Ao contrário de considerável parcela dos articulistas ditos de esquerda, li muito Marx, Engels, Lênin e Trotsky nos meus anos de formação política. E aprendi que a abolição do capital e o fim da sociedade de classes seriam o coroamento da marcha civilizatória, o final de uma longa caminhada das trevas para as luzes, do tacão da necessidade para a plenitude da liberdade.
Então, como os autores citados, só posso considerar patética a tentativa de fazer o relógio da História retroceder à Idade Média, quando os pastores de cabras aceitavam que a idiotia religiosa regesse cada esfera da vida social e da moral individual, e acreditavam que dizimar infiéis lhes abriria as portas do paraíso.
Desde o aiatolá Khomeini, sou totalmente contrário ao oportunismo da má parte da esquerda que, trocando o marxismo pela geopolítica, alinha-se com os inimigos da civilização, apenas porque, circunstancialmente, estão na contramão de EUA, Israel, França ou qualquer outro vilão da vez. É simplesmente aberrante a esquerda, filha do iluminismo, dar as mãos a quem quer anular o iluminismo e todas as suas consequências!
Também me irrita profundamente a forma como os terroristas de Alá ajudam a indústria cultural a incutir no cidadão comum a paranoia face aos diferentes. Num momento em que o capitalismo putrefato o expõe aos piores rigores econômicos e à vingança da natureza, a existência de um bicho papão é mais do que conveniente para quem pretende mantê-lo submisso e conformado, encarando as catástrofes climáticas como fatalidades, a desigualdade como ordem natural das coisas e a polícia como protetora, suportando sem chiar as agruras nossas de cada dia.
O que a indústria cultural insidiosamente incute nos seus públicos, martelando sem parar? A sensação de que tudo vai bem na vidinha de todos até que surge qualquer ameaça externa, como assassinos seriais, zumbis ou... terroristas. Os papalvos devem prezar a normalidade e temer unicamente aquilo que a quebre. É onde se encaixa, como uma luva, a bestial matança perpetrada pelo Estado Islâmico na 6ª feira 13.
Desconheço autoproclamados inimigos do sistema mais convenientes para o dito cujo do que os carniceiros de Alá. O ataque pirotécnico da Al Qaeda ao WTC deu pretexto a uma longa e terrível temporada internacional de estupro dos direitos humanos, da qual finalmente estávamos emergindo quando o EI entrou em cena para fornecer novos e valiosos trunfos propagandísticos para os trogloditas da direita. Se depender dos jihadistas, a guerra ao terror nunca acabará.
Por último, os verdugos de Alá, com seus atentados covardes contra civis e suas repugnantes execuções de prisioneiros, agridem de tal forma a sensibilidade dos cidadãos equilibrados que facilitam a disseminação de preconceitos contra qualquer forma de resistência armada a governos totalitários.
A direita deita e rola nesse clima de rancor cego, que propicia a satanização dos combatentes que, em situação de extrema inferioridade de forças, desafiaram heroicamente o terrorismo de estado nos anos de chumbo; propiciou a satanização de Cesare Battisti, mediante a afixação de um rótulo que nem sequer fora utilizado no momento dos acontecimentos (a Justiça italiana não o acusou nem condenara como terrorista). Serve para tentar socar-nos goela adentro uma lei que permitirá enquadrar as mais inofensivas formas de protesto como crimes gravíssimos.
Mandar bala em jovens que alegremente socializavam num boteco é coisa de nazista, de psicopata! Para tentar compreender personalidades tão monstruosas, só mesmo uma abordagem psicanalítica como a do escritor português João Pereira Coutinho (vide íntegra aqui), com a qual encerro esta divagação:
"...quando olho para o rosto dos terroristas, o que vejo é a felicidade da matança. Eles não matam apenas por uma religião (que mal estudaram) ou por razões geopolíticas (que nem sequer entendem).
Eles matam porque gostam de matar. Como dizia Ernst Jünger, eles estão tomados pela 'vermelha embriaguez do sangue'.
...o que me interessa no relato [de Jünger em seu livro A Guerra como Experiência Interior] é a dimensão de êxtase que o combatente sente na batalha. A sociedade pode refrear 'a pulsão dos apetites e dos desejos', escreve ele (como escreveu Freud). Mas a parte bestial do ser humano não pode ser abolida da nossa natureza.
Somos feitos de razão e sentimento. Mas também de fúria e instinto. E, quando provamos a loucura da guerra, emergimos como 'o primeiro homem', o homem das cavernas.
