universidade de São Paulo indica que já não se pode criticar os líderes políticos e continuar tratando o eleitorado com punhos de renda. 

Descobriu-se que um em cada cinco eleitores considera muito justificado ou um pouco justificado o uso de violência se o adversário sair vitorioso nas urnas. Vale para os eleitores do capitão da direita e do coronel da esquerda. 

Quer dizer: a intolerância política deixou de ser mero discurso de político aloprado para se tornar um dado da realidade brasileira. Uma realidade que leva ao noticiário um novo cadáver num instante em que o defunto anterior ainda nem esfriou nas manchetes. 

A conjuntura parece sinalizar que o próximo morto está a caminho. Em Goiânia, dias atrás, um policial militar atirou na perna de um homem, dentro de uma congregação cristã. Alegou estar revoltado com a pregação do pastor, que desaconselhava o voto em vermelhos

Em São Gonçalo, no Rio, um apoiador de Lula esmurrou simpatizante de Bolsonaro que procurava confusão num comício petista. 

No momento, quem procura uma clareira de sensatez na campanha eleitoral tem dificuldades para encontrar. Ao comentar o sequestro do bicentenário da Independência pela campanha do seu rival, Lula achou que seria uma boa ideia desmerecer as multidões que Bolsonaro arrastou para seus comícios. 
O presidenciável petista soou assim: 
Foi uma coisa muito engraçada que o ato de Bolsonaro parecia uma reunião da Ku Klux Klan, Só faltou o capuz. Porque não tinha negro, não tinha pardo, não tinha pobre, não tinha trabalhador.
Posteriormente, um repórter ofereceu a Lula a oportunidade de se reposicionar em cena. Ele alegou que se referia ao palanque de Bolsonaro, não à plateia.
Em Copacabana, pela fotografia que eu vi, e eu só vi na televisão, era supremacia branca no palanque. Eu até comparei que parecia um pouco a Ku Klux Klan. 
Só faltou o capuz, só faltou a máscara. Porque era isso o palanque. É o palanque de uma elite, que tinha um cidadão vestido de Louro José, que era o artista principal da festa, ele pulava, ele gritava, ele animava, ele aplaudia
Lula parecia empenhado em piorar o soneto com sua emenda: 
Eu apenas comparei. Todo filme americano eu vejo isso... Eu vejo muita coisa que aconteceu na guerra racial, e eu vi aquele palanque e eu fiquei assustado. Não tinha povo. Tinha uma elite muito violenta no seu discurso. A começar pelo presidente da República.
Evocar um movimento supremacista surgido na Guerra Civil estadunidense contra um adversário que confunde eleição com conflito armado não parece uma boa ideia. Quem ouve à distância pode ter dificuldades para saber quem é quem. 

O Brasil ajusta-se à sua desgraça. Mas 2022 vai se transformando numa apoteose de horror. No país da intolerância, as mortes chegam pontualmente nas horas mais incertas. As pesquisas sinalizam um 2º turno convertido em gincana de rejeições. 

A fratura política tende a sobreviver às urnas. O brasileiro elegerá um vencedor, não um presidente capaz de reunificar a nação. (por Josias de Souza, no seu melhor artigo de muito tempo para cá)

Um comentário:

Anônimo disse...

https://revistaforum.com.br/politica/2022/9/12/atentado-bolsonarista-tenta-tirar-carro-de-dirigente-do-pt-da-pista-em-rodovia-de-sp-123119.html

https://revistaforum.com.br/blogs/2022/9/12/bolsonaro-golpe-supremo-dos-15-ministros-123104.html

https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/bolsonaro-planeja-pec-em-segundo-mandato-para-stf-ter-15-ministros

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