domingo, 23 de setembro de 2018

UM DEBATE ENTRE COMPANHEIROS: AS AFINIDADES ESTRATÉGICAS E ALGUMAS NUANCES TÁTICAS.

Caro Lungaretti, 

as nuvens estão escuras, augurando chuva forte.

Parece ser uma chuva como aquela que se abateu sobre Santiago, no Chile, ou algo semelhante, pois já não há condições conjunturais para uma volta ao passado como ele foi. Outras formas democráticas podem ser utilizadas, como está a ocorrer mundo afora. 

As eleições são um engodo do qual devemos nos distanciar.  

Mas, quando há prenúncio de uma tempestade dessas, prefiro fazer como os sertanejos nordestinos que, ao verem as nuvens anunciando chuva, dizem enfáticos, que está bonito pra chover, tão grande são as suas ânsias por um bom inverno, ao contrário dos sulistas que dizem o tempo está feio.

Assim, como nordestino de coração, onde me criei (apesar de ter nascido no Rio de Janeiro), prefiro ver a chegada da chuva como algo benfazejo.

Vivemos um tempo estranho, no qual os defensores do caos se apresentam como a solução para o caos, mas isto, apesar de prenunciar o apocalipse, pode ser também o anúncio do novo. 
Aliás, a palavra crise no idioma grego antigo corresponde à gestação do novo, que somente acontece em razão de saturação daquilo que está posto. Este tempo estranho pode ser o prenúncio de que está bonito pra chover.

Não devemos temer o caos e a barbárie que sempre denunciamos e que cresce a olhos vistos mundo afora. Ao contrário, devemos nos inserir nela e ir para as ruas beber a tempestade, como disse o poeta numa música do tempo no qual nós dois (que temos a mesma idade) vivíamos o ardor da crença na revolução, que agora deve ser retomada, ainda que sob outras formas e conceitos.

Guy Debord, num comentário sobre o seu livro A sociedade do espetáculo, fez uma citação de Sun Tsé, do livro deste último intitulado A arte da guerra cujo teor nos serve de alento para esses dias estranhos:
"Por mais críticas que sejam a situação e as circunstâncias, não aceite o desespero; nas ocasiões em que tudo leva ao medo, não devemos ter medo de nada; quando se está rodeado de perigos, não se deve temer perigo algum; quando já se esgotaram todos os recursos, deve-se contar com todos os recursos; quando se é surpreendido, deve-se surpreender o próprio inimigo".
Mas, para nossa sorte, o inimigo atual é, concomitantemente, nosso aliado. 

É que o capitalismo, o inimigo nº 1 da humanidade desde o seu surgimento, está agora se destruindo por seus próprios fundamentos, e é justamente a contradição de sua lógica irracional que agora expõe sua irracionalidade e aquilo que se constitui como nosso fator aliado (em que pese os padecimentos do aprofundamento da barbárie social), e eles não podem dar porrada numa lógica socialmente ilógica que, paradoxalmente, é a razão de ser dos capitalistas e ao mesmo tempo a sua ruína inexorável. 

Já não se pode dizer, como antes, que tudo é culpa dos (falsos ou equivocados) comunistas, capitalistas de estado, cujos pressupostos equivocados com os quais idealizaram a pretensa ruptura como o capitalismo mostraram-se ineficazes justamente porque as ferramentas de base por eles usadas eram as próprias categorias capitalistas. 

Agora está na hora da verdade, e quem é pseudo anticapitalista será identificado nas suas ações mais elementares, como se houvesse um detector de mentiras social a partir do qual qualquer proposição demagógica desfalece no médio prazo diante da sua própria inconsistência. 
Entendo que como em todo parto que dá luz à vida, as dores representam a vida nova, e teremos que enfrentar esse momento como as mães enfrentam o nascimento dos seus bebês: com um misto de dor e alegria.(Dalton Rosado)

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Prezado Dalton,

para que nossos leitores possam compreender melhor, explico que a simbologia da chuva se refere ao golpe de Estado chileno de 1973. Um falso boletim meteorológico, levado ao ar pelas emissoras de rádio, anunciava que chovia em Santiago e outras cidades, embora não caísse chuva nenhuma. Era uma forma de comunicarem a conspiradores do país inteiro que a quartelada fora desencadeada.

Nossas visões sobre a agonia do capitalismo são bem semelhantes, Dalton. Desde meu aprendizado marxista, nos longínquos anos 60, chamou-me a atenção o fetichismo da mercadoria (no jargão de então, a coisificação do ser humano paralelamente à humanização das coisas). 

Também já tinha claro que o capitalismo será vítima de sua contradição fundamental: ao não dar aos trabalhadores meios de adquirir algo além de uma pequena parte do que produzem, gera um desequilíbrio permanente entre oferta e procura, que leva até à irracional destruição do que é produzido e não tem comprador possível. 

