quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O QUE PODEMOS ESPERAR DO DEBATE DA GLOBO?

Daqui a pouco começará o debate eleitoral da Globo que terá papel decisivo na definição de:
  • se haverá 2º turno na eleição presidencial;
  • e, em caso afirmativo, qual dos dois vai enfrentar Dilma Rousseff, que nem um terremoto tirará desde já da disputa.
Será uma enorme surpresa se José Serra, Dilma Rousseff e/ou Marina Silva apresentarem desempenho diferente do que vêm tendo até agora: convencional e insosso.

Do franco atirador Plínio de Arruda Sampaio se podem esperar as habituais ironias ferinas, uma boa estilingada na Globo e a criação de embaraços para os três que estão disputando o jogo a sério.

Serra e Marina dependem de que Dilma cometa um grave erro na noite de hoje.

Por mais que a grande imprensa esteja empenhada em evitar uma decisão imediata, só logará êxito se tiver algo com que trabalhar.

Apesar da lenda, o Jornal Nacional não criou algo no vazio, ao apresentar Collor como grande vencedor do célebre debate com Lula.

O primeiro tinha estado mesmo num de seus melhores dias, e o segundo num de seus piores. Então, havia um bom ponto de partida e os discípulos de Goebbels souberam dele tirar o máximo proveito.

Se Dilma não entregar o ouro pro bandido, ficará difícil. Manipulação tem limites.

Mesmo assim, haverá também a possibilidade de que o PIG crie qualquer fato novo no fim de semana. A dobradinha Veja/Folha de S. Paulo está aí para isso.

LEOPARDOS NÃO PERDEM AS PINTAS

Repórter da Folha de S. Paulo testemunhou o ministro Gilmar Mendes recebendo telefonema de José Serra antes de pedir vistas para truncar o julgamento, no STF, do recurso do Partido dos Trabalhadores contra a obrigatoriedade de o eleitor apresentar dois documentos na hora de votar.

Como Dilma Rousseff tem o dobro da intenção de votos de Serra entre eleitores com baixa escolaridade, o PT teme que muitos deles se atrapalhem e a medida acabe desfavorecendo sua candidata.

Nenhuma novidade quanto a Gilmar Mendes: os mesmos personagens têm sempre os mesmos comportamentos nas mesmas situações.

O que surpreende é a eternidade transcorrida até a ficha cair para os governistas: a medida agora contestada teve a sanção de Lula, sem vetos.

ELEIÇÕES 2010: PIOR, IMPOSSÍVEL

"Foi uma campanha muito feia. Não só porque não teve nem um momento de grandeza sequer. Tudo foi chão, vazio, devedor. De tantos meses de campanha, não ficará NEM sequer uma frase, um slogan, um sinal de ação ou mesmo de um instante distinto pela inteligência. Se campanha prenunciasse o governo vindouro, o eleitor deveria ir em lágrimas para a urna.

"Mas, com franqueza, a responsabilidade não é só dos candidatos e dos seus partidos. Vem de longe. Começou nas devastações e na incultura da dominação militar, e na profundidade com que as cravou na vida brasileira.

"A parte negativa que cabe ao passado mais recente é acomodar-se naquele legado da ditadura. E até reforçá-lo em vários casos, como a qualidade da prática política. Nesse sentido, com o olhar para trás, é só ver o que foram a Câmara e o Senado na legislatura que logo se encerrará, na governança por medida provisória, nas alianças e nos escândalos do Executivo.

"Com o olhar para frente, é só ver o padrão médio dos candidatos que se oferecem para o Congresso." (Jânio de Freitas, em dia inspirado)

AINDA SOBRE O ARTISTA MÍTICO QUE HABITA A MEMÓRIA DA SUA CANÇÃO

Depois de finalizado, postado e expedido o artigo Vandré: de rei a trapo em 58 dias, ocorreu-me outra solução para a charada, que honestamente dividirei com vocês, já que nunca tive compromisso com prestígio e infalibilidade.

Freud nos ensinou que lapsos são significativos, costumam trazer à tona a verdade que não se pode revelar ou não se quer admitir.

Então, chamou-me a atenção que, na entrevista de 2004, Vandré situou sua volta ao Brasil no final da década de 1970. Evidentemente, a imprecisão foi atribuída a problemas mentais.

No Dossiê Globo News, entretanto,  ele agora forneceu as datas de chegada e de anúncio da chegada com total precisão: 14 de julho e 11 de setembro.

