domingo, 23 de setembro de 2018

DISSECANDO O NEOFASCISMO À BRASILEIRA

p/ David Emanuel de Souza Coelho
Bolsonaro não derreteu. Duas semanas antes do 1º turno da eleição presidencial, a tendência é de o candidato neofascista ir ao 2º turno e chegar competitivo. Os prognósticos de sua decomposição se mostraram falsos. 

Certamente, muitos vão escudar-se no atentado, o qual teria gerado comoção pública e alavancado sua popularidade. Tal desculpa, no entanto, é apenas sintoma de negação. 

Ao contrário de ter sido fraqueza, o caráter tosco, ignorante e preconceituoso de Bolsonaro foi sua força. Sim, isto mesmo. E só é possível entender o motivo se considerarmos que vivemos em uma época histórica de ruptura do pacto liberal. Ou, no caso, neoliberal. 

Zizek disse, certa vez, ser a vitória de Trump o fim do politicamente correto. Na verdade, o tal politicamente correto é outro nome para o pacto liberal: todo discurso deve transitar dentro de certos limites, sendo os extremos – tanto à direita, quanto à esquerda – rigorosamente excluídos do debate político. De fato, o pacto liberal representa o capitalismo em seu estado conciliatório, quando é possível articular interesses divergentes dentro dos mecanismos da institucionalidade burguesa. 

No Brasil, após o colapso do regime militar e os tateamentos de Sarney e Collor, vivemos isto durante cerca de 20 anos, quando PT e PSDB homogenizaram a vida política nacional. Ambos giravam dentro da mesma órbita neoliberal, mas cumpriam o papel de absorver os extremos dentro de seus aparatos. 

O pacto neoliberal brasileiro durou duas décadas, mas acabou por puro esgotamento. Seus limites foram atingidos. A crise econômica de 2008 certamente acelerou o esgotamento, mas a marca definitiva foi junho de 2013. 
"A rebelião de 2013 assustou profundamente a classe proprietária brasileira"
A base do pacto era a inclusão social sem ruptura com a estrutura social e política herdada do regime militar. Em certo momento, no entanto, tornou-se impossível continuar o processo, pois chegou-se ao teto. A rebelião de 2013 assustou profundamente a classe proprietária brasileira, a qual tratou de retirar seu nome do acordo e criar um radical processo de contra-ataque às classes subalternas. 

O neofascismo não é fenômeno exclusivo do Brasil. Neste texto de 2017 eu já tinha analisado tal fenômenos e inscrito Bolsonaro como líder do neofascismo brasileiro. 

Dito de modo geral, o neofascismo se ergue dos escombros do regime neoliberal, tal como o fascismo clássico havia se erguido dos do regime liberal tradicional. Que não encontremos neste movimento atual exatamente as mesmas características do original é um fato óbvio para quem considera o elemento básico de vivermos em outra época histórica, com características diversas. No entanto, há elementos de continuidade, entre os quais pode-se destacar:
culto à personalidade: "determinante".
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irracionalismo: o fascismo é irracional por excelência. Por estar fora da relação mediada do sistema institucional burguês, ele representa pura e simplesmente o capital em seu domínio nu e cru. Basta ouvirmos as asneiras de Bolsonaro, em seu discurso absolutamente sem sentido, para termos um exemplo disso. 
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— culto à personalidade: no fascismo, o culto à personalidade é elemento determinante. O líder é entendido como sendo o grande condutor e a obediência a ele é reforçada através de laços emotivos de adoração. Em termos psicanalíticos, é como se a pessoa retornasse ao estado infantil, vendo o líder como o pai. Lembremos das multidões de homens (pois são apenas eles que o adoram) recebendo extasiados Bolsonaro. 
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militarismo: o fascismo busca reforçar a disciplina e o terror social pela via do militarismo. No fascismo imperialista, típico dos países centrais, o militarismo assume também a função expansionista. Em países como o Brasil, periférico e com uma burguesia apequenada, o militarismo cumpre sempre a função essencial de guerra aos subalternos. A fixação de Bolsonaro com militares não é outra senão uma forma de impor disciplina e terror aos dominados. 
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— ódio racial e sexual: o fascismo opera pela criação de um inimigo. O judeu, no passado, o homossexual, hoje. A mulher sempre foi um inimigo fundamental para o fascismo, pois é reduzida à pura função reprodutiva. Dispensável aqui elaborar o modo pelo qual Bolsonaro e sua gangue tratam as mulheres e os gays. Só é preciso acrescentar o ódio destilado por eles a negros e índios. 

