terça-feira, 26 de maio de 2020

A BARBÁRIE ATUAL UM DIA SERÁ APENAS A SOFRIDA LEMBRANÇA DAS TURBULÊNCIAS QUE ANTECEDERAM NOSSA EMANCIPAÇÃO

dalton rosado
2084
Era junho de 2084. A pandemia de 64 anos antes havia sido em grande parte debelada pela nova vacina contra o coronavírus; mas, como se tornara endêmica, o contágio virótico continuou ocorrendo por muito tempo, com elevado número de mortes. 

Ainda se morria de contaminação pelo coronavírus, mas bem menos que de outras doenças endêmicas como tuberculose, malária, etc., que, apesar de diminuírem substancialmente, ainda existiam e não haviam cessado de provocar contaminação e mortes mundo afora.

É que a vacina do coronavírus não tinha erradicado completamente a contaminação virótica, além de não funcionar entre os já contaminados descuidados;  estes ainda se contaminavam e morriam, mas em percentagem muito menor do que no ápice da pandemia, a despeito de o vírus haver se transmutado, tornando-se mais letal. 

Mas agora morrem por contaminação virótica apenas cerca de cinco pessoas/dia em todo o mundo, contra as 5 mil pessoas/dia do auge da pandemia; naquele ano de 2020, de triste memória, os óbitos atingiram a casa de 1 milhão. 

Os governantes que então impuseram a ferro e fogo a quebra do isolamento social foram processados por crime contra a humanidade, condenados e presos. São tidos como criminosos pela sociedade atual.

Os hospitais e as equipes da área de saúde já haviam se adaptado aos processos de imunização e aperfeiçoado sua atuação graças aos Equipamentos de Proteção Individual; os hospitais haviam, ademais, se estruturado suficientemente com uma variada gama de equipamentos da chamada engenharia tecnológica das máquinas médicas. 

Agora, com as endemias sob substancial controle, os problemas são outros. 

A pandemia daquele já longínquo ano de 2020 apenas havia exposto aquilo que já se notava anteriormente: o capital perdera a sua dinâmica social como forma de relação social funcional.

O coronavírus não foi causa da crise, tendo apenas acelerado o processo de decomposição do capital como mediação válida das relações sociais.

Os Bancos Centrais, de tanto emitirem moeda sem valor, perderam credibilidade e foram extintos, até porque as moedas entraram em disfunção social.

As moedas perderam completamente a capacidade de regular as relações de trocas de mercadorias. Como consequência, o mercado de trocas quantificadas mensuradas pelas moedas simplesmente desapareceu, porque elas não eram mais capazes de representar o valor, o qual, por sua vez, deixou de quantificar os objetos pelo critério abstrato de um quantitativo numérico de valor igualmente abstrato. 

Um quilo de feijão, tanto quanto um avião, passara a valer por sua capacidade e importância como função social, sendo consumidos dentro de critérios equitativos de produção e de organização social; a computação foi primordial nesse processo de organização e consumo da produção social sem valor econômico.  

A propriedade deixou de funcionar como instituto jurídico válido; apenas a posse, regulada segundo critérios jurídicos de direito consentâneos com o melhor ideal de justiça, passou a servir como critério de validade pelo uso social e juridicamente respeitado.  
O Estado cobrador de impostos foi superado e, em seu lugar, sobreveio uma organização social descentralizada, na qual as leis locais comprovadamente eficazes passaram a ser critério para as suas incorporações nos códigos jurídicos nacionais que serviram como Constituição verdadeiramente popular e em constante aperfeiçoamento social que lhes dava função institucional. 

O processo legislativo passou a se processar de baixo para cima, por comissões locais, até se transformar, pela validade comprovada, em regras gerais meramente orientadoras de procedimentos jurídicos normativos e processuais comprovadamente eficazes.

O exercício jurisdicional agora é exercido por pessoas escolhidas dentro da comunidade por critérios de respeitabilidade, honradez e elevado saber jurídico-humanista, dentro dos cânones jurídicos estabelecidos, sendo periodicamente  substituídos pela comunidade. 

As relações sociais ora seguem outros critérios, de vez que as moedas perderam o valor de modo tão substancial que isto evou os Estados à decomposição orgânica; o mesmo aconteceu com todo o sistema de crédito bancário, o qual, falido, havia decretado a suspensão de qualquer pagamento de depósitos bancários. 

Os bancos fecharam, tendo muitos deles sido incendiados pela população enfurecida ao ver que os seus depósitos e aplicações financeiras haviam virado pó. 

Não havendo dinheiro em circulação, de vez que não eram mais emitidas moedas como forma de pagamento; com isto, as relações sociais de produção e consumo se transformaram completamente. 