Parece que, tanto em 2004 quanto agora, ele nos deu uma dica: os motivos de sua mudança de comportamento devem ser buscados em 1973.

Veio-me à lembrança o episódio do dirigente bolchevique que, ao depor num dos julgamentos stalinistas, admitiu os crimes mais inverossímeis, como espionagem a serviço das potências ocidentais e tentativa de envenenar os reservatórios de água soviéticos.

Mas, lá pelas tantas, encaixou a frase: "Todos sabemos que a tortura é um instrumento medieval de justiça".

Os tacanhos Torquemadas acreditaram que ele estivesse negando a existência da tortura na URSS. Mas, na verdade, mandara um recado cifrado, de que se acusava daqueles absurdos para que não o supliciassem mais.

Não fui o único a notar que Vandré nos deu toques nas entrelinhas.

Mas, por que tantos rodeios, afinal? O que o impedia de, em plena democracia, dar nomes aos bois?

Aí, lembrei-me das três ou quatro horas que papeamos em 1980, no seu apartamento da rua Martins Fontes (SP).

O mais significativo de tudo foi a resposta que deu quando perguntei se, aproveitando a liberação pela censura da "Caminhando" e o sucesso que fazia na voz da Simone, ele não aproveitaria para reatar sua carreira.

Respondeu que a música poderia voltar mas, se ele tentasse voltar junto, correria sério risco pessoal.

Perguntei se havia sido ameaçado. Desconversou.

Concluí que ele estivesse se referindo aos atentados terroristas então cometidos pela  linha dura, na tentativa de inviabilizar a  distensão lenta, gradual e progressiva  do ditador Geisel. Se incendiavam bancas de jornais e expediam cartas-bombas a torto e a direito, o que lhes impediria de atentarem contra um artista-símbolo?

Mas, e se a razão do seu temor fosse outra? E se houvesse passado por situações tão traumáticas que a possibilidade de revivê-las fosse totalmente inadmissível para ele?

Ora, com certeza os militares se aproveitariam disto. Por exemplo, com uma variante do velho artifício do  policial ruim x policial bom.

Com os presos políticos mais jovens essa jogada era quase sempre tentada. Uns torturadores se mostrando mais bestiais ainda que de hábito, enquanto outro agente fingia compadecer-se e estar tentando ajudar.

Com militantes quase nunca colava. Mas, com um artista, quem sabe?

E, se os espantalhos seriam naturalmente os gorilas das outras Armas, mais identificadas com a repressão política, os aviadores se constituiriam na opção óbvia para o papel de amigos e protetores do Vandré.

Terão tentado isso com ele? Terá ele acreditado?

O certo é que esta possibilidade faz muito mais sentido do que aceitarmos como normal sua devoção pela FAB, a tecla mais desafinada de toda sua entrevista de sábado e de todas as suas declarações de um bom tempo para cá.

Em 1980, ele deixou transparecer  para mim que utilizava as esquisitices para ser considerado inofensivo por aqueles que poderiam fazer-lhe mal.

Agora também ele ora parece estar encenando uma farsa, ora ter um motivo para suas ações que não quer ou não pode revelar.

Entre os que foram submetidos a essa máquina de triturar seres humanos, há os que continuam paranóicos até hoje. Não seria nada surpreendente e inaudito se Vandré ainda temesse estar na mira dos antigos algozes, e visse nos oficiais da FAB seus guardiães.

ADRIANA TANESE NOGUEIRA: "UMA ANÁLISE DE VANDRÉ"

Para entendermos  e refletirmos sobre o que aconteceu com Geraldo Vandré, a opinião de uma terapeuta tem tudo a ver. 

Ainda mais sendo a de uma profissional altamente conceituada, como Adriana Tanese Nogueira -- que, ademais, é filha de um ex-militante da resistência à ditadura e está contando as memórias familiares num livro que posta, capítulo por capítulo, num de seus blogues, à medida que os vai escrevendo. 

Então, é com prazer que reproduzo aqui o artigo Uma análise de Vandré, da nossa boa Adriana, uma autora que vocês não devem perder de vista:
Sempre tive a convicção interna de que é preciso estar à altura do que somos. Quem já não se pegou tendo algumas idéias fantásticas? Ou sentindo ter que realizar uma missão muito maior do que si próprio?

Acho que algo assim aconteceu com Geraldo Vandré. Minha filha de 12 anos ouvindo outro dia, pela primeira vez, a música Caminhando ficou profundamente emocionada. Não foram só as letras que lhe chamaram a atenção, mas também a voz de Geraldo Vandré, o tom, a alma que está presente na forma como ele canta. É profunda, é sentida, é tão sagaz e intensa que tem o efeito de um megafone gigantesco.

