quinta-feira, 14 de maio de 2020

ESTAMOS SOFRENDO AS DORES DO PARTO DE UMA NOVA FORMA DE RELAÇÃO SOCIAL/1

dalton rosado
A CRISE DAS CATEGORIAS CAPITALISTAS
Não há força revolucionária maior do que a irreversível marcha do capitalismo rumo à sua autodestruição. 

O que está na base desse processo é a contradição da ilogia de uma forma de relação social que cria os seus próprios mecanismos de disfunção social e, com isto, a impossibilidade de permanecer como tal.

A crise sanitária está acentuando a crise econômica e expondo ainda mais a inviabilidade das categorias capitalistas permanecerem como instrumento viável de mediação social equilibrada e sustentável. A célebre frase de Karl Max, segundo a qual o capitalismo gera o seu próprio coveiro, nunca foi tão atual. 

Não estamos diante de uma crise política apenas, posto que esta é uma decorrência hipossuficiente do sistema a que serve; estamos diante de uma crise categorial, econômica, endógena, causada pela disfunção de seus elementos constitutivos. 

É justamente isto que está a deixar perplexos os seus beneficiários econômicos e defensores políticos: não podem combatê-la sem impor um genocídio à humanidade. 

O senso de justiça comum, que se constrangia pela existência da escravidão direta (aceita em termos legais até 148 anos atrás no Brasil, um dos últimos países a oficializar sua abolição) e religiosamente conivente, necessitava de um substitutivo que, ao mesmo tempo, mascarasse a escravidão mas mantivesse o jugo da elite politicamente dominante.

A escravidão dos africanos, trazidos sob correntes à América, era justificada como um mal necessário, já que tida como indispensável à economia.

[Hoje também a salvação da economia é o pretexto hipocritamente utilizado pelos gananciosos que, preocupados exclusivamente com seus lucros, tentam forçar a volta ao trabalho, custe quantas vidas custar...]

A saída para tal impasse social foi a descoberta do valor, relacionado ao tempo de trabalho como medida de aferição da riqueza abstrata por intermédio de um objeto eleito como equivalente geral e posteriormente substituído por um padrão numérico, abstrato (a moeda), mas que se materializa em itens necessários ao sustento da vida (alimentos, roupas, moradas, transporte, etc.).

Tal mudança de relações sociais foi decorrente tanto das relações mercantis emergentes quanto do constrangimento que a escravidão direta causava aos cidadãos mais conscienciosos.  

A tomada de consciência sobre o absurdo da escravidão direta tornou necessário um modo de relação social que aliviasse as consciências sociais, camuflando com uma hipócrita aura de liberdade algo que é intrinsecamente escravagista: a forma-valor. 

Assim nasceu o valor, que tem o escravista trabalho abstrato como sua categoria primária (daí o equívoco da doxa socialista e dos capitalistas ao erigirem o trabalho em fonte da dignidade humana); e como categorias auxiliares, mas indispensáveis, o equivalente geral (a moeda) e as trocas quantificadas (o escambo, gênese do mercado mundial. 
A relação social embrionária da forma-valor teria, assim, uma longa estrada a percorrer, inclusive com o aperfeiçoamento das outras categorias auxiliares como o Estado, a política, os partidos políticos e os políticos, até o seu desfecho contraditório final no qual a forma se choca com o conteúdo e faz voar pelos ares toda a engenhosa (e maquiavélica) ordem político-social--econômica daí surgida. 

Atingimos, enfim, o estágio da autocontradição vaticinada por Karl Marx, contra as teses dos economistas burgueses enquanto cientistas dessa nova ciência social (a economia) que não sabiam ou não queriam enxergar o conteúdo autodestrutivo da forma-valor. A máquina produtora de valor agora travou, tanto literal quanto empiricamente.

