sexta-feira, 24 de agosto de 2018

MEU TIO PATINHAS MORREU

"A fortuna favorece os fortes"... condenando-os ao amargor?
Somente ontem (5ª feira, 23) fiquei sabendo que meu tio rico morreu no dia 13 de dezembro do ano passado. 

Isto porque ninguém se deu ao trabalho de informar a parte da família que ele excluiu de sua vida. Então, a ilustração ao lado é só uma ilustração. A coisa provavelmente terá sido mais melancólica ainda.

Meu avô paterno era técnico italiano de alto nível e foi contratado para comandar uma fábrica têxtil no Rio de Janeiro. Num sábado de 1930, quando caminhava numa feira livre, foi baleado pelas costas por um operário que demitira.

Minha avó e os três filhos vieram para São Paulo, onde havia parentes que a poderiam ajudar em sua viuvez. Um deles, bem colocado no Cotonifício Crespi, conseguiu empregar lá meu pai, burlando a lei que vedava a contratação de menores de 14 anos. 

Meu pai estava com 11 e teve de sacrificar-se por ser o primogênito. Meu tio, portanto, fez carreira sem a obrigação de botar comida na mesa familiar, até porque a minha avó casara de novo, também com um viúvo. Mesmo assim, meu pai não parou de trabalhar. 46 anos seguidos.

Dos meus primeiros anos lembro-me desse tio morando a três quarteirões de distância de nós, já bem de vida. Era na casa dele que festejávamos o Natal. Empanturrava-me de chantilly, que naquele tempo se comprava em docerias, um gasto que meus pais não podiam bancar.

Eu deveria ter uns sete ou oito anos quando o lado paterno da minha família se estilhaçou: meu tio se descobriu traído e expulsou a esposa de casa. A maioria considerou-o severo em demasia e ele cortou relações para sempre. Meu pai ficou ao lado dele, mas a efusividade deixou de existir. O tio rico decidiu que família não lhe fazia falta.

Quando eu participava do movimento estudantil de 1968, aos 17 anos, comecei a passar de vez em quando pela pequena joalheria do meu tio rico no centro financeiro de São Paulo. Por força de suas atividades, ele podia transmitir muita informação útil sobre como funcionava o capitalismo e já então eu queria conhecer bem o inimigo.

Eu ia lá para papear e também para fazer hora antes do início de passeatas marcadas para o centrão (não valia a pena ficar me expondo pela rua, com o visual inconfundível dos estudantes rebeldes, antes de soar o chamamento (O povo na passeata!, O povo na passeata!), quando todos nós parávamos de disfarçar nos arredores e íamos de peito aberto desafiar a repressão.

Foi nesta fase que passei a conhecê-lo melhor. Sua joalheria era um bom negócio, mas não o principal: por baixo do pano, fazia empréstimos. Como todo agiota, chegava a viajar atrás dos caloteiros. Não conseguia imaginá-lo naquele papel. Levaria um capanga consigo?

Seu grande sonho até então fora o de abrir um pequeno banco. Mas, a política econômica dos golpistas de 1964 foi na direção exatamente oposta, a de favorecer a monopolização do setor financeiro. Então, por motivos bem diferentes, tínhamos em comum o ódio à ditadura...

Mas, fiquei decepcionado ao ver um livro interessante exposto na estante da joalheria e, puxando papo sobre ele, ficar sabendo que meu tio tinha um acordo com a livraria do outro lado da rua, que lhe alugava os títulos em maior evidência, substituindo-os periodicamente. 
"A trajetória dele lembra bem a do Cidadão Kane...

Ele mesmo não lia nenhum. E eu, que naquele tempo lia tanto, fiquei chocado ao saber que livros, para meu tio, faziam parte da decoração.

Depois de minha passagem pela luta armada, pouco o vi. Mas, certamente era com os contatos e a grana dele que meu pai contava quando, tão logo meu nome e minha foto saíram nos cartazes de terroristas assassinos procurados, mandou-me recado de que poderia me fazer chegar são e salvo a outro país. 