Caminhando, um hino. A melhor música de 1968, digna das melhores produções musicais do ano mais emocionante e radical da história ocidental, quando se acreditava que se podia mudar o mundo. O ano em que nos países civilizados de 1º mundo, jovens e intelectuais acordaram do longo sono da hierarquia social e das tradições conservadoras para respirar o ar fresco da vida nova e ousar querer mais, ousar mudar, ousar dizer NÃO.

Infelizmente, no nosso Brasil subdesenvolvido, 1968 foi o ano da catástrofe. Desde aquele ano o “não” foi erradicado da cultura brasileira. Já notaram como todos dizem “sim”? Se fazem o que prometem é outro assunto, se ligam, se mantêm compromissos, se comparecem no horário marcado, se realizam o que prometeram, são fieis à palavra dada - tudo isso são outros quinhentos. O importante é dizer “sim”, nunca entrar em atrito. A oposição é proibida (porque no imaginário significa morte, fim); a hipocrisia aceita (e todos vivemos no jeitinho brasileiro). Enquanto a ONU decretava 1968 como Ano Internacional dos Direitos Humanos, no Brasil começou a orgia de desrespeito aos direitos humanos e ao Humano em geral.

Em setembro de 1968, no III Festival Internacional da Canção, Vandré canta o Pra não dizer que não falei das flores. Foi um sucesso imediato. Todos, de alguma forma, compreenderam o que significava, a letra penetrou rapidamente debaixo da pele como uma pomada regenerante. Logo em seguida, Vandré perdeu seu emprego e antes da emissão das novas Tábuas da Lei (o AI-5) da Toda-Poderosa Ditadura Militar, em dezembro daquele mesmo ano, Geraldo Vandré já estava fora do Pais. Por causa de um música.

Como muitos exiliados, ele não gostou de sua nova vida. Arrancado de sua patria para salvar-se, o cantor fraquejou e cedeu às drogas e à depressão. Foi sua primeira grande falha. Ele não soube pagar o preço pelo presente que doou ao Brasil: uma simples música. Mas uma Grande Música, o hino de uma geração, o sentido de uma luta, o sonho de um povo, de muitos povos. A verdade cantada em poesia de que todos somos iguais, “braços dados ou não”, de que há muitos soldados “perdidos com armas na mão”. E o militarismo não é uma barbarie destinada a acabar um dia? Na Itália, há muitos anos é dada a opção de fazer o serviço “civil” no lugar do serviço militar. Os homens novos não identificam a masculinidade com o uso da força, isso é coisa do passado.

É também uma verdade psicológica e sociológica de altissimo valor que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Conhecimento que não se transforma em ação não serve para nada, é vazio e enganoso. Saber é fazer. Saber é ser; logo, é agir. E isso porque temos “os amores na mente” e a “História na mão”: é por amor que se muda o mundo e as lições do passado devem ensinar alguma coisa. Povo sem passado é povo burro que patina no presente (e isso vale do ponto de vista psicológico também: é preciso comprender a própria história para mudá-la). Somente assim, “caminhando e cantando, e seguindo a canção”, poderemos aprender e ensinar “uma nova lição”, criar um novo mundo.

É essa “nova lição” que o regime militar exorcizou perseguindo e depois “confundindo” a cabeça do criador dessas palavras. Convinha aos exímios generais uma mais primitiva divisão do conflito entre bons e maus, fardados e “terroristas”, protetores da pátria e “malucos assassinos”. Era mais digerível uma versão simplória da realidade, regada a muito ódio, exaltação e medo.

A Caminhando era mais poderosa do que bombas e ameaças. Por isso, quando seu incauto autor resolveu cometer o seu segundo erro e ceder à angústia da saudade, voltando para a pátria amada cedo demais (1973), ele foi “acolhido” pela gentil força armada que “cuidou” dele num agradável hospital psiquiátrico, onde Vandré permaneceu isolado dos outros pacientes. Eis então o que significa na truculenta língua do regime militar o projeto transformador contido na Caminhando: uma loucura. Uma doença tão perigosa que deveria ser mantida separada dos outros malucos que ocupavam a simpática clínica para doentes mentais.

