QUANDO MACRON MANCHA A IMAGEM DA FRANÇA
Sem uma discreta ajuda da França em 1969, criando-me a possibilidade de sair do Brasil durante a ditadura militar, sabe-se lá que rumos teria tomado minha vida.
Sou obrigado aqui a utilizar a primeira pessoa, para comentar uma decisão vergonhosa do atual presidente francês, Emmanuel Macron, atravessada em minha garganta, que não consigo aceitar.
E creio, caso fosse preciso, que poderia pedir o testemunho de tantos outros brasileiros acolhidos generosamente pela França durante o regime militar brasileiro. Uns mais, outros menos, porém todos envolvidos na resistência à ditadura.
E isso incluía concessões de asilo e bolsas de estudo, bem como autorizações de permanência ou residência na França. Essa política de acolha sempre foi lá aplicada, tanto por governos de direita, como de centro e de esquerda.
Entretanto, aqui é preciso incluir um parêntese importante: no caso do Brasil (e deve ter sido o mesmo com outros países), a generosidade francesa não significava apoio.
A França oficial, logo depois do golpe de 64, época do presidente Pompidou, aceitou o governo militar brasileiro, tanto que o próprio De Gaulle foi ao Brasil em outubro daquele ano. Havia colaboração da polícia francesa com a brasileira, troca de informações e consta que a experiência militar francesa de repressão na Argélia foi transmitida aos brasileiros.
Brasileiros suspeitos ficavam sob vigilância e, no caso de retornarem ao Brasil, eram colhidos pelo DOI-Codi, como aconteceu com o jornalista Luiz Eduardo Merlino, ex-Jornal da Tarde e Folha da Tarde, preso na casa de sua mãe, em Santos, levado para a rua Tutóia, onde foi selvagemente torturado e assassinado.
O chefe dos torturadores Brilhante Ustra (elogiado por Bolsonaro na votação do impeachment de Dilma) foi reconhecido culpado e condenado a pagar uma indenização aos pais de Merlino.
Porém, isso não impedia ser Paris, com suas universidades e seus escritores e sociólogos de esquerda, a preferência dos estudantes e intelectuais brasileiros depois da decretação do AI-5. Paris era e continuou sendo, durante décadas, o centro da resistência ao colonialismo e a todos os tipos de fascismo e de denúncia às transformações do capitalismo.
Em 1981, foi eleito presidente o socialista François Mitterrand. Era uma época em que eclodiram, na Europa, diversos movimentos armados de extrema-esquerda ou anarquistas contra o capitalismo e contra o chamado sistema social opressivo. Mitterrand poderia ter decidido negar conceder o asilo aos militantes violentos em fuga, porém preferiu inovar.
Mitterrand propôs aos postulantes uma troca: a França daria a proteção do asilo aos militantes definidos como terroristas, se assumissem o compromisso de deixarem a luta armada e se reconvertessem em cidadãos pacíficos, integrados na sociedade francesa.
Imprensa italiana prefere divulgar estas imagens de outrora... |
Neste resumo, feito para simplificar o entendimento da doutrina Mitterrand, está faltando mencionar que, na Itália, desde os anos 70, havia atentados e ações violentas cometidos pela extrema-direita, numa proporção bem maior, calculada pela imprensa francesa, de 70% sobre o total.
Porém, existia uma diferença de tratamento: os governos italianos de direita sempre preferiam perseguir sem trégua os participantes de movimentos de extrema-esquerda, mesmo depois de terem se refugiado na França, onde haviam se integrado pacificamente, trabalhando, constituindo família com filhos e netos franceses.
Na época de Mitterrand, os mandatos presidenciais eram de sete anos, como ele foi reeleito governou de 1981 a 1995. Nesse período, a Itália tentou obter a expulsão pela França dos acusados de crimes de sangue. Mitterrrand aceitava, em princípio, essa exceção, desde que houvesse prova.
Porém, o método dos processos italianos, praticado sem o respeito das normas jurídicas, condenado pela Anistia Internacional, entidades internacionais e pela própria França, não era considerado válido pelo presidente francês.
Assim, a doutrina Mitterrand vigorou sem problema até 2002, quando a Itália, com base numa denúncia de um arrependido pediu a extradição de Paolo Persichetti, concedida por Jacques Chirac. Em 2004, a Itália pediu a extradição de Cesare Battisti, que escapou para o Brasil, onde ficou até fins de 2018, quando o presidente Michel Temer assinou sua extradição para a Itália.
