Por Celso Lungaretti |
Eu tinha 17 anos no mês de maio de 1968 e nem de longe imaginava estar vindo ao meu encontro aquilo que buscava desde o fim do curso ginasial: um rumo diferente para minha vida.
A hora da verdade chegou para mim na transição para o curso Científico, quando me dei conta de que meus objetivos não eram os mesmos dos jovens colegas do Colégio Estadual MMDC, na Mooca, zona leste de São Paulo.
Eles sonhavam com diploma universitário, bom emprego, família pequeno-burguesa padrão, respeitabilidade, segurança, respeito da comunidade. Fariam a felicidade dos seus pais, que tanto almejavam para eles o que não puderam ter, pois era muito difícil a classe média baixa alçar esses voos antes dos anos JK.
Só que, como na música do Raul Seixas, eu achava que tudo aquilo não passava de ouro de tolo e, mais ainda, um saco. Não sabia onde estava a saída dos trilhos já traçados para minha vida, mas a desejava ardentemente. Era isto ou décadas de tédio pela frente.
Por inexperiência, nunca me ocorreu o quanto eu precisaria mudar para recriar-me como uma pessoa diferente, nem quão traumáticas seriam algumas etapas dessa transformação de jovem tímido em aventureiro ousado.
"Acontecimentos se sucediam numa velocidade vertiginosa" |
Quando, em prisões militares do Rio de Janeiro e São Paulo, enfim tive tempo e serenidade para avaliar tudo pelo que passei de maio em diante naquele incandescente 1968, pareceu-me que em algum momento eu me desgarrei do solo e passei a ser carregado pela onda, passando a apenas reagir aos acontecimentos que se sucediam numa velocidade vertiginosa.
Já não importavam as teorizações, linhas políticas e palavras-de-ordem: a dinâmica da luta fazia valer suas prerrogativas, empurrando-me sempre para a frente.
E nada existia para mim no que deixara para trás. Por mais que o horizonte se fechasse, prenunciando a tempestade que desabaria sobre todos nós, eu considerava pior ainda a pasmaceira anterior.
[Como nos versos que Pete Townshend comporia mais tarde e foi incapaz de honrar, eu preferia consumir-me em chamas do que definhar aos poucos. Pensando bem, não me cabe criticá-lo, porque eu também não morri...
Depois dos dias de sonho, a difícil volta à realidade |
Daí ter sido tão difícil voltar à sociedade podre engendrada pelo capitalismo depois da grande derrota; precisei juntar os cacos durante um ano numa comunidade alternativa, antes de ser capaz de encarar de novo a luta inglória pela sobrevivência individual, como se não tivéssemos todos coisas melhores para fazermos da vida... juntos.]
Foi um rito de passagem e tanto! Quando, no final de 1968, eu e sete dos meus companheiros do movimento secundarista optamos por dar o passo mais arriscado de todos, ingressando na luta armada, eu já amadurecera minha nova identidade como ser humano e como revolucionário.
Minhas convicções básicas estavam formadas e não mudariam: passei o meio século subsequente defendendo a transformação em profundidade da sociedade brasileira, com o fim do capitalismo e a substituição da exploração do homem pelo homem por um regime de cooperação fraterna entre os seres humanos.
Desde o primeiro momento rechacei as posturas de conciliação de classe e evolução automática para modelos sociais menos desumanos, sem a necessidade de uma ruptura revolucionária. Hoje, os escombros do Estado do bem-estar social e a exacerbação ad infinitum da desigualdade econômica me dão inteira razão.
Tanques soviéticos marcharam sobre Praga, provando que o socialismo real não tinha face humana |
As vivências e consequências de 1968 foram fundamentais para a minha sintonia fina. A primavera de Praga me fez perceber que jamais se cumpriria a profecia de Lênin, de que o Estado, numa república socialista, iria definhando pouco a pouco, até extinguir-se por obsolescência. Na realidade, tendeu a crescer e enraizar-se cada vez mais, pois os novos privilegiados sempre defenderam com unhas e dentes o status a duras penas conquistado.
Se ainda tinha dúvidas sobre se a Revolução Húngara de 1956 confrontara a tirania de uma odiosa nomenklatura (conforme depreendera d'O fantasma de Stálin, do Sartre) ou fora instigada pelos vilões capitalistas, a invasão de Praga pelos tanques soviéticos as dissipou por completo. Passei a procurar livros que dissecavam como a revolução russa de 1917 se perdera pelo caminho, até dar lugar àquele Estado-Leviatã. Obras do Trotsky e do Isaac Deutscher, principalmente.
Defesa dos direitos humanos: prioritária! |
A bestialidade das torturas e a condição de extrema vulnerabilidade em que nos encontrávamos nos porões, à mercê de um Estado que tinha poder de vida e morte sobre nós, também pesou (muito!) na minha sintonia fina: decidi que nada, absolutamente nada, justificava submeterem-se seres humanos a tais tormentos e degradações.
Saí das prisões militares rompido em definitivo com tudo que era enfeixado no conceito de ditadura do proletariado e com as práticas autoritárias e totalitárias de todos e quaisquer governos, fosse qual fosse sua orientação ideológica proclamada ou real. Passei a colocar em pé de igualdade a defesa dos ideais revolucionários e dos direitos humanos, por mais difícil que seja, em alguns casos, conciliarmos ambas.
Talvez o maior legado de 1968 tenha sido, para mim, a constatação de que podemos viver muito bem com poucos bens materiais, nem estabilidade, nem segurança, nem certezas para o futuro, nem mesmo família.
Reunindo pessoas que compartilhavam os mesmos valores e ideais, nossas comunidades tribais foram uma espécie de trailer do que seria uma existência cooperativa e não-competitiva, em que todos se preocupassem com todos e dessem o melhor de si para as coisas saírem bem, esforçando-se por ser melhores do que jamais haviam sido até então.
Sítio Brotando a Emancipação, belo projeto dos nossos dias |
Não chegávamos a usar tal rótulo meio pomposo, mas, no fundo, tentávamos mesmo nos tornar homens novos... e deu para perceber que noutras circunstâncias, sem estarmos criando um oásis em meio ao deserto de uma ditadura feroz, poderia ter dado certo. Assim como a Colônia Cecília do final do século retrasado também poderia ter dado certo, sem as pressões que vinham de fora e a foram minando cada vez mais.
Sou um dos poucos esquerdistas que ainda se recordam da comparação marxista com o movimento das ondas: a de que a maré revolucionária atinge um ápice e depois se sucede um período de refluxo, que pode durar anos e até décadas, mas não infinitamente. E, no momento da retomada, esta se dará a partir do ponto mais alto atingido da vez anterior.
Para mim, tal ponto foi 1968 e a maré vazante já dura meio século, mas salta aos olhos:
— que o pesadelo capitalista marcha para o fim, e
— que a esquerda capaz de reatar os fios da História será a inspirada na contestação global de 1968, não a que voltou a dominar a cena no período de retrocesso subsequente, trazendo de volta influências retrógradas e nefastas como as do populismo, do nacional-desenvolvimentismo, do stalinismo, do caudilhismo e do reformismo à Bernstein.
Quem viver, verá.
Um comentário:
Celso, história rica de conteudo, com elucidação. Abraço
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