Reflitamos. Desde quando as Forças Armadas "acolhem" os cidadãos nos aeroportos? As Forças Armadas acolhem generais, presidente, embaixadores e altos funcionários. Cidadãos são acolhidos em suas chegadas ao País por familiares, amantes, amigos e colegas. Forças Armadas "acolhem" cidadãos somente quando os prendem ou os sequestram. Como Vandré não era um alto oficial, e não havia matado ou roubado, ele deve ter sido sequestrado para ser "reprogramado".

É certo. Num regime militar onde a livre expressão é proibida, onde todas as fontes, oportunidades e instrumentos de reflexão crítica são proibidos, “as flores pelo chão” devem ser incineradas e sua existência negada.

Foi assim que o poeta, cuja Musa genial inspirou-lhe a grande canção de esperança, foi hospedado por quase dois meses numa clínica psiquiátrica para “rever” suas idéias. O que mais a Musa poderia sugerir ao poeta, justamente nos anos mais negros da história do Brasil? O regime militar preocupou-se, então, em “explicar” ao poeta com "métodos apropriados" que suas músicas afinal não passavam de lorotas tolas, que sendo ele um cantor de porte, não como o Caetano e o Gil que “fazem qualquer coisa”, não lhe cabia permanecer no mesmo campo musical.

Tiveram sucesso. Hoje, Geraldo Vandré só faz “música erudita”, aquela que poucos entendem (qual melhor jeito de mantê-lo longe do povo?). Ele inclusive não gosta da cultura de massa (nem eu gosto, mas ela virou o que virou porque foi expurgada anos atrás de todos os pensadores críticos!) e é por isso que não canta mais para o Brasil.

Não só, surpreendentemente, Vandré agora tem a Força Aérea Brasileira como seu xodó, se aloja em suas instalações, carrega papel impresso da FAB, símbolos e tudo o mais. Como ocorreu tal mudança?

Ao assistir à entrevista da Globo pelos 75 anos de Vandré, a impressão que tive foi de um homem quebrado, mas "disfarçado". Ele não parece amargurado, arrependido, deprimido. Poderia sentir-se assim, tem motivos para isso, seria totalmente normal. Ele também não parece um homem que mudou de idéias, que deixou de acreditar em algo e passou a pensar diferente, nem que fosse de forma fanática. Qual é a dele, então?

Ele parece uma pessoa cuja estrutura mental foi embaralhada por um novo e diferente maço de cartas, que nada tem a ver com a identidade original. Imaginem jogar baralho e de repente aparece aqui e alí uma carta com outro desenho, outro significado e que pertence a outro tipo de jogo. Imaginem dois “jogos” convivendo na psicologia de Vandré aparentemente de forma “pacífica”, pois uma situação dessas deveria levar ao desequilíbrio mental. Mas o Vandré parece normal. É como se, de alguma forma, tivessem conseguido “reprogramar” o cantor de modo a manter sua aparente sanidade mas atuando em "modo diferente”.

Celso Lungaretti sustenta a tese da lavagem cerebral, não em sentido amplo, mas estrito. Ela acontece quando se submete uma pessoa a uma condição de total dependência de seus carcereiros. Estes controlam tudo o que a pessoa faz, desde o que e quando ela come e vai ao banheiro, até o sono e todos seus movimentos. Dá para imaginar o que isso significa? Estar totalmente à mercê do inimigo cruel?

Após um tempo assim, por instinto de sobrevivência e busca sentido (para não ficar louco), a vítima passa do sentimento de pânico e abandono total àquele de buscar conivência com seus algozes. Se, além dos “cuidados materiais" pelos quais a vítima passa, são-lhe soministrados também “cuidados psicológicos”, tipo “ensinar-lhe” o que ela deve pensar e acreditar, temos um prato cheio para compreender a esquisita entrevista de Geraldo Vandré à Globo.

Além de lento, o homem não é explicitamente patético, como seria alguém que fracassou em seu propósito de vida e choraminga; também não mudou de idéia, como disse, pois hoje, de alguma forma, ele até nega ter tido “idéias”; não está amargurado, como teria todo direito a estar. Ao contrário, aparenta uma estranha leveza e distância, mas também não está fazendo algo de concreto. Tudo é confuso e nublado. Algumas coisas ele “não lembra”, mas as letras de suas músicas ele lembra perfeitamente.

