domingo, 21 de março de 2021

ÀS FAVAS COM A ECONOMIA! (parte 1)

A crise do coronavírus expôs algo que passava despercebido pelos desavisados: a incapacidade de a economia fundada na forma-valor resolver problemas sociais relativos à sustentação social fora de sua lógica oportunista da necessidade de consumo.

A mercadoria é algo que tem dupla personalidade:
 — uma concreta, o objeto ou serviço sensível ou visualmente existente, com valor de uso
— e a outra abstrata, o valor de troca

É aí que está contida a sua negatividade intrínseca, apesar de parecer aos olhos dos leigos como inofensiva.

A dita cuja usa o valor de uso para viabilizar o segregacionista valor de troca, meramente abstrato; uma descoberta que foi capaz de manter o execrável regime de escravidão milenar de uns sobre outros (o homem é o lobo do homem, já dizia Plauto dois séculos antes de Cristo) de modo mais sutil na chamada modernidade, e desenvolver os mecanismos jurídico-políticos de manutenção de uma ordem social que lhe é coincidente.  

Como tudo que é sólido desmancha no ar (Marx), eis que bastou um microscópico vírus causador de uma tragédia sanitária mundial para que entendêssemos quão utilitária, oportunista, insensível e, enfim, inviável no longo prazo é a lógica da economia sob a égide do capital. 

Diz a regra econômica
: há que se manter as finanças públicas dentro da capacidade orçamentária estatal sob pena de se explodir a dívida pública e inviabilizar as relações mercantis, o próprio Estado e até a  vida das pessoas. 

Diz a vida social natural: o mais importante são as vidas das pessoas, portanto apropriemo-nos, para garantir a sobrevivência, de tudo que estiver ao alcance de nossas mãos, e que se dane o Estado (tido enganosamente como nosso protetor, mas que não passa de nosso opressor)! 

Diz a regra econômica: mesmo com a pandemia virótica assassina, é necessária a circulação de mercadorias e de pessoas para que a economia se mantenha viva e, com ela, a vida social mercantil.

Diz a vida social natural: a prioridade, diante da propagação do vírus e das mortes por ele causada em percentagem e de letalidade cada vez mais acentuadas, é que nos mantenhamos reclusos, e que adotemos estratégias lógicas e humanas de sobrevivência no isolamento. 

Diz a regra econômica: a lei da oferta e da procura (pretensamente reguladora das relações de mercado com sua mão invisível) está elevando os preços das vacinas e medicamentos atenuantes a patamares insuportáveis, portanto o governo deveria intervir para inibir os abusos.

Diz a vida social natural: que se danem os lucros dos laboratórios, com os meios de produção de medicamentos (fábricas dos laboratórios de produção dos insumos das vacinas e seus envasamentos e equipamentos de aplicação) passando a produzir para distribuição gratuita os itens socialmente imprescindíveis para a sobrevivência da população economicamente exaurida!
O bezerro de ouro foi atualizado: ele agora exige sacrifícios humanos!
[Vale acrescentar: em cada vacina não há um grama sequer de dinheiro, sendo desumano e imoral reduzi-las a meras mercadorias como quaisquer outras que servem para escravizar a parte majoritária da população e proporcionar vantagens econômicas ao capital.]

São apenas alguns exemplos, muitos outros poderiam ser acrescentados.

A incompatibilidade entre a vida das pessoas e a dinâmica social da economia no atual estágio do desenvolvimento da forma-mercadoria explicita todas as contradições previstas por Karl Marx, queiram ou não os seus detratores. Já não podemos permanecer engessados numa camisa de força, conformados em viver sob um regime social que nega a própria vida! 

Isto não significa que devamos cometer todos os erros dos ditos marxistas tradicionais, que se fixam na parte menos científica da obra de Karl Marx, ignorando (por desconhecimento ou oportunismo) a parte verdadeiramente científica. 
Afinal, até por ser adepto do materialismo dialético, ele não era nem queria ser um teórico infalível, que estivesse imune aos erros. Mas, os acertos analíticos e prognósticos resultantes da profundidade dos seus estudos são evidentes para quem mergulha na sua obra sem os costumeiros preconceitos. 

A indústria cultural tanto martelou na cabeça de seus públicos que o rótulo de comunista passou a ser tido como tão negativo quanto o de terrorista islâmico, p. ex. Mal sabem os mesmerizados por essa lavagem cerebral que o comunismo era, para Marx, um objetivo a ser atingido adiante (até agora não o foi em nenhum país), assim como muitos cristão acreditam que uma segunda vinda de Cristo concretizará o Paraíso na Terra. 

Nem mesmo marxista tradicional Marx se considerava, e foi o ele mesmo quem o afirmou.

Muitos supõem que Lula seja comunista, por desconhecerem que não passa de um socialdemocrata que, por ignorância, atribui aos comunistas tradicionais (a quem detrata constantemente e expulsou do PT) os horrores de Stalin e Mao, sem saber que as teses marxianas da crítica do valor estão na contramão de tais marxistas
[E também são visceralmente contrárias ao capitalismo que Lula defende, como ex-
sindicalista de resultados que ele é: deseja que os trabalhadores continuem escravos do salário e dependentes de proteção (do sindicato e do partido), nem sequer cogitando sua própria superação enquanto tal.] 

