Manda uma ordem-do-dia do ministro da Defesa recém-empossado para uma permanência mínima no cargo, pois o governo ao qual serve agoniza, que seja hoje (31) comemorado o aniversário da virada de mesa institucional responsável por 21 anos perdidos e por um festival de horrores que até hoje envergonha os brasileiros civilizados.
O blog terá prazer em dar sua colaboração, recapitulando-a para os contemporâneos da infâmia e apresentando para as novas gerações o que foi a usurpação de poder verdadeiramente consumada no dia da mentira de 1964 e não na véspera (vide aqui), bem como a nada branda ditadura dela resultante, ainda hoje reverenciada por seus carrascos impunes, incensada por suas patéticas viúvas e louvada pelos cuervos que o totalitarismo criou.
Como frisou a bela canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, caberia a nós, sobreviventes do pesadelo, o papel de sentinelas do corpo e do sacrifício dos nossos irmãos que já se foram, assegurando-nos de que a memória não morresse – mas, pelo contrário, servisse de vacina contra novos surtos da infestação virulenta do despotismo.
Infelizmente, não estivemos nos últimos anos à altura de nossa missão, daí a catástrofe que se abateu sobre o Brasil, com um herdeiro espiritual do pesadelo anterior produzindo o maior morticínio gratuito da nossa dolorosa História (pouco importa se o chamarmos de genocídio ou de crime contra a humanidade, as discussões semânticas são um escárnio num momento destes!).
Mais de 100 mil conterrâneos já morreram de óbitos que poderiam ter sido evitados se o gerenciamento da pior crise sanitária de nossa História não estivesse entregue a um insano negacionista, sabotador dos esforços para a salvação de vidas.
E é incerto o número de mortes escamoteadas das estatísticas oficiais, a ponto de já terem sido desmascaradas tramoias para o ocultamento de cadáveres sob os tapetes burocráticos (quem nos garante que outras tramoias do mesmo tipo não tenham escapado à vigilância dos cidadãos decentes?).
Nessa efeméride negativa, o primeiro ponto a se destacar é que a quartelada de 1964 foi o coroamento de uma longa série de articulações e tentativas golpistas, nada tendo de espontânea nem sendo decorrente de situações conjunturais; estas foram apenas pretextos, não causa.
Há controvérsias sobre se a articulação da UDN com setores das Forças Armadas para derrubar o presidente Getúlio em 1954 desembocaria numa ditadura, caso o suicídio e a carta de Vargas não tivessem virado o jogo. Mas, é incontestável que a ultradireita vinha há muito tempo tentando usurpar o poder.
Em novembro/1955, uma conspiração de políticos udenistas e militares extremistas tentou contestar o triunfo eleitoral de Juscelino Kubitscheck, mas foi derrotada graças, principalmente, à posição legalista que Teixeira Lott, o ministro da Guerra, assumiu. Um dos golpistas presos: o então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, que viria a ser o formulador da doutrina de Segurança Nacional e eminência parda do ditador Geisel.
Em novembro/1955, uma conspiração de políticos udenistas e militares extremistas tentou contestar o triunfo eleitoral de Juscelino Kubitscheck, mas foi derrotada graças, principalmente, à posição legalista que Teixeira Lott, o ministro da Guerra, assumiu. Um dos golpistas presos: o então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, que viria a ser o formulador da doutrina de Segurança Nacional e eminência parda do ditador Geisel.
Em fevereiro de 1956, duas semanas após a posse de JK, os militares já se insubordinavam contra o governo constitucional, na revolta de Jacareacanga.
Os oficiais da FAB repetiram a dose em outubro de 1959, com a também fracassada revolta de Aragarças.
E, em agosto de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, as Forças Armadas vetaram a posse do vice-presidente João Goulart e iniciaram, juntamente com os conspiradores civis, a constituição de um governo ilegítimo.
Mas, refugaram diante da resistência do governador Leonel Brizola (RS) e do apoio por ele recebido do comandante do III Exército, gerando a ameaça de uma guerra civil.
O líder estudantil Vladimir Palmeira discursando na histórica passeata dos 100 mil |
Derrubou-se um governo democraticamente constituído, fechou-se o Congresso Nacional, cassaram-se mandatos legítimos, extinguiram-se entidades da sociedade civil, prenderam-se e barbarizaram-se cidadãos.
A esquerda só voltou para valer às ruas em 1968, mas as manifestações de massa foram respondidas com o uso cada vez mais brutal da força, por parte de instâncias da ditadura e dos efetivos paramilitares que atuavam sem freios de nenhuma espécie, promovendo atentados e intimidações.