Talvez só lá encontraremos Geraldo Vandré, no fio da meada que a Musa lhe inspirou, mas que o homem não conseguiu aguentar. Aquele fio da meada de sanidade mental que os “preocupados cuidados militares” não conseguiram apagar - e nunca irão apagar da bagagem cultural do Brasil. Morre o homem consciente, mas não morre a música revolucionária, justamente porque "a vida não se resume em festivais".
Psicoterapeuta formada em Milão (Itália) e radicada na Flórida (EUA), Adriana Tanese Nogueira é idealizadora do blogue Psicologia Dialética e da ONG Amigas do Parto.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

VANDRÉ: DE REI A TRAPO EM 58 DIAS

"Ele foi um rei, e brincou com a sorte
Hoje ele é nada, e retrata a morte
Ele foi um rei, e brincou com a sorte
Hoje ele é nada, e retrata a morte

Ele passou por mim, mudo e entristecido
Eu quis gritar seu nome, não pude
Ele olhou pra parede, disse coisas lindas
Disse um poema pr'um poste, me veio lágrimas

O que fizeram com ele? Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei
O que fizeram com ele? Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei"
("Tributo A Um Rei Esquecido", Benito Di Paula)

Ainda sobre o enigma Geraldo Vandré, eis mais elementos para corroborar minha tese  de que, a despeito de tudo que haja sofrido antes de deixar o País do AI-5, sua transformação de rei em trapo se deu na volta para o Brasil, quando a ditadura dele se apossou em 14/07/1973 e só o liberou em 11/09/1973, anunciando então sua chegada como se tivesse acabado de desembarcar.

Eis duas declarações de 2004, em entrevista que Vandré então concedeu a Ricardo Anísio, do Jornal do Norte:
"...eu voltei [do exílio] doente e meio perdido em meu país, quando justamente os militares  me  acolheram  (!) e  me deram tratamento médico (!!), e  me alojaram (!!!)".

"... havia escrito a canção ["Fabiana"] porque sempre fui um apaixonado por aviões. Agora, a minha relação com as Forças Armadas hoje, é de muito  respeito mútuo  (!).  Eles me tratam com dedicação (!!) e  sabem das minhas questões existenciais (!!!)".
Na verdade, Vandré foi mas é internado numa clínica psiquiátrica e, em depoimento que li na internet, uma companheira que também estava lá relatou que ele se encontrava sob vigilância de agentes da ditadura, impedido de falar com os outros pacientes.

Há também referências a uma internação em 1974, numa clínica do bairro de Botafogo (RJ), depois de uma crise de nervos durante a qual teria ameaçado esfaquear a irmã.

Mas é a do ano anterior que realmente importa. Pode-se dizer que se constituiu num divisor de águas. Vandré era um antes e se tornou outro depois.

Vale citar o Timothy Leary, aquele mesmo do LSD, que foi também uma das mais respeitadas autoridades científicas no estudo das lavagens cerebrais:
"O trabalho de lavagem cerebral é relativamente simples, consistindo basicamente na troca de alguns circuitos robóticos por outros. Assim que a vítima passa a encarar o reprogramador como a criança encara seus pais - fornecedores de segurança vital e de apoio para o ego - qualquer nova ideologia pode ser inculcada no cérebro.

"Durante o estágio de vulnerabilidade, qualquer pessoa pode ser convertida a qualquer sistema de valores. Facilmente podemos ser induzidos a entoar 'Hare Krishna, Hare Krishna' como 'Jesus morreu por nós', ou a bradar 'abaixo o Vaticano', aceitando plenamente as ideologias que estão por trás desses temas".
Fragilizado por tudo que sofrera, incluindo problemas com drogas, Vandré pode muito bem ter, naqueles suspeitíssimos 58 dias, sido induzido a bradar "viva a FAB", louvando a morte.

Enquanto não soubermos no que realmente consistiu o tal  tratamento médico  proporcionado pelos militares quando  acolheram  e  alojaram  o Vandré, não poderemos, em sã consciência, descartar a hipótese de lavagem cerebral.

Com a palavra, os jornalistas investigativos e os historiadores.  

BRASIL OFICIAL: O DO AUÊ NA BOVESPA. BRASIL REAL: O DO TRABALHO ESCRAVO.

O retrato sem retoques do Brasil está nesta notícia de hoje: a Lojas Marisa se comprometeu a auditar seus 50 fornecedores diretos e subcontratados, para evitar novas multas como a que recebeu em março, quando fiscais do trabalho encontraram trabalhadores bolivianos em condições análogas à escravidão numa oficina que lhe prestava serviços.

É nisto que deu a terceirização, saudada como um grande avanço pelos arautos do neoliberalismo.

