sábado, 2 de fevereiro de 2019

A VITÓRIA DA INIQUIDADE

A frase antológica de Rui Barbosa correspondia  a uma correta análise social em 1914, quando ele a proferiu no Senado, e mais ainda no patético Brasil de hoje. Mas, não se constitui como dado ontológico imutável da existência humana. Afinal, temos solução.  

Ou seja, o triunfo da iniquidade, que ora se aprofunda, não se constitui em destino inexorável da humanidade, sendo, pelo contrário, plenamente superável. Eu ousaria até dizer que caminhamos para encontrar uma referência de virtude a partir de parâmetros de relação social absolutamente diferenciados do que ora experimentamos. 

Isso que está aí não passa do resultado inevitável de termos como base primária de relação social a apropriação indébita pelo capital do valor socialmente produzido (e não apenas oficializada como legal, mas também apresentada como virtuosa).

Costuma-se considerar como virtuosa e natural a dinâmica social a partir da compra e venda de mercadorias, esta forma irracional de relação social que os pósteros (quiçá não tão distantes de nós no tempo) estranharão, com repulsa, ter existido um dia. 

Tal dinâmica veio se aperfeiçoando nos três últimos milênios, substituindo paulatinamente a crueldade da escravidão direta antes predominante pela troca de mercadorias intermediadas pelo dinheiro (expressão numérica, monetária, do valor). 
A coisa ganhou ares de libertação do escravismo direto quando das teses iluministas do mercantilismo emergente. Não foram poucos os libertários doutrinadores do mercantilismo iluminista, justamente porque era confortável navegar a favor do vento naquele momento, surfando na onda da repulsa provocada pela escravidão direta.   

Já no final do século 17, o italiano Geminiano Montanari, na obra Della Moneda, faz o elogio do dinheiro como uma invenção maravilhosa por sua capacidade de propiciar aos seus possuidores poder de aquisição de mercadorias diversificadas mesmo permanecendo em suas casas, desfrutando de tudo aquilo que a terra, seus animais e a indústria humana produziram noutros lugares.

A acepção acima é lapidar do que viria a ser no futuro a economia globalizada graças à sua necessidade de expansão contínua até esbarrar no limite planetário da exploração humana (que o nacional-feudalista ministro Ernesto Araújo chama pejorativamente de globalismo). É incrível a que ponto pode chegar o retrocesso conceitual da roda da história por quem teme o futuro.      
Coube a Karl Marx desmistificar as virtudes dessa forma de relação social que acabava de instalar-se, conceituando as categorias capitalistas e seu conteúdo segregacionista. Seus escritos tanto serviram para os estudos socais modernos, mas, pela sua capacidade de demonstrar o óbvio, foram tidos como heréticos pelos fundamentalistas do Deus da modernidade decrépita, o valor econômico.  

Afinal, é mais fácil se negar aquilo que incomoda os privilegiados da relação social sob a forma-valor (ainda que estejam em processo de pauperização de seus contingentes) do que discutir os seus fundamentos acanhados. 

Que o diga o dito ex-marxista tradicional de araque e astrólogo de almanaque Olavo de Carvalho, que nunca leu Marx ou, se leu, nada compreendeu. Hoje ele  destila contra o sábio barbudo os seus vitupérios inconsistentes, com estapafúrdias deturpações e achaques, tudo tão medíocre e primário que ele só poderia mesmo tornar-se o guru do atual governo (papel semelhante ao do monge maluco Rasputin na corte do czar Nicolau II...). 
Sem decoro: senadores se tratam como "ladrão" e "um merda"
Afinal, eles se merecem, até porque a virtude social está na inversa proporção ao incenso à sua deformidade. 