Até que, com a edição do dantesco AI-5 (que fez do Legislativo e do Judiciário Poderes-fantoches do Executivo, suprimindo os mais elementares direitos dos cidadãos), em dezembro de 1968, a resistência pacífica se tornou inviável.
Licença para matar: o golpe dentro do golpe desembestou de vez o terrorismo de Estado |
As organizações guerrilheiras conseguiram surpreender a ditadura no 1º semestre de 1969, mas já no 2º semestre as Forças Armadas começaram a levar vantagem no plano militar, introduzindo novos métodos repressivos e maximizando a prática da tortura, a partir de lições recebidas de oficiais estadunidenses.
Em 1970 os militares assumiram a dianteira também no plano político, aproveitando o boom econômico e a euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol, que lhes trouxeram o apoio momentâneo da classe média.
Nos anos seguintes, com a guerrilha nos estertores, as Forças Armadas partiram para o extermínio premeditado dos militantes, que, mesmo quando capturados com vida, eram friamente executados.
A Casa da Morte de Petrópolis (RJ) e o assassinato sistemático dos combatentes do Araguaia estão entre as páginas mais vergonhosas da História brasileira – daí a obstinação dos carrascos envergonhados em darem sumiço nos restos mortais de suas vítimas, acrescentando às chacinas a ocultação de cadáveres.
O milagre brasileiro, fruto da reorganização econômica empreendida pelos ministros Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, bem como de uma enxurrada de investimentos estadunidenses em 1970, teve vida curta e em 1974 a maré já virou, ficando muitas contas para as gerações seguintes pagarem.
Pelo menos 20 mil brasileiros foram torturados por motivos políticos durante a ditadura militar |
Corrupção, havia tanta quanto agora, mas a imprensa era impedida de noticiar o que acontecia, p. ex., nos projetos faraônicos como a Transamazônica, Ferrovia do Aço, Itaipu e Paulipetro (muitos dos quais malograram).
A arrogância e impunidade com que agiam as forças de segurança causou muitas vítimas inocentes, como o motorista baleado em 1969 apenas por estar passando em alta velocidade diante de um quartel, na madrugada paulistana (o comandante da unidade ainda elogiou o recruta assassino, por ter cumprido fielmente ordens homicidas!).
Longe de garantirem a segurança da população, os integrantes dos efetivos policiais chegavam até a acumpliciar-se com traficantes, executando seus rivais a pretexto de justiçar bandidos (os chamados Esquadrões da Morte).
O último ditador militar deixou o poder com a economia estagnada, impopularidade crescente e querendo ser esquecido. O ministro Braga Netto prefere celebrar os fiascos |
Daí terem resistido encarniçadamente à disposição do ditador Geisel, de desmontar essa engrenagem de terrorismo de Estado, no momento em que ela se tornou desnecessária.
Mataram pessoas inofensivas como Vladimir Herzog, promoveram atentados contra pessoas e instituições (inclusive o do Riocentro, que, se não tivesse falhado, provocaria um morticínio em larga escala) e chegaram a conspirar contra o próprio Geisel, que foi obrigado a destituir sucessivamente o comandante do II Exército e o ministro do Exército.
Foi responsável pela morte dos 434 opositores relacionados pela Comissão Nacional da Verdade, pela prisão arbitrária de uns 50 mil brasileiros e pela tortura de, no mínimo, 20 mil cidadãos, afora ocorrências praticamente impossíveis de quantificar, como os abusos sexuais.
[Há quem sustente consistentemente que outros 600 camponeses, sindicalistas, líderes rurais e religiosos, padres, advogados e ambientalistas tenham sido assassinados por motivos políticos nos grotões do país entre 1961 e 1988.
É esta efeméride sinistra que sua ordem do dia manda ser comemorada nos quartéis, senhor general?
Isto me indigna tanto, como participante e vítimas desses acontecimentos –até hoje lesionado e até hoje inconformado com a morte de duas dezenas de estimados companheiros que entregaram a vida em nome da dignidade nacional!–, que evitarei dar-lhe uma resposta ditada por minhas emoções.
[Correria o risco de fornecer pretexto para uma intimidação como as muitas que têm sido perpetradas contra blogueiros e articulistas, lastreadas em lei que não passa de um repulsivo entulho autoritário.]
Então, prefiro encerrar parafraseando a Bíblia (Lucas 23.34), na esperança de que ela não tenha entrado no índex destes tempos hediondos: Pai, perdoai-o, pois ele não sabe o que faz!
(por Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ex-preso político – a foto ao lado foi tirada no DOI-Codi/RJ em 1970, ainda na fase das torturas, durante os 75 dias de incomunicabilidade)
"Revejo nesta hora tudo que ocorreu/ Memória não morrerá"
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