No entanto, o neofascismo não chega a se estruturar do modo clássico. Você não vê gangues uniformizadas desfilando pelas ruas. Há uniformes, sim, mas imitando a estética da indústria cultural, onde o líder fascista aparece como sendo um ídolo pop

Conforme disse no mesmo artigo de 2017, o neofascismo se origina da decomposição do neoliberalismo e, enquanto tal, herda a estrutura social neoliberal. Uma característica fundamental do neoliberalismo é a atomização social. As instituições políticas foram totalmente colonizadas pelo capital, não restando espaço para a ação coletiva. O resultado é a redução do indivíduo à sua esfera monadológica.
"o fascismo opera pela criação de um inimigo"
Neste contexto, o líder neofascista aparece enquanto uma figura capaz de realizar a mediação entre os indivíduos. A coletividade se daria por seu intermédio. 

O fascismo tradicional foi um movimento da classe média (aliás, o movimento revolucionário também se origina na classe média). 

E a base do neofascismo é, igualmente, a classe média; mais precisamente, a classe média tradicional, que foi a grande perdedora do arranjo neoliberal dos últimos 20 anos. Ao mesmo tempo em que viu a burguesia distanciar-se em um surto de super-enriquecimento, viu os pobres aproximarem-se cada vez mais. 

Funções antes exclusivas da classe média tradicional passaram a ser ocupadas também por pessoas oriundas dos estratos populares. Já postos de trabalho subalternos – como de serviçais nas casas da classe média – encareceram e se tornaram luxos para poucos. 

Em resumo, a classe média perdeu renda e status durante o período neoliberal, entrando também no processo de precarização estimulado pelo novo regime capitalista. 

No entanto, o fato do processo ter acontecido justamente com a dominação da esquerda, fez direitizar a classe média. Pseudointelectuais – como Olavo de Carvalho, Reinaldo Azevedo e Rodrigo Constantino – passaram a municiar tal contingente com narrativas mistificadas e reacionárias, aguçando a direitização. Estes pseudointelectuais, inclusive, foram decisivos para minar as bases do discurso racional entre esta parte da classe média, preparando o terreno para aceitação do irracionalismo neofascista. 
"preparando o terreno para o irracionalismo neofascista"

Este caldo cultural, econômico e social é que possibilitou a ascensão de uma figura como Bolsonaro. A falência do neoliberalismo, arrastando consigo seu pacto e seus partidos, deixou por herança um programa político distópico. 

Frente a ele, apenas a radicalidade revolucionária poderia fazer frente. Infelizmente, ainda estamos longe de alcançar tal radicalidade. No Brasil, nem mesmo a crítica contundente ao neoliberalismo – já feita no exterior por figuras como Sanders e Corbyn – conseguimos alcançar. Tudo devido ao lulismo decadente, que ainda obstaculiza o caminho. 

Quanto às razões para a permanência do lulismo enquanto força política – zumbificada nesta altura –, serão analisadas em outro texto.  

Um comentário:

Valmir disse...

parece que existe mesmo como furar a bolha em que vivem os letrados e sabidos da mídia e da universidade para que vejam as coisas do ponto de vista do povo...eles acreditam uns nos outros e sua latumia de sabidos e letrados.

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