Rui Barbosa foi premonitório quanto ao crescimento das nulidades. O que vemos hoje é:
— abastados que vivem nas ilhas de prosperidade do mundo (muitos dos quais descendentes de imigrantes, como o presidente destrumpelhado e o Boçalnaro, o ignaro, cujos ancestrais nasceram nos países de origem do nazismo e do fascismo, respectivamente) manifestarem a sua repulsa ao acolhimento de imigrantes desesperados, vítimas da ordem segregacionista do capitalismo one world
—  no mafuá brasileiro, um suposto representante de uma nova política é flagrado cometendo ilegalidades as mais emblemáticas da velha. Ademais, embora clame pelo rigor contra o banditismo, tem seu nome vinculado (com homenagem oficial e tudo) a notórios criminosos na mira da Justiça Criminal. Isto sem falar no novo mandato de Rodrigo Maia como presidente da Câmara Federal e na briga de foice no escuro entre o recordista de processos Renan Calheiros e um medíocre candidato que o clã Bolsonaro esforça-se por impor atropelando leis e normas.
— no Rio de Janeiro, cidadãos presos são eleitos e assumem da cadeia as vagas legislativas conquistadas. E já se passaram mais de 10 meses desde que uma vereadora foi assassinada sem a conclusão do inquérito policial, embora até as pedras da rua saibam que seus assassinos foram milicianos a soldo de políticos e interesses criminosos);  
— temos um Poder Judiciário moroso, caro, elitista, que não atende aos reclamos de uma população oprimida sob todos as aspectos político-econômico-sociais;
— os estados membros da Federação e a própria União apresentam déficits fiscais contínuos, mostrando-se incapazes de prover as demandas sociais mesmo com a pesada carga tributária extorquida de uma população economicamente exaurida (mas que serve apenas para a manutenção da institucionalidade opressora);
— são constantes as destruições do nosso patrimônio cultural em desastres como o incêndio do Museu Nacional do RJ. E decai, sob o peso nocivo do fetichismo da mercadoria, a qualidade das nossas melhores e mundialmente conhecidas manifestações artísticas e esportivas mais autênticas; 
— somos humilhados nos rankings mundiais de analfabetismo, além de produzirmos uma população de analfabetos funcionais que não raro derivam para o crime, por absoluta incapacidade de adaptação à vida dita moderna. Nossos professores ganham mal, trabalham em escolas desaparelhadas, e aprendem/ensinam fundamentos sociais equivocados (como a positivação da dignidade do trabalho produtor de valor que escraviza o trabalhador e o próprio professor), afora serem agredidos por alunos cada vez mais descontrolados;   
— somos campeões mundiais em tragédias ecológicas como as que ocorreram em Minas Gerais, nas cidades Mariana e Brumadinho, com graves consequências para o meio ambiente e a morte de centenas de pessoas, da fauna e da flora dessas regiões;
— somos um país de desempregados, com cerca de 12 milhões de trabalhadores aptos e necessitados de proverem as suas subsistências aos quais é negada a oportunidade de garantirem sobrevivência digna para si e para os seus (e temos, ainda, um número enorme de subempregados);
— ostentamos um número de assassinatos superior aos de países em conflitos de guerras tradicionais ou civis, além de um alto índice de violência urbana criminosa praticada pelo crime organizado em facções que disputam poder entre si em guerra permanente e de cenários de filmes de bang-bang nas agências bancárias de todo o País, assaltadas a bala com frequência assustadora;
— vemos diariamente estampadas no noticiário as mortes nas portas dos hospitais por falta de atendimento médico digno para a população pobre, enquanto o acesso serviços com boa qualidade somente é facultado aos poucos que podem pagar um plano de saúde privado; 
— poluímos rios, lagos e oceanos, entupimos as redes de esgoto sanitários com  uma imensidão de lixo e somos campeões de lixões a céu aberto, numa demonstração de insensatez que se volta contra nós mesmos sob a forma da volta de doenças e endemias que pareciam estar erradicadas e de epidemias como as da zika, da dengue e do chicungunya.  

Vamos parar por aqui nessa tarefa macabra de explicitar o corolário de nossas tragédias sociais para reafirmarmos conclusivamente o libelo que vimos fazendo: a rejeição de um modelo de relação social falido, mas que ciclicamente enche de esperança a população inconsciente e manipulada pelo discurso da grande mídia e dos políticos, todos mercadores da ilusão de que tudo se resuma à qualidade do gerenciamento efetuado pelo Estado. 

Temos de redobrar os esforços de conscientização dos brasileiros para a necessidade de estabelecermos um novo modo de produção social – que implica, necessariamente, a negação de todos os construtos econômico-institucionais que vêm sendo consagrados nos últimos séculos (os quais, contudo, encontraram o seu ponto de saturação irremediável).

Será que, diante de tantas evidências, não seremos capazes de refletir conscientemente sobre o domínio que é exercido contra nós mesmos por uma lógica de relação social reificada, fetichista, ditatorial, que aprisiona o nosso pensar e que nos impede se rebelarmo-nos contra o que está na base dessa vitória da iniquidade? (por Dalton Rosado)

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