sexta-feira, 28 de maio de 2021

O CINEASTA QUE REINVENTOU OS FILMES DE ZUMBI TAMBÉM SACOU QUE GOVERNANTES EXTERMINARIAM SEUS POVOS EM EPIDEMIAS

Nos rebeldes anos 60, Gorge A. Romero (1940-2017) era jovem e antenado, então sabia identificar as tendências do seu tempo antes da maioria dos que com ele disputavam um lugar ao sol em Hollywood. 

Foi assim que colocou um ovo de Colombo em pé, ao perceber que os filmes de zumbi nos quais os ditos cujos eram frutos do vodu haitiano, que sempre haviam sido um filão secundário no gênero terror, estavam superados, mas havia outra possibilidade a ser explorada.

Assim, criou uma história diferente, na qual eram vazamentos radiativos e contaminação do solo que levavam os defuntos a sair de suas tumbas e assombrar multidões nas grandes cidades.

Com muita precariedade, usando sobras de celuloide virgem das fitas em preto-e-branco que haviam saído de moda e laçando atores improvisados entre seus colegas do curso de cinema, realizou em 1968 A noite dos mortos-vivos (assista-o aqui), gerando um dos filões mais rentáveis do cinema de entretenimento nas últimas décadas.

Seu quarto filme, O exército do extermínio (1973), também resultou de uma boa percepção do futuro próximo: a de que, face a uma epidemia devastadora, os governantes não vacilariam em exterminar parte dos seus governados. 

Ainda é um filme de baixo orçamento, porque A noite dos mortos-vivos foi mais um cult do que um estouro de bilheteria. A novidade só decolou mesmo quando imitadores foram seguindo as pegadas de Romero. Mas, apesar das limitações, ele novamente soube criar um thriller competente, além de propor um novo enfoque, bem mais amargo, sobre os poderosos.

Talvez haja sido exatamente este o motivo de não ter obtido maior receptividade: é que nos EUA de então predominava a chamada
maioria silenciosa, para a qual ainda não tinha caído a ficha de que o sistema estava podre até o âmago e dos mandatários quase sempre se deveria esperar o pior. 

Quem já tinha visão corrosiva dos poderosos, pessoas sofisticadas de Nova York, San Francisco e mais uma ou outra cidade onde a contracultura vicejava, eram exceções, não a regra.  

Enfim, Romero de certa forma anteviu que genocidas malucos como Bolsonaro matariam o próprio povo durante uma grande epidemia, abatendo seres humanos como moscas. Aliás, o próprio título original do filme parece, mas não é, uma alusão ao Bozo: The crazies (os loucos).

E os que dão ordem de extermínio são desalmados mas não assassinos seriais: pretendem salvar a maioria sacrificando uma minoria com aquela matança, cujo objetivo é tentar impedir que a epidemia rompa as barreiras de isolamento e se propague por todo o país.

Já nosso genocida só queria mesmo é salvar sua candidatura presidencial, ao apostar em que drogas milagrosas e imunização de rebanho tornariam desnecessárias medidas prejudiciais às atividades econômicas, como os lockdowns

Fez sua aposta insensata e insensível usando-nos como fichas, perdeu até as calças, matou coitadezas a torto e direito; merece, como consequência, ser punido não só com a perda do mandato e dos direitos políticos, mas também com a da liberdade. E ainda será pouco! (por Celso Lungaretti)

2 comentários:

SF disse...

Em 28 de maio de 1871 tinha fim a Comuna de Paris... que era um Conselho, leia-se soviete, com 71 delegados.
Dizem que foi Thiers quem acabou com a comuna, nada disso, foi a mania de acatar deliberações de conselhos como coisas normativas e (por que não me espanto?) punitivas.
Os comunas mataram umas mil pessoas (cem executadas e 900 nas escaramuças) e o governo oficial de Thiers matou 20 mil partidários da comuna e quem passou na frente.
Parece que o governo mais assassino é o que ganha a governança.

Mas, o que tem a ver o sonho comunitário com os mortos-vivos?

Celso, posso estar errado, mas o "morto-vivo" dos filmes é uma metáfora do homem governado.
Não há como superar a definição de Pierre-Joseph Proudhon e todos sentem, mesmo sem serem teóricos, que quem vive sujeito a um governo é um robô, um ente público, um morto-vivo.
Daí o grande sucesso desse tipo de filme.
***

celsolungaretti disse...

Prezado,

o homem moderno parece ter um forte sentimento inconsciente de culpa, que desde a década de 1950 é sublimado por filmes nos quais ameaças colossais surgem para destrui-lo, mas são erradicadas no final.

Antes era o horror da destruição atômica de Hiroshima e Nagasaki que continuava reverberando, pois os dinossauros ressurgiam ou animais atuais assumiam proporções gigantescas invariavelmente após explosões nucleares.

Tal sinistrose atingiu o ápice após a crise dos mísseis cubanos em 1962, quando a paranoia era tanta que muita gente improvisava abrigos nucleares nas próprias residências, abastecendo-os com o necessário para ficar enfurnada até que a onda radiativa se dissipasse.

Já "O Exército do Extermínio" expressa um momento mais recente, em que os perigos maiores que nos rondan se corporificam em zumbis e epidemias, principalmente (poderia acrescentar um terceiro, os assassinos seriais, mais aí o foco deste comentário se abriria demais, melhor deixá-los para outra ocasião...).

Romero foi precursor das duas tendências. Que sensibilidade aguçada!

Não tenho clareza sobre qual seria, afinal, o motivo oculto dessa fixação atual em apocalipses zumbis. Enfim, obviamente a criatura é o próprio símbolo da morte, já que ela própria não passa de um defunto.

De certa forma, parece que a humanidade tem receio de que o tipo de vida que está levando, sem ideais nem solidariedade, com cada indivíduo querendo tudo para si e se lixando para os que já sofrem e para os que virão depois (quando o sofrimento tende a ser maior ainda), merece ser punido com a morte; sobreviver aos zumbis poderia representar, então, uma esperança de escapar da punição.

Não vou mais longe nestas conjeturas para que os leitores não sintam-se tentados a me chamar de "Dr. Fraude"...

Contudo, temores inverossímeis tão disseminados costumam ser símbolos de ameaças bem mais reais. Se o Dr. Freud estivesse vivo, certamente teria algo a dizer a este respeito.

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