O destino e desgaste de nacionalistas conservadores, de liberais ortodoxos, de sociaisdemocratas que querem humanizar o capitalismo e de marxistas tradicionais estatizantes é irem juntos para a lata de lixo da História juntamente com todas as categorias capitalistas que preservaram e querem preservar. (por Dalton Rosado)
(continua neste post)

2 comentários:

SF disse...

Dalton,
Espera-se de grandes inteligências o deslinde das obscuridades dos sistemas, que alertem sobre as cláusulas draconianas presentes nos contratos e mostrem como iluminá-las e elidi-las para o bem dos que são por elas atingidos, direta e indiretamente.
É sob essa ótica que enxergo seu trabalho de educador e teórico marxista, ao qual tributo o respeito e a atenção de quem quer apreender a essência de tais ensinamentos, tão generosamente repassados por seu coração amoroso.
Sua precisão em descrever a relação social escravista, mediada pelo dinheiro fiat, é de uma simplicidade e precisão brilhantes.
Eu nunca poderia fazer algo nem sequer parecido, mas se assim pudesse, o faria tal e qual você tem feito.
Obviamente posso estar errado, porém, não me parece que o modelo de sociedade descrito por Marx e a previsão da ação dos agentes econômicos possibilitadas por ele estejam sendo acertadas, no momento.
Algo não considerado por Marx mudou.
Os senhores do mundo agora são outros.
Observo que, no texto "SOBRE O ENTRECHOQUE DE MODELOS SOCIAIS EM MUTAÇÃO", você reduziu a a ação desses novos senhores do mundo a mera especulação com bitcoin e alertou sobre a existência de uma bolha de ativos referente a paridade deste com a moeda fiat.
Pois bem, Dalton, no dia 16/03/2021 os (já destronados) senhores dos estados nações capitalistas mais importantes (G-20) batiam cabeça em como taxar a nova economia digital*.
Debalde.
O que eles não querem admitir é que agora são as presas. Agora eles é quem pagam tributos.
O protocolo blockchain e a inteligência artificial estão além das suas obsoletas ferramentas de dominação, a saber: violência institucional e arrecadação de impostos.
Essa é a visão tragicômica até onde meus escassos recursos de conhecimento e inteligência conseguiram chegar.
É bem claro que mentes mais bem preparadas e abertas, como a sua e a do Celso, serão capazes de aclarar e definir cenários futuros pós-debacle dos zumbificados e falsos senhores do mundo.

*https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/03/16/g20-discute-tributacao-de-economia-digital-enquanto-brasil-engatinha.htm


celsolungaretti disse...

Caro SF,

só o debate crítico e pluralidade de opiniões pode formar uma consciência capaz de produzir uma síntese transformadora dos rumos sociais tão atingidos negativamente pela mediação social da forma-sujeito da mercadoria. Portanto, agradeço os elogios com humildade, esperando ser apenas um contributivo pensador neste sentido.

O poder econômico é o verdadeiro poder social da atualidade, mas precisa de organismos estatais que produzam o controle monetário sem o qual as relações de mercado se inviabilizam. Há uma interação de interesses econômicos que subjugam subalternamente a política. O Estado e os políticos são meros servos desse poder, o que não os impossibilita de vez por outra tentar ter soberania de mando, o que causa um entrechoque entre segmentos num mesmo campo. A disputa de poder político é o que provoca o entrechoque interno no segmento estatal, com diferenciações de visões.

A China, por exemplo, que depois da revolução maoísta teve no poder político forte e fechado, dono dos meios de produção e com preponderância sobre a economia, ao preservar todas as categorias capitalistas intactas, com a pretensão de exercer sobre elas uma soberania de vontade, terminou por desenvolver a economia capitalista baseada na miséria salarial de seu povo e desenvolvimento tecnológico aplicado à produção de mercadorias de tal forma que, hoje, são os interesses econômicos capitalistas que pautam o comportamento político-econômico dos dirigentes do partido comunista chinês, vez que a lógica da dinâmica do capital tem regras leoninas que não podem ser descumpridas sob pena de falência do próprio sistema de mediação social por ele adotado. Dito de outro modo, os dirigentes políticos chineses cumprem a agenda econômica internacional em razão de sua inserção no mercado mundial, daí as constantes fricções entre o desejado e o possível.

O capital continua sendo o senhor do mundo, mas, agora, sem a substância de moedas representativas do valor emitidas sem lastro, e as moedas digitais que representam as moedas oficiais, nada mais são do que uma forma artificial de especulação monetária; sonegação de impostos e supressão das draconianas taxas bancárias de prestação de serviços bancários. Há, neste campo, uma contradição interna entre o Estado emissor, o sistema bancário tradicional e as moedas eletrônicas, além do surgimento de banco de prestação de serviços de pagamento e transferências que amaçam o sistema financeiro internacional bancário que num futuro próximo entrará em colapso tão logo se evidencie a insustentabilidade da dívida pública por ele intermediada. Tal fenômeno representa mais uma contradição capitalista como tantas outras num mesmo campo, e que agora atingem o estágio colapso iminente.

A verdade é que o capitalismo, tal qual um grande Titanic em naufrágio, faz água por todos os lados, e tende a se inviabilizar num futuro próximo, cuja cronologia não deve ser comparada ao ciclo de vida humana; pode e deve ter outra dimensão. Neste momento, irão para o ar junto com o capital toda a entourage de mecanismos e instituições que se formaram ao seu derredor negativo.

Um abração e grato pelos comentários sempre proporcionadores do debate. (Dalton Rosado)

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