quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

EU E A DILMA: UM CASO DE DESAMOR À PRIMEIRA VISTA (3ª parte)

A apuração das bestialidades perpetradas pela ditadura de 1964/1985 contra os que exerceram o direito milenar de resistência à tirania e punição dos agentes do Estado responsáveis por tais crimes contra a humanidade vinha sendo negligenciadas desde 1985 pelo Estado brasileiro, na contramão das recomendações da ONU para países que se redemocratizam.

No final de agosto de 2007, a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça encerrou seu trabalho de apurar as circunstâncias da morte de militantes durante o regime militar e indenizar as famílias das vítimas cujas mortes haviam sido oficializadas e daquelas cujos restos mortais evaporaram, pois, como sabemos, tudo que é sólido desmancha no ar...

Reuniu, então, o que apurara num livro-relatório intitulado Direito à Memória e à Verdade. Ao ser lançado, contudo, o Alto  Comando do Exército lançou uma nota oficial de protesto contra a iniciativa. 

Ao invés de exonerar imediatamente os responsáveis por insubmissão e quebra da cadeia de comando, o presidente da República e comandante supremo das Forças Armadas, Lula, recuou de forma humilhante: ordenou a seus ministros Tarso Genro (Justiça) e Paulo Vannuchi (Direitos Humanos) que não tentassem mais levantar o assunto na esfera do Executivo, instruindo-os a apontarem aos insatisfeitos com a impunidade dos carrascos o caminho do Judiciário.

Recomendou, ademais, que fossem esquecidos os ressentimentos do passado, prestando-se tributo aos militantes que haviam heroicamente lutado contra o estado de exceção e esquecendo-se os seus algozes.

Depois, em abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal tomou uma das decisões mais escabrosas de sua história, ao considerar válida a auto-anistia que os assassinos e torturadores do regime se outorgaram no ano de 1979, em plena vigência da ditadura.

Anistia? Nem a pau, Juvenal! Tratara-se apenas de uma espécie de habeas corpus preventivo, com a complacência de um Congresso Nacional intimidado e coagido (a aceitação da barganha tinha como contrapartida a libertação de presos políticos e a permissão de volta de exilados). 

Fechadas as portas do Executivo e do Judiciário, uma última esperança de ainda vermos os Ustras e Curiós responderem criminalmente por seus feitos surgiu sete meses depois, com a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, vinculada à OEA:
"Os crimes de desaparecimento forçado, de execução sumária extrajudicial e de tortura perpetrados sistematicamente pelo Estado para reprimir a Guerrilha do Araguaia são exemplos acabados de crime de lesa-humanidade. Como tal merecem tratamento diferenciado, isto é, seu julgamento não pode ser obstado pelo decurso do tempo, como a prescrição, ou por dispositivos normativos de anistia".
Se o Estado brasileiro aceitasse o que é praticamente uma obviedade no Direito Internacional --a de que leis de anistia não têm força legal para impedirem o julgamento de assassinatos e torturas perpetrados por ditaduras--, como poderia sustentar posição diferente com relação aos demais assassinatos e torturas cometidos pela repressão política do regime militar? Era uma oportunidade de ouro para passar-se uma borracha sobre a aberração parida pelo Congresso. O vento levou.

Logo em seguida houve a troca de governo e, empossada Dilma, as entidades e os militantes dedicados à defesa dos direitos humanos passaram a cobrar-lhe, com insistência cada vez maior, o cumprimento da sentença da Corte Interamericana.

Até que, no final de 2011, ela definiu suas linhas de ação: ignorar olimpicamente a sentença da OEA e instituir a Comissão Nacional da Verdade, bem na linha do que Lula pregara: ao invés de mexer em vespeiros, multiplicar os elogios e homenagens aos massacrados. Me engana que eu gosto.

Percebendo o que estava para vir, ainda tentei salvar algo do incêndio, propondo meu nome como (anti)candidato a membro da CNV --alternativamente, indiquei o do companheiro Ivan Seixas, um dos principais responsáveis pelas investigações das ossadas de Perus. Pois duvidava de que os habituais e doutos integrantes de comissões desse tipo fossem suficientemente combativos para arrancar a verdade dos que ainda redobravam esforços para mantê-la oculta. Acertei na mosca: negligenciariam até o dever de providenciarem proteção para duas testemunhas marcadas para morrer.

Dilma, tendo colocado o trem nos trilhos, estava com pressa em fazer com que a criação da CNV fosse aprovada pelo Congresso Nacional e cumprisse sua serventia: a de ser o fato novo que faria ser definitivamente esquecida a sentença da Corte Interamericana. 

Então, aceitou a chantagem da bancada evangélica na Câmara Federal, que só admitiu apoiar a iniciativa do governo se este se comprometesse a não indicar, para membro da CNV, nenhum veterano da luta armada. A alegação foi a de que seria uma medida de reciprocidade, pois os militares também estavam vetados para o colegiado.

Tratou-se de uma estridente bofetada na cara de todos nós. Pois, quando ficou evidente para os defensores da ditadura militar que eles jamais conseguiriam convencer a opinião pública de que as atrocidades não haviam ocorrido, passaram a alegar que nós, os resistentes, também possuíamos esqueletos no armário, portanto os excessos teriam sido cometidos pelos dois lados. 