Não só pulverizou direitos trabalhistas, tornando os trabalhadores mais vulneráveis do que nunca às manobras patronais, como propicia casos de exploração extrema e aviltante -- não só nos grotões longínquos, mas na capital paulista, a  Meca  do capitalismo brasileiro.

Antes de Lula chegar à Presidência, os bem pensantes costumavam destacar as enormes diferenças existentes entre o  Brasil oficial, da propaganda multicolorida, e o  Brasil real, da miséria sofrida.

Depois, muitos companheiros sofreram súbita e inexplicável atrofia do espírito crítico, passando a trombetear aos quatro ventos a propaganda multicolorida, como se a amenização das injustiças, efetuada a conta-gotas, fosse suficiente para quitar a imensa dívida social.

Não é. Nem a pau, Juvenal!

Daí a posição que tenho adotado em relação à sucessão presidencial, defendendo o apoio a qualquer um dos quatro candidatos anticapitalistas (Ivan Pinheiro, Plínio de Arruda Sampaio, Rui Pimenta e Zé Maria) no 1º turno e só admitindo o voto útil no 2º turno, que é o momento no qual nada mais nos resta se não evitarmos o mal maior.

O qual, nesta eleição, atende pelo nome de José Serra (o ex-presidente da UNE que hoje não passa de um neodireitista), repetição como farsa da tragédia do  corvo  Carlos Lacerda (o ex-comunista que teve responsabilidade direta na morte de um presidente legítimo e na derrubada de outro).

Parafraseando o Chico Buarque, havendo 2º turno faremos tudo que pudermos para eleger a alternativa a Serra, "mas sem fantasia, que da noite pro dia", por esse caminho, o Brasil real "não vai crescer".

O que temos, no oitavo ano do governo petista, são:
  • apoteoses capitalistas como a que teve lugar na Bovespa quando do lançamento de ações da Petrobrás;
  • sucessivos recordes de faturamento dos bancos, que aqui encontraram seu paraíso;
  • um ridículo 75º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano;
  • a constatação, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, de que nosso IDH seria ainda mais insignificante caso se desse o justo peso ao fator  desigualdade social.
  • etc.
Somos um dos países mais desiguais do mundo e o terceiro mais desigual da América Latina, onde só a Bolívia e o Haiti conseguem ser piores do que nós.

Este é o Brasil real, que o capitalismo jamais redimirá.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

É SÓ ISSO QUE UMA VIDA VALE?!

Os dois melhores filmes de tribunal a que assisti na vida são do grande diretor Sidney Lumet: o Doze Homens E Uma Sentença original (de 1957) e O Veredicto (1982).

Neste último, um advogado em busca de redenção pessoal e profissional (Paul Newman) consegue derrotar um luminar do Direito (James Mason) e a influência avassaladora do poder econômico, provando que uma mulher saudável havia sido transformada em vegeral por erro médico cometido num hospital católico.

Tão indignados ficam os jurados que pedem ao juiz licença para concederem à família da vítima uma indenização bem maior do que a pleiteada pelo próprio advogado.

Foi o que me veio à lembrança ao ler que o Tribunal de Justiça de São Paulo condenará o jornalista Pimenta Neves a pagar aos pais da também jornalista Sandra Gomide (foto) R$ 300 mil, por havê-la assassinado com um disparo nas costas e um tiro de misericórdia quando já estrebuchava, há dez anos.

Dois desembargadores já definiram que o homicida confesso será obrigado a reparar a dor causada à família de Sandra. O terceiro e último pediu vistas, mas seu voto não vai alterar o resultado final.

No entanto, justiça mesmo se faria multiplicando o valor por mil.

A 'FOLHA' NÃO TOMA JEITO: DEPOIS DOS FACTÓIDES, O CONFRONTÓIDE...

Estando, como estou, em maré de decepções com antigos ídolos, é reconfortante constatar que um dos meus modelos jornalísticos continua em plena forma.

Alberto Dines acaba de trazer a palavra certa no momento certo, ajudando a esvaziar uma beligerância criada e alimentada por manipuladores da opinião pública, conveniente apenas para quem busca desculpas para a derrota anunciada e para pescadores em águas turvas.

O velho guerreiro do Jornal dos Jornais -- uma das principais tricheiras da resistência da imprensa à ditadura militar na década de 1970 -- disse tudo o que havia para ser dito, em Mais jornalismo, menos panfletagem, cujos primeiros parágrafos reproduzo e subscrevo entusiasticamente:
"Este confronto entre o presidente Lula e a imprensa é artificial, não somos a Venezuela nem a Argentina. Este confronto é na realidade um confrontóide, parafraseando a semelhança fato-factóide.