Tal aberração nos tem, através dos tempos, conduzido às crises cíclicas do capitalismo (cuja eclosão agora é retardada por vários mecanismos artificiais, mas elas acabam ocorrendo do mesmo jeito e ainda mais devastadoras, como a do subprime de 2007/2008 e a que ora está se desenhando no horizonte), às guerras, ao incremento cada vez maior de atividades parasitárias e inúteis (boa parte das do setor terciário), às queimas de café outrora no porto de Santos, etc.

Enfim, a visão que você trouxe para o blog (dessa vertente pós-marxista centrada na crítica do valor) é um aprofundamento de algo que a geração 68 já conhecia e levava em conta, embora com menos ênfase. 

O terreno novo que estávamos principalmente explorando eram as perspectivas abertas pela psicanálise para novas abordagens marxistas (ou, de forma mais simples, a possível síntese entre Marx e Freud). Líamos muito Reich, Jung e Marcuse; e poucos livros de economia política.
Mas, à medida que a crise capitalista se agrava e aproxima do desenlace, é realmente obrigatório conhecermos seu detalhamento nas obras de Robert Kurz, Anselm Jappe, Guy Debord, etc. Neste sentido, sua contribuição, Dalton, tem sido um dos pontos altos deste blog.

Mas, se entre nós há coincidência quase total em termos estratégicos, existem também algumas diferenças táticas que já devem ter sido captadas pelos leitores mais assíduos e perspicazes, então vale a pena explicitá-las.

Um comentário ligeiro que Engels certa vez fez sobre Spartacus e a revolta dos gladiadores, sem aprofundá-lo depois, me inquietou muito. Segundo ele, se uma forma de organização econômica e social está esgotada e o sujeito revolucionário capaz de levar tal sociedade a um estágio superior de civilização for anulado, sobrevém a barbárie.

Ou seja, Roma já não tinha mais como desenvolver suas forças produtivas sob o regime de escravidão. Quem corporificou a esperança de uma sociedade de homens livres foram os gladiadores. A forma brutal como acabaram sendo esmagados dissuadiu outros escravos de tentarem algo semelhante. Então, incapaz de gerar o novo dentro de si, o Império Romano foi vencido e devastado pelos bárbaros que viviam fora de suas fronteiras.

Talvez Engels não tenha mais tocado neste assunto porque, naquele momento, o capitalismo parecia incapaz de ter a sobrevida longa que está tendo. Quis apenas deixar um alerta quanto a algo que lhe parecia possível, mas improvável.

Tal sobrevida, contudo, infelizmente perdura até hoje e implicou um aguçamento extremo de suas contradições, tanto que temos agora uma desigualdade econômica simplesmente ultrajante, a imposição de penúria desmedida a boa parte da humanidade, as graves ameaças ecológicas geradas pela ganância descontrolada, etc.

Então, temo que a agonia final do capitalismo será muito mais tempestuosa do que gostaríamos. E vejo uma enorme necessidade de engendrarmos uma vanguarda capaz de, em meio ao caos econômico e às (talvez coincidentes) catástrofes ambientais, apontar o caminho da sobrevivência e, depois, da reconstrução da sociedade em bases bem diferentes, com a priorização do bem comum e da cooperação solidária entre os seres humanos.

Dizem que tenho ódio ao PT. É, claro, um exagero. Mas, a decisiva contribuição que o PT deu em 2013 e 2014 à direita para, juntos, abortarem o surgimento e afirmação de uma nova geração revolucionária, foi um crime sem perdão. Desde então, passei a considerá-lo intrinsecamente nocivo à revolução brasileira.

Temo que, enquanto o PT mantiver a hegemonia na nossa esquerda, seu papel será sempre o mesmo, de ajudar a matar o novo para salvar a velha ordem, seus privilegiados e seus privilégios (os quais partilha, na condição de sócio subserviente e minoritário dos donos do PIB).
E é por não termos uma esquerda de verdade neste momento, capaz de oferecer resistência significativa a uma escalada fascista plenamente deslanchada, que favoreço a união de todos os civilizados para, enquanto ainda há tempo, determos as invasões bárbaras, derrotando Jair Bolsonaro nas urnas e frustrando quaisquer outras tentativas de forçarem uma intervenção militar.

A boa estratégia militar nos manda escolhermos cuidadosamente o momento ideal para travarmos uma batalha decisiva, Dalton. 

Penso que não seja o atual, e que devamos nos considerar em fase de defensiva estratégica, tentando pelo menos não ceder mais terreno ao inimigo enquanto reorganizamos nossos efetivos e acumulamos força.

De resto, nunca deixei de acreditar que dias melhores virão, talvez ainda para nós, talvez para nossos filhos ou netos. Tal esperança é a razão maior da minha existência há mais de meio século e continuará sendo até o fim dos meus dias.

Um forte abraço, companheiro! (Celso Lungaretti)

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