A vida social se transformou completamente, após um período de grande turbulência durante a adaptação aos novos critérios de relação social estabelecidos. Transposta tal etapa, todos puderam constatar que tudo ficara bem mais cômodo e sem a aceleração da vida anterior, na qual o tempo de cada atividade representava o único critério de sobrevivência pessoal e da obtenção individual e cumulativa de valor. 

Agora os incapacitados fisicamente têm acesso ao consumo com a mesma comodidade daqueles que atuam na produção social. Acabou o critério capitalista segundo o qual quem não produz, não come.

O saber, ora aplicado à produção social coletiva e desligada da mensuração pelo valor econômico, garantiu a abundância daqueles produtos verdadeiramente indispensáveis ao consumo, enquanto se suprimiam as quinquilharias desnecessárias. 

Atualmente todos podiam facilmente obter uma morada digna, ou seja, confortável e com adequada infraestrutura sanitária de esgotos, abastecimento d’água e luz. 

O sistema de transportes urbanos, agora impulsionados por energia limpa, conseguira limpar a atmosfera dos gases poluentes; as avenidas e ruas passaram a ser interligadas por um sistema de transporte coletivo rápido, eficaz e racional. 

Até as drogas sumiram do mercado, justamente porque ninguém mais se interessava em produzir algo que apenas escravizava e enlouquecia os consumidores, tornando-os dependentes. 

A produção e consumo de drogas passou a ser algo socialmente tão deplorável quanto a ato de fumar, tornado há muito brega e anti-salutar.  

Viajar de uma região para outra passou a ser algo tão acessível a toda a população e de tal modo abrangente que foi necessário que se estabelecessem critérios de viagens com cotas por indivíduos como forma de atendimento confortável do crescente fluxo de turistas. Eram priorizadas as viagens profissionais reconhecidas como tais. 

A arte e os esportes deixaram de ser mercadorias; os artistas e desportistas apenas disputam o sucesso e as glórias pelo reconhecimento social da qualidade daquilo que praticavam, de vez que esse mérito não proporciona mais qualquer vantagem financeira. 

A medicina havia evoluído a tal ponto que as epidemias viróticas podiam agora serem previstas e evitadas; com isto, a média de vida dos humanos passou de 100 anos. 

Com os acréscimos de tempo disponível, já que as atividades profissionais bem distribuídas pela população oportunizava mais períodos fora da atividade produtiva de bens e serviços, desenvolveram-se outras potencialidade humanas. 

Agora havia médicos que, noutros momentos, eram músicos; carpinteiros-escritores, advogados-pintores, etc. Mesmo naquelas modalidades que exigiam esmero concentrado como as atividades atléticas, sempre sobrava um tempinho para ir ao teatro ou atrás de outras possibilidades de ócio produtivo. 
Os grandes artistas, atletas, escritores, cineastas, músicos, etc., eram reconhecidos pelo talento de que eram detentores e pelo prazer que as suas atividades proporcionavam.
Mas nem tudo era só alegria; havia outros problemas, antes inimagináveis. 

A vida fácil muitas vezes provocava um tédio em quem não conseguia ter prazer com aquilo que facilmente estava à mão, entrando então em depressão existencial. Mas, eram as exceções que confirmavam a regra de uma sociedade que evoluíra acentuadamente.

Nada nunca é completamente perfeito; mas não precisamos, evidentemente, da barbárie a que estávamos submetidos anteriormente, não é?   (por Dalton Rosado)

Um comentário:

Anônimo disse...

Dalton, pelo amor de Deus!
Que cenário..
***
Amigo, já existiu uma experiência assim na Dinamarca, em Copenhagen, no distrito de Christianshavn, na base militar abandonada.
A heróica cidade livre de Christiania.
Criada por anarquistas no dia 26 de Setembro de 1971.
Foi baseada em princípios superiores aos que você preconiza.
Mas foi sufocada (em 2013), embora ainda resista, pelo estado e pela pusilanimidade da sociedade dinamarquesa.
***
O grande empecilho é será sempre o ego, pois o ego é relação, é casta é hierarquia.
O ser pensa ser o ego, o personagem, e o personagem só existe "em relação" a outrem, em um enredo, com personagens descritas, com movimentação marcada e falas já decoradas (jargões e clichês).
A imensa liberdade dos que não se submetem a este algoz (ego) tem o preço do ostracismo, do abandono e da pressão contínua dos criadores de regras, iludidos no ego.
Que tal reexaminar esse negócio de "cotas" e viagens prioritárias?
Veja como, mesmo na maior das boas intenções, as premissas segregacionistas e opressoras do ego surgem.
Quanto ao tédio... ele é existência.
**
Mas a utopia sempre vale a pena ser sonhada e tentada.
Vamos em frente, exemplos já existem e muitos outros surgirão.
***

Related Posts with Thumbnails