Ou seja, pretenderam dar a alguns episódios isolados o mesmo peso da prática generalizada da tortura como uma não admitida mas inequívoca política de Estado durante o regime dos generais (além dos assassinatos, que viraram norma a partir de 1971 e durante 1972, aumentando em muito quando as organizações guerrilheiras estavam nos estertores, fragilizadas e quase impotentes, pois a intenção era mesmo a de não deixarem vivos os militantes mais determinados).

Dilma, uma ex-guerrilheira, na prática coonestou a tese das viúvas da ditadura, igualando-nos aos nossos carrascos. Ficou muito claro para mim que, retórica política à parte, ela já deixara Wanda para trás há muito tempo. Estava noutra.

Levando em conta tudo que pessoas do seu círculo de relacionamentos já revelaram em entrevistas e escritos sobre o comportamento da Dilma, tenho a impressão de que ela ainda não haja superado os rancores de 1969, o ressentimento contra os militaristas.

Quando de sua primeira campanha presidencial, visitou a cidade onde mora o Darcy Rodrigues, companheiro de armas e de militância do Lamarca, a quem não via há quatro décadas. A única coisa que encontrou para lhe dizer foi: "Puxa, como você está velho e acabado!".

Espirituoso, Darcy rebateu: "É por isto mesmo que estou aqui. Vim pedir o telefone da esteticista que consegue te manter com aparência de jovem".

Quanto a mim, sofro encarniçada perseguição e abuso de poder por parte da Advocacia Geral da União, que há quase nove anos usa todo seu arsenal de filigranas jurídicas para impedir que eu receba uma indenização retroativa que o ministro da Justiça me concedeu no final de 2005.

A lei respectiva determinava o apagamento desses atrasados no prazo de dois meses. Depois de um ano sem receber satisfação nenhuma, em fevereiro de 2007 chegou-me uma mensagem propondo que aceitasse voluntariamente a alternativa de um pagamento parcelado que se prolongaria até dezembro de 2014.

Já entrara com mandado de segurança para que fosse cumprida a lei e decidi seguir em frente, pois meu direito não caíra do céu nem dependera da vontade da Corte: tive sangue derramado, minha vida foi quase tirada, sofri uma lesão permanente, enfrentei enormes dificuldades na minha vida pessoal e profissional, vi morrerem os companheiros mais estimados. Ceder seria desmerecer tudo que sofri.

A AGU, incapaz de encontrar qualquer justificativa para o não cumprimento de uma lei cuja revogação o Governo preferira não propor, vem há muito esgrimindo embargos e recursos para retardar seus efeitos. No Superior Tribunal de Justiça, venci o julgamento do mérito da questão por 8x0 e o de dois embargos de declaração por 7x0 e 8x0. Agora, um recurso extraordinário encontra-se para ser julgado no STF, com alegações praticamente idênticas às que o STJ fulminou. 

Para quem se sujeitasse a tomar uma decisão financeiramente desvantajosa e moralmente humilhante, a promessa era de que o débito seria zerado até dezembro de 2014. Caso isto tenha realmente ocorrido, a pendenga agora se evidenciaria como retaliação pura e simples, produzindo uma desigualdade inaceitável entre os anistiados que aderiram voluntariamente ao plano de pagamentos da União e os que ousaram exigir o cumprimento estrito da lei.

Mas, por que conto tudo isto aqui? Porque companheiros já intercederam por mim junto à Dilma e mesmo eu, para corresponder à iniciativa solidária que eles tomaram, engoli meu orgulho e mandei uma mensagem à presidente. A resposta a todos foi de que não cabia a ela intervir num assunto que estava na alçada do Judiciário.

Respondemos, claro, que o obstáculo era a determinação da AGU em evitar o cumprimento do que a lei estabeleceu e o julgamento do mérito da questão confirmou. Bastaria a AGU abrir mão de suas medidas protelatórias e tudo se resolveria de imediato. 

Um porta-voz, em nome de Dilma, praticamente repetiu, palavra por palavra, a mensagem anterior, como se a afirmação já não tivesse sido cabalmente desmentida. É o que ela sempre faz quando fica sem argumentos, fingir que não ouviu o que o outro lado declarou.

Sou um militante à moda antiga, mágoas pessoais não interferem em meus posicionamentos políticos. 

Mas, também não vejo motivo nenhum para, contrariando avaliações racionais, conceder tratamento diferenciado a Dilma. Ajo em consonância com o que ela é hoje, uma personagem da política oficial e nada mais. (continua)

Um comentário:

Valmir disse...

o caixão do comunismo teve muitos pregos: um dos mais decisivos foi um livro chamado O Zero e o Infinito..nesse romance um ex membro do governo e do partido comunista da Checoslováquia (o word quer assim) cai em desgraça, é preso e está sendo brutalmente interrogado...o protagonista Rubachov tem um momento de dialogo franco com seu interrogador e questiona o oficial da KGB pq faziam coisas como por exemplo mandar um camponês de uma fazenda coletiva para um GULAG por 10 anos por ter quebrado um trator por erro de operação.
O policial responde o seguinte; sabemos que esse infeliz não é um sabotador (que era acusação a que estava sujeito num caso desses)...ele é só xucro, tosco, ignorante e estupido...mas ele é tão tosco, ignorante, xucro, e estupido que não tem outra forma de educa-lo a não ser assim.
Dai fico vendo hoje os videos do you tube sobre as barbaridades dos motoristas russos e não posso deixar de pensar: véi, na boa? não adiantou nada...

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