"Na sexta-feira (24/9) em Porto Alegre, ao lado da sua candidata, o presidente pregou o exercício da humildade para lidar com o noticiário que desagrada. Foi taxativo:
"'Quando a matéria dos jornais sai falando mal da gente, ninguém gosta. Quando fala bem, o ego cresce. Precisamos de humildade para nem ficar com muito ego quando se fala bem nem ficar com muita raiva quando se fala mal'.
"A mudança de tom foi devidamente registrada pela Folha de S.Paulo e pelo Estadão, no sábado com razoável destaque. Mas no dia seguinte, domingo (16), a Folha publicou um raro editorial na primeira página [Todo poder tem limite] com uma violenta contestação ao presidente pelos ataques contra a imprensa.

"Ora, se no dia anterior Lula levanta a bandeira da humildade e sugere uma pacificação, por que insistir no clima de guerra? Aqueles que tomaram a decisão de soltar o petardo não leram a notícia por eles publicada sobre a mudança no ânimo do adversário?

"Uma imprensa incapaz de perceber as sutilezas da política está evidentemente tão radicalizada e delirante quanto aqueles que denuncia".
"CONSELHO DE JORNALISMO NÃO É EMBAIXADA DO INFERNO"

Só para completar. A "violenta contestação" a que Dines se refere aparece, sobretudo, neste alerta que o editorial da Folha lança a Lula e a Dilma Rousseff:
"Fiquem advertidos de que tentativas de controle da imprensa serão repudiadas - e qualquer governo terá de violar cláusulas pétreas da Constituição na aventura temerária de implantá-lo".

É outra comprovação de que a cúpula da Folha não lê o que sai publicado no seu próprio pasquim. Pois, três dias antes,  Jânio de Freitas havia posicionado bem melhor tal questão:
"Conselho de Jornalismo não é embaixada do inferno, não é chavismo, não é ditadura, necessariamente. São muitos os países 'civilizados' e democráticos em que tal conselho existe.

"Na França, por exemplo, foi criado há muito tempo, prestou muitos serviços e ninguém pensa em dissolvê-lo, assim como o da TV. A Inglaterra, os países nórdicos e outros têm as suas formas de conselho.

"Discuti-lo no Brasil seria difícil, mas não ameaçaria a democracia ou a liberdade de imprensa".
Sugiro que, no próximo  editorial-chabu (deveria ter sido editorial-bomba, mas...), a Folha esclareça se quem está certo é seu colunista ou seus  editorialarmistas.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

ELE DESATINOU

Enquanto tanto companheiro se comporta na eleição como claque deste ou daquele candidato/partido, relevando todos os defeitos de seus favoritos e satanizando os adversários (mesmo os da esquerda), eu tento manter o chamado  distanciamento crítico: considero meus antípodas os representantes da direita, dos quais um fosso intransponível me separa; mas trato com respeito todo os expoentes do campo progressista, o que não me impede de criticá-los de forma construtiva quando se mostram incoerentes com os ideais que deveriam professar.

Até agora, vinha saudando as performances do  bravo guerreiro  Plínio de Arruda Sampaio como a única merecedora do nosso aplauso nos debates televisivos, por um motivo simples e óbvio: dos quatro, só ele marcava posição  contra o capitalismo.

Os outros três nada mais faziam/fazem do que propor diferentes formas de convivência com a exploração do homem pelo homem, quanto muito atenuando suas injustiças mais gritantes.

Agora, por questão de coerência, registro que Plínio, em péssima hora, exumou no debate da Record uma bandeira que o PSOL jamais deveria ter assumido: a do rançoso moralismo pequeno-burguês, udenista, que separa o  efeito (corrupção política) de sua  causa (o sistema fundado na prioridade absoluta da ganância e da busca do privilégio sobre a cooperação solidária entre os homens e a promoção do bem comum).