...embalados pelo conforto da paz, somos incapazes de entender, muito menos aceitar, a felicidade dos terroristas. A felicidade de homens como nós que provaram e gostaram do sangue. E que exatamente por isso querem mais e mais e mais –até que a morte nos separe".
5 comentários:
"É simplesmente aberrante a esquerda, filha do iluminismo, dar as mãos a quem quer anular o iluminismo e todas as suas consequências!"
a esquerda "nossa", da vulgata, da repetição insensata de clichês sem sentido, nada tem a ver com o iluminismo mas sim com uma nova religião; igualzinho a todas as outras: com dogmas, doutrinas, santos, demônios, heresias, fogueiras, inquisições (arthur koestler está aí pra não nos deixar mentir). Aliás já disseram bem que Marx se inscreve mesmo é na tradição dos patriarcas judeus fundadores de religiões mundiais..como Abraão, Moises...ou Freud ou mesmo Trotsky. Aqui em nosso país, onde sempre levam a estupidez básica a um patamar nunca imaginado, estão transformando ate o ateísmo em religião (depois que eles começaram com isso deixei de ser ateu)...eles todos até vivem bem sem deus mas não passam sem uma religião de modo algum. Por isso apoiam esses carniceiros do diabo..
Você e sua REDE estão comprados pela e não falam uma palavra do mar de lama tóxica de Minas Gerais. Prefere falar de Estado Islâmico diante de uma tragédia destas, uma catástrofe ecológica das maiores do mundo. Você só engana iniciantes Lungaretti.
Que "rede", cara pálida? Este blogue é feito unicamente por mim, de cabo a rabo.
Quanto à catástrofe ecológica, foi realmente uma aberração e um crime. Mas, tanta gente já disse o que havia para ser dito que eu preferi não chover no molhado. Como velho jornalista, limitar-me à mera repetição do que está em todo lugar ofenderia meu brio profissional. Quando não tenho nada de diferente para dizer, prefiro não dizer nada.
Curiosamente, a mesma crítica foi feita ao tratamento dado pela "Folha de S. Paulo" aos dois assuntos. A resposta da ombudsman Vera Guimarães Martins foi bem pertinente:
"...as queixas sobre o espaço conferido à tragédia francesa, em detrimento do desastre nacional. É uma comparação indevida, engajada, me perdoem a aspereza dos termos, em um dualismo simplório e por vezes provinciano.
Não faz sentido pretender o mesmo tratamento para os dois eventos, porque as consequências geopolíticas e econômicas dos atentados em Paris são indubitavelmente mais vastas e disseminadas do que as do rompimento da barragem —além de uma coisa não decorrer da outra".
Caro Celso: Gostei muito deste artigo. A defesa do terrorismo e do relativismo cultural é totalmente bárbara e insana, embora eu não justifique a guerra ao terror, porque é outra forma de terrorismo.
As pessoas que se dizem de esquerda e apoiam o ISIS deveriam ler o discurso de Marx quando a independência de Polõnia e outros textos contra o jacobnismo, o blaquismo e o niilismo. Mas, para isso deveriam averiguar quem foi Marx.
Creio que o homem da caverna não era tão crueis, mas ninguém pode mostrar isso. Abraços, Carlos
Carlos, sinto-me honrado com sua visita.
Não sei se me fiz entender, mas também abomino a guerra ao terror. Daí bater pesado nesses desmiolados que só atraem a desgraça para seu povo: os que nada têm a ver com o Estado Islâmico mas acabam sendo atingidos por bombardeios, os que são presos e sofrem o diabo por causa da paranoia anti-terrorista que os atentados geram, etc.
A postura dessa gente é totalmente diferente da dos resistentes de esquerda. Eles se escondem no meio da população, que acaba servindo-lhes de escudo, sem nenhum remorso. Nós colocávamos a segurança dos não-combatentes como prioridade máxima, a ponto de o Lamarca ter idealizado o conceito de coluna móvel estratégica (ou seja, que se movimentasse continuamente por um território amplo, atacando e se retirando com rapidez) exatamente para que a repressão não pudesse barbarizar os sertanejos. Ele não queria "enraizar" a guerrilha e ir recrutando os habitantes da região porque sabia que as consequências seriam terríveis para eles.
O ramo terrorista do islamismo não tem absolutamente nada a ver conosco. É um erro crasso qualquer aproximação, simpatia ou condescendência para com ele.
Um forte abraço!
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