[Os pais às vezes não conhecem os filhos que têm. Mesmo quando a luta tomava rumos cada vez mais adversos para nosso lado, eu não considerei a hipótese de salvar-me sozinho, preferindo afundar junto com o navio.]

Enquanto isto, meu tio descobriu afinal uma maneira de se dar bem durante a ditadura: foi ser corretor na Bolsa de Valores de São Paulo. Ganhou muita grana e quase morreu do coração. Lembro-me de ter ido no hospital mas ele não estar recebendo visitas. Era incerto se, safenado, sobreviveria. Acabou durando mais uns 45 anos e morrendo nonagenário.

Quem morreu de imediato foi o corretor. Alertado de que não seria mais capaz de suportar o estresse da Bovespa, meu tio mudou de atividade, investindo seu polpudo pé de meia na construção de edifícios residenciais para vender ou alugar os apartamentos. Até que se cansou e, já suficientemente rico, pendurou a carteira.
...que foi vitorioso nos embates econômicos, mas perdedor na busca da felicidade"
Mudou para o último prédio que construiu, ocupando-se, a partir de então, apenas das tarefas de síndico e administrador in loco

Teve um filho do primeiro casamento e um de um segundo (que aparentemente foi feliz até a esposa morrer jovem). Fez muito por ambos mas quis controlar a vida deles; quando discordavam, jogava-lhes na cara tudo que com eles gastara. Dignos, cada qual por sua vez se distanciou, pois não precisavam de esmolas. Os meio-irmãos se voltaram contra o pai e se dão bem até hoje.

Isolou-se de uma vez por todas. Chegou a ter uma ou outra mulher morando com ele e acompanhando-o nas viagens pelo mundo que gostava de fazer. 

Quando meu pai morreu, há 15 anos, sumiu definitivamente da minha vida. Nem minha mãe visitava mais. 

Agora, uma pesquisadora brasileira que mora na França e faz tese na Sorbonne me contatou por e-mail a respeito do Caso Longaretti (ela desenvolve um alentado trabalho sobre os sangrentos conflitos entre os fazendeiros brasileiros e os colonos italianos atraídos para nosso pais após o fim da escravidão).

Orientei-a a procurar o meu tio, que estaria bem mais a par do assunto. E foi assim que fiquei sabendo da sua morte.

A trajetória dele lembra bem a do Cidadão Kane: desumanizou-se pouco a pouco, até morrer na ilha na qual se refugiou, vitorioso nos embates econômicos, mas perdedor no que realmente importa: a busca da felicidade. 

Que dinheiro nenhum proporciona. Pelas trilhas da ganância, só conseguimos arrastar-nos pela vida confortavelmente... amargurados!  

2 comentários:

Henrique Nascimento disse...

Bonita crônica, Celso. Tenho uma história muito parecida na minha família. Meu tio-avô, que nunca casou e não teve filhos, há 2 anos faleceu e deixou muito dinheiro em banco e imóveis. Agora os sobrinhos, inclusa minha mãe, que são os herdeiros diretos estão se "degladiando" pela herança, pois numa família sempre têm os ricos e os pobres de dinheiro e essa situação sempre gera conflitos. Acho muito triste isso. Como o dinheiro pode resultar em atitudes egoístas mesmo dentro de uma família!

celsolungaretti disse...

É, Henrique, o velho barbudo era mesmo profético. Em 1848 ele já escreveu que que o capitalismo detonaria os velhos laços familiares, ao compelir todas as pessoas à ganância e à busca de privilégios para si e mais ninguém. Aconteceu.

Se o lado paterno da minha família estilhaçou porque esse tio reagiu muito mal à infidelidade da esposa, afastando-se de todos os parentes e se tornando paranoico (achava que qualquer um que tentasse aproximar-se dele estaria atrás do seu dinheiro), o lado materno foi por causa da herança do meu avô.

Quando eu vivi numa comunidade alternativa, praticamente todos vínhamos de famílias esgarçadas. Criávamos uma família diferente para nós porque as originais haviam virado cinzas.

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