A razão desse travamento é facilmente compreendida: o móvel da produção do valor (o tempo do trabalho abstrato, assalariado, remunerado por um padrão monetário qualquer e produtor de valor sob esse mesmo padrão e patrão) deixou de existir como medida válida graças à concorrência de mercado, que substituiu o homem pela máquina de modo substancial, majoritário e definitivo. 
Mas a fuga para a frente continua, tal qual uma manada segue o seu condutor para o abismo. 

Os mais eruditos membros da sociedade, encastelados nas academias, corporações, governos e tribunas legislativas e judiciárias, consciente ou inconscientemente evitam defrontar-se com a fragilidade dos conceitos sobre os quais se assenta todo o castelo de cartas que lhes cobre a cabeça.

E, claro, não haverá de ser o presidente Boçalnaro, o ignaro (que admite nada entender de economia  e que gosta mais de armas que de gente, da morte que da ciência) quem vá compreender o final trágico ou libertador do caminho que estamos trilhando; muito menos seus bovinizados seguidores, cujo raciocínio é tão rasteiro quanto o do seu líder obtuso e idiossincrásico.

É chocante e deprimente para nós, civilizados, vermos ainda abundarem os terraplanistas!   

Dólar, moeda, deflação, inflação, bolsas (a de valores e a de mercadorias e futuros) e categorias capitalistas afins (o dólar está nas alturas e sua cotação vem batendo sucessivos recordes em relação ao real) – este quadro é a mais contundente afirmação da artificialidade e falta de substância do valor que ele deveria representar.

Não deveria ter sua moeda prestigiada, e com aumento de valor em relação às outras moedas, o país emissor da moeda internacional (o dólar estadunidense)! Pois, vale lembrar, os EUA: 
— têm uma dívida pública maior do que o seu PIB anual; 
— compram bem mais do que vendem; 
— apresentam déficit orçamentário estatal permanente e crescente;
— atualmente estão com mais de 30 milhões de desempregados requerendo seguro desemprego; e
— marcham para uma depressão econômica capaz de reduzir o seu PIB a menos de dois dígitos. 

Somente a irracionalidade das pessoas, que desconhecem a natureza e essência do dinheiro, ainda que este seja o objeto-mor do seu desejo, pode, pelo mecanismo irracional da lei da oferta e da procura no mercado, valorizar o dólar, moeda meramente fiduciária, que é, hoje, mais do que ontem, uma moeda tão putrefata quanto a banana que apodreceu por falta de comprador num fim de feira qualquer mundo afora. (por Dalton Rosado) 
(continua neste post)

2 comentários:

Anônimo disse...

Grande Dalton!
Minhas homenagens.

Quando você sintetiza a grande contribuição de Marx no terreno da aferição de valor na primorosa sentença "a saída para tal impasse social foi a descoberta do valor, relacionado ao tempo de trabalho como medida de aferição da riqueza abstrata", também induz a crer que essa resolução do capitalismo veio de algo maléfico e intencionalmente desagregador.
Longe disso, foi uma saída possível para os problemas causados pelo ego humano, assim como o código de Hamurabi foi um início de civilização em meio a barbárie.
Essa solução permite liquidar centenas de milhares de pendências simplesmente pelo perpassar da moeda de mãos em mãos, sentindo-se o pagador justificado e sem mais obrigações para com o recebedor que, satisfeito com o auferido, dá por encerrado qualquer litígio referente à troca realizada.
A dinâmica do dinheiro permite que seu valor de face seja multiplicado pelo número de transações que liquida, pois uma moeda de 1 real que passe por 100 trocas liquida o valor de 100 reais e evita o mesmo tanto, ou mais, em animosidades, rancores e toda a gama de expressões do ego humano. O narcisismo atual dos viventes conscientes não tem permitido ir além disso.
São seres conscientes que utilizam a inteligência com diligência na construção de um mundo violento, rixento e trágico.
E tudo tem consequências.
A que mais salta a vista é a imensa desigualdade causada pela riqueza abstrata. Desigualdade esta fruto da persistência humana em colocar os recursos de que dispõe a serviço do narcisismo destruidor.
Portanto, não é o dinheiro o quem provoca a miséria humana e sim a noção limitante do ego, que é criado pela própria limitação do ser em uma personagem que atenda ao papel social para ela designado ou por ela inventado ainda que sob a guante da opinião de animálias, suas semelhantes.
O dinheiro e a consequente a escravidão desaparecerão quando o ego, criação social, desaparecer e o bicho homem se tornar ser humano.
Até lá os administradores deste planeta tem que ir levando devagarinho as bestas feras egoístas e surtadas ao caminho da fraternidade e união.
Como está acontecendo neste exato momento em que um governo global está implantando um socialismo via estatização de todos os meios de produção e, principalmente, do sistema financeiro cada vez mais dependente de dinheiro falso para manter suas margens artificialmente infladas.
A Realidade bate a porta, mas ela é tão simples e humilde que os lacradores não conseguem perceber a sua imensa beleza e sabedoria.
Se desta crise resultar a renda universal teremos dado um grande passo na superação do capitalismo.
Agora, deixar de ser um monstro brigão é uma coisa que nenhum sistema político ou econômico poderá fazer por alguém.
A Humanidade os convida para a festa da paz.
Quando aceitarão o convite?
*

