david emanuel de souza coelho
A CRÍTICA USURPADA
Gostaria de ser portador de boas notícias, mas a realidade impõe um terrível horizonte.
O fato é que a improvável derrota de Bolsonaro neste 2º turno não significará sua derrota social. Haddad e o PT não possuem qualquer condição de modificar as bases sociais alimentadoras do neofascismo. Podem até mesmo as reforçar, levando-nos a um risco real de ter algo muito pior em 2022.
O lulismo esgotou-se em 2013. Naquele momento, as ruas foram tomadas pelas maiores manifestações populares de nossa História, com um grau de radicalidade jamais visto. O rechaço ao establishment foi profundo, atingindo os poderes econômicos, midiáticos e políticos. Na verdade, tratava-se de uma rebelião contra o neoliberalismo, seguindo caminhos de outros países ao redor do globo.
A reação da esquerda institucional, capitaneada pelo PT, foi a pior possível. Ao invés de buscar compor-se com essas forças rebeldes, as criminalizou, as perseguiu e, finalmente, as erradicou.
"O único pensamento do Governo Dilma foi o de acabar logo com a rebelião" |
Durante um ano as ruas brasileiras ficaram tomadas por manifestações populares quase diárias, e durante todo esse tempo o único pensamento do governo Dilma e da esquerda encastelada foi o de acabar o mais rápido possível com a rebelião.
O fato é que ali estava a crítica ao regime neoliberal. O governo petista não a aceitou, pois tal crítica também englobava a si mesmo.
No entanto, ao reagir de forma truculenta às manifestações populares, podou qualquer chance do surgimento de um movimento político anti-sistêmico à esquerda.
Pior, como não pôde ele mesmo frear a desintegração do regime neoliberal, viu-se tragado pelo naufrágio geral do dito cujo; foi gerado um amplo vácuo político, aos poucos ocupado pela extrema-direita, herdeira das ruas evacuadas pelo governo.
Analistas políticos erram há anos ao dizer que há uma polarização entre petismo e antipetismo. Não há. Existe, isto sim, uma polarização entre o establishment e o anti-establishment.
Programa de Bolsonaro: elitista e reacionário |
O problema é que o discurso anti-establishment foi apropriado pela extrema-direita, a qual, ela sim, possui um núcleo duro antipetista, mas, muito além, também antipovo e antitransformações sociais. Este núcleo é profundamente reacionário e visa restaurar uma ordem social e econômica pré-1994.
Na verdade, a extrema-direita só conseguiu ir tão longe por haver se apropriado da crítica ao regime neoliberal falido, embora tenha dado a esta crítica uma forma moralizante e esquizofrênica.
E não poderia ser diferente, visto que seu programa social e econômico é profundamente elitista e reacionário. Ele só pode triunfar se for camuflado por outra coisa.
Na verdade, a extrema-direita só conseguiu ir tão longe por haver se apropriado da crítica ao regime neoliberal falido, embora tenha dado a esta crítica uma forma moralizante e esquizofrênica.
E não poderia ser diferente, visto que seu programa social e econômico é profundamente elitista e reacionário. Ele só pode triunfar se for camuflado por outra coisa.
É por isso que Bolsonaro cai como uma luva, pois seu discurso de exacerbação dos preconceitos do senso comum ocultam com maestria o debate em torno de seu projeto social.
Também por isso, o uso de fake news não é um acidente, mas a própria essência da campanha do candidato neofascista. Somente com mentiras, falsificações, preconceitos, fundamentalismo religioso e mistificações é possível a vitória de Bolsonaro. Se explicitar o seu programa, ele perde.
Então, bastaria Haddad explorar o programa reacionário de Bolsonaro e mostrar seu próprio programa para o triunfo do PT ser garantido, certo? Errado. O programa de Haddad não é reacionário, mas é conservador e, em pontos econômicos, pouco difere do de Bolsonaro.
Ainda por cima, a população tem na memória o estrago causado por Dilma em 2014, quando disse uma coisa na campanha e fez outra depois de eleita. As pessoas não querem continuar com o programa que está aí, e, na falta de um novo autêntico – conforme eu disse neste texto recente – irão para o novo farsesco.
Haddad está devendo uma autocrítica desde 2013 |
Entendo perfeitamente quem vai votar em Haddad no 2º turno. Mas, acredito que tal voto deveria vir, pelo menos com dois compromissos do candidato petista:
- autocrítica dos erros do partido e de seus erros em particular. Lembremos que Haddad era prefeito de São Paulo em 2013 e fez coro com a repressão aos manifestantes; e
- fim de toda pretensão a ser o único representante da esquerda brasileira, abandonando a demonização de opositores à esquerda e abrindo um canal de diálogo franco com as correntes revolucionárias. Sem isso, haverá o risco da crítica continuar sufocada na esquerda, permanecendo usurpada pela extrema-direita.
Quanto a nós, como já disse neste outro texto, nossa função é permanecer na crítica implacável, a fim de abrir o caminho para o futuro. (Por David Emanuel de Souza Coelho)
Um comentário:
Há alguns equívocos que o autor utilizou como premissas.
"Este núcleo é profundamente reacionário e visa restaurar uma ordem social e econômica pré-1994."
Pelo contrário, o que se pretende é reforçar, reimpulsionar, a ordem neoliberal pós-1994, pós-Plano Real.
"Na verdade, a extrema-direita só conseguiu ir tão longe por haver se apropriado da crítica ao regime neoliberal falido, ..."
O neoliberalismo, aqui, não faliu. Dá-se justamente o oposto, desde Lula, e o que pretendem os bolsonaristas é reforçá-lo. É uma direita ultraliberal, antiestado, nos moldes do Pinochet. Tanto é que, no programa da candidatura, citam a escola de Chicago e Milton Friedman.
A crítica tem sido ao velho capitalismo (ainda) com certas (e já pouquíssimas) amarras morais, cartoriais. É isto que está sendo posto em cheque pela ultradireita. Não querem mais intermediários, "coronéis", representantes que lhes "cobram um pedágio".
Basicamente, é isso.
Também acredito que perderam, PT/governo/esquerda estabelecida, uma chance de ouro para renovar a esquerda em 2013. Estive à frente e verifico o erro.
A autocrítica do partido, a essa altura dos acontecimentos e na velocidade vertiginosa em que ocorrem, acho meio inócua.
Mas a causa (eleitoral) não está perdida. O problema, mesmo em caso de vitória, seria o porvir. Acho que falta pulso ao lado de cá para impor-se. Infelizmente.
Grato pela atenção,
Marco A.
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