...pois as recentes não seriam apropriadas para seu objetivo de os satanizar. |
Os pedidos de extradição prometidos por Matteo Salvini foram cumpridos por sua sucessora, a atual ministra do Interior, Luciana Lamorgese. Tão logo recebeu esses pedidos, o presidente Emmanuel Macron autorizou a prisão, dia 28, de dez italianos com 63 a 77 anos de idade, refugiados há 40 anos na França, já avós, quase todos aposentados, alguns com problemas de saúde, para que a Justiça francesa decida, nos próximos dias, sua extradição para a Itália, onde cumprirão prisão perpétua.
Três dos idosos, antigos militantes da extrema-esquerda, integrados na vida francesa, escaparam da prisão por estarem ausentes no momento da chegada dos policiais, e estão agora foragidos. Foi novamente presa a professora Marina Petrella, cuja extradição tinha sido negada em 2008 pelo presidente francês Nicolas Sarkozy. Hoje com 63 anos, ela trabalha ou trabalhava como assistente social perto de Paris.
Emmanuel Macron, que será candidato à reeleição no próximo ano, ao destruir a doutrina Mitterrand, quis melhorar suas relações com a Itália e, ao mesmo tempo, retirar de Marine Le Pen, candidata da extrema-direita francesa que é tida como favorita, um de seus argumentos.
Porém, sua vergonhosa e desumana decisão contra idosos acabou com a legendária imagem da França de país acolhedor humanitário e, pior, mostrou uma França incapaz de honrar sua palavra. Hoje Macron manda prender dez, quantos autorizará extraditar amanhã?
O troféu principal dessa temporada de caça a idosos inofensivos, lançada por Silvio Berlusconi, foi Battisti |
Ao romper de maneira irresponsável uma doutrina já incorporada há mais de 40 anos na política francesa de asilo, Macron coloca em dúvida a validade todos os processos de anistia, de acolhida, de perdão celebrados pela França e instaura a insegurança, principalmente diante da possibilidade de uma vitória de Marine Le Pen no próximo ano, oferecendo um importante precedente para a anulação dos asilos concedidos até hoje a refugiados. (por Rui Martins)
TOQUE DO EDITOR – É admirável o nosso bom Rui Martins, já octogenário, ter conservado essa capacidade de indignar-se quando das constantes comprovações da canalhice dos governantes que rezam no altar do capitalismo agônico e putrefato!
Como é só isto que deles espero, tais infâmias já nem me revoltam sobremaneira; repugnam-me muito mais os atos daqueles que tinham a obrigação política e moral de manter outra postura. Considero, p. ex., Evo Morales um verme, por haver colaborado com a vendetta italiana contra Cesare Battisti, embora posasse de socialista.
E Emmanuel Macron, traiu mesmo os valores civilizados? Sem dúvida! Mas, Jacques Chirac já o fizera em 2004, ao passar por cima da solene promessa de Mitterrand e comprometer-se a entregar à Itália o Cesare, assim agindo, explicou-me o companheiro, em troca da adesão italiana a um grande projeto de interligação ferroviária entre os dois países.
O farsante Morales tem afinidade é com René Barrientos, que autorizou os EUA a caçarem o Che na Bolívia |
Naquela ocasião, com sua habitual duplicidade, enquanto removia obstáculos legais à extradição do Cesare, a França, por meio do seu serviço secreto, tratou de propiciar sua fuga para o Brasil, inclusive fornecendo-lhe um passaporte italiano (!).
Embora não tenha nenhuma esperança de, a partir daqui, contribuir para evitar essa nova ignomínia, eu reitero os posicionamentos que mantive como um dos dirigentes e na condição de porta-voz informal do Comitê de Solidariedade a Cesare Battisti no período 2008/2011:
— os grandes atentados terroristas dos anos de chumbo italianos, com centenas de vítimas atingidas a esmo, foram iniciados e seguidamente perpetrados pela extrema-direita (vide aqui), mas as grandes perseguições a ativistas incidiram sobre os autores de excessos praticados de forma quase artesanal e alvos individualizados, pelos de esquerda, prolongando-se até hoje. Nunca houve imparcialidade do Estado italiano, que puniu de forma da forma mais branda possível os primeiros e encarniçou-se desmedidamente contra os segundos;
— anistia para os envolvidos em conflitos generalizados como os daquele período na Itália e prescrição de suas penas após algumas décadas são valores fundamentais da civilização, cujo ignóbil atropelamento nos devolve às cavernas;
— idem, o encarceramento de anciãos que já sofrem terrivelmente com os achaques da idade e deveriam ser poupados, por motivos de ordem humanitária, de acertos de contas extemporâneos e transbordantes de rancor político. (por Celso Lungaretti)
Um comentário:
Texto primoroso de Rui Martins.
Deslinda com precisão e sobriedade um tema histórico e complexo.
Como leitor, deixo meus agradecimentos.
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