celsolungaretti disse...

Caro leitor anônimo,

a relação social sob a forma valor deseduca o ser humano no campo das suas virtudes morais e o aniquila no campo do suprimento das suas necessidades de consumo, ainda que uma parte menor da humanidade se beneficie daquilo que está socialmente estabelecido como certo

O dinheiro não é um mero facilitador isento da vida social (tal como uma fita métrica, que não altera o tamanho daquilo que mede, mas apenas o define) mas a representação do valor, e como sua materialização numérica, abstrata é o que promove empiricamente a acumulação da riqueza segregacionista e escravista. É o instrumento da morte tal qual um revólver o é na mão de um assassino. O valor é o assassino, e o dinheiro é uma arma a seu serviço.

É inegável que o capitalismo e seu famigerado fetichismo da mercadorias, que acena ilusoriamente sobre a possibilidade de se pular da classe social dos explorados para a classe social dos beneficiários do processo de mercantilização social, promove simultaneamente a ambição humana individualista, excludente, mas também avanços tecnológicos que resolvem problemas milenares da existência humana (há bem pouco tempo a seca matava nordestinos de sede; agora o carro pipa leva a água às regiões mais distantes e desertas, ainda que atualmente se morra de fome, que está aumentando, segundo a FAO).

Mas isso não significa que todos passam usufruir das benesses do saber tecnológico alavancada por esse fetichismo. É algo assim como todos os que jogam na loteria esportiva e fazem planos de como gastar o dinheiro que nunca conseguem ganhar, mas continuam jogando e alimentando a esperança de um dia tirar a sorte grande.

O principal ensinamento equivocado que a relação social capitalista incute nas mentes humanas é a chamada “lei da vantagem”, que funciona como a antítese do critério de solidariedade humana, que é o nosso traço comportamental ancestral mias virtuoso desde quando éramos irracionais.

O comportamento social do ser humano é condicionado por regras sociais estabelecidas. Assim, como temos uma forma de relação social estabelecida dentro de padrões morais e éticos equivocados, que nos foram impostos por sentimentos negativos que se afirmam como positivos, estamos vivendo as dores do parto da superação desse padrão e estamos caminhando para um comportamento superior no que se refere a novos e superiores padrões sociais morais e éticos.

O empirismo da negatividade da realidade social ora estabelecida, ainda que promova assassinatos e crueldades sem fim, conspira pela tomada de consciência e necessidade de um padrão de relação social sob bases de solidariedade contributiva e conceitos morais e éticos elevados.

Isso não significa que as mazelas humanas desaparecerão como num passe de mágica. Carregaremos ainda por muitos tempo (se é que um dia nos livraremos disso) comportamentos que negam a nossa melhor condição de seres humanos racionais e fraternos.
Mas a caminhada está sendo construída ao caminhar.

Abraços e obrigado pela leitura atenciosa. Dalton Rosado

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