Então, vale relembrar aqui o que eu escrevi (Combate à corrupção é bandeira da direita) da última vez em que o PSOL andou atacado da mesma doença. Tudo continua não só atual como, sem falsa modéstia, irrefutável:
"...a desproporção entre o dano causado ao cidadão comum pelos ladrões de galinha da política e as atividades corriqueiras dos capitalistas é incomensurável.
"O capitalismo nos acarreta:
  • emergências ecológicas como as alterações climáticas que ameaçam a própria sobrevivência da nossa espécie;
  • recessões desnecessárias (...);
  • a condenação de parcela considerável da humanidade a vegetar em condições subumanas;
  • o desperdício criminoso do potencial ora existente para assegurar-se a cada habitante deste sofrido planeta o mínimo condizente com uma sobrevivência digna; 
  • a mobilização permanente dos homens para atividades improdutivas e desnecessárias ao invés da redução da jornada de trabalho para que todos possam desenvolver-se plenamente como seres humanos; 
  • etc. (muitos, muitos etcetera!).
"E, se quisermos ficar no confronto simplista de números, ainda assim o peso da corrupção política no orçamento de cada família continuará sendo uma fração ínfima do custo do capitalismo.

"Eis um exemplo bem didático: levantamento da Associação Nacional dos Executivos de finanças, Administração e Contabilidade, numa pesquisa de junho a agosto 2002, constatou que os gastos mensais com despesas financeiras atingiam 35,43% da renda familiar para as situadas entre 1 e 5 salários mínimos, que compram mais a prazo do que os ricos; 33,62% para famílias entre 5 e 10 salários mínimos; e 32,95% para famílias com renda familiar entre 10 e 20 salários mínimos. A média geral para todas as faixas de renda é 29,83%.

"Ou seja, apenas o ágio que nos é extorquido pelos agiotas do sistema financeiro já consome ao redor de um terço da nossa renda familiar.

"E a estratosférica desproporção entre o custo de fabricação de cada produto e seu preço final? Vejam uma interessante avaliação do economista Ladislau Dowbor sobre o preço de produtos como os Redoxons e Cebions:

"'Por caixa, em média, esses produtos têm R$ 0,03 de ácido ascórbico. Você paga R$ 7,00 a caixa, ou seja, o custo do produto é multiplicado por cerca de 200 (multiplicado, não estou falando em 200%). E, com isso, você está tirando do mercado a vitamina C, um produto sumamente importante para a saúde de dois terços da população brasileira. No entanto, o consumidor está financiando o papelzinho dourado, a embalagem, a propaganda. (ensaio Economia da Comunicação, 2002)'
"Então, interessa aos defensores do capitalismo fazer a patuléia acreditar que a razão maior de seus apuros econômicos são os impostos, que estes acabam sendo em grande parte desviados pelos políticos e que isto, só isto, impediria nosso país de deslanchar.

"Ademais, as intermináveis denúncias de corrupção acabam minando as esperanças do cidadão comum na transformação da realidade por meio da ação política. Se tudo não passa de um lodaçal, as pessoas de bem devem mesmo é cuidar de sua vida...

"De quebra, fornecem pretextos para quarteladas, sempre que os meios de  controle democráticos das massas  não estão funcionando a contento.

"Então, Paulo Francis dizia e eu assino embaixo: denúncias de corrupção política são bandeira da direita, que acaba sendo sempre sua beneficiária final, a despeito dos ganhos momentâneos que proporcionem à esquerda.

"Esta deveria, isto sim, demonstrar que o capitalismo em si causa prejuízos imensamente maiores para o cidadão comum do que os desvios de recursos dos cofres públicos; e que a moralização da política não se dará com medidas policiais, mas sim com uma transformação maior da sociedade.

"Não o faz. Desatinadamente, algumas de suas tendências reforçaram as denúncias que culminaram no suicídio de Getúlio Vargas em 1954 e as que deram pretexto à dita  redentora  de 1964 (que, claro, nada mudou exceto a relação dos beneficiários do butim).

"...Então, digo e repito: em vez de pegar carona nos temas que a imprensa burguesa prefere magnificar, cabe à esquerda definir sua própria pauta e explicá-la aos cidadãos.
"A corrupção política não é nossa prioridade, mas sim o combate ao capitalismo, verdadeira raiz dos principais males que infelicitam os brasileiros.

"Precisamos ter a coragem de assumir a posição correta diante do povo, ao invés de tentar combater o inimigo num jogo de cartas marcadas, travado no terreno que só a ele convém".

domingo, 26 de setembro de 2010

VANDRÉ: DILACERANTE

"Não há por que mentir ou esconder
a dor que foi maior do que é capaz meu coração"
("Pequeno Concerto Que Virou Canção")


Foi um banho de água fria, um anticlímax, o Dossiê Globo News que marcou o reencontro dos telespectadores brasileiros com Geraldo Vandré, aos 75 anos de idade e 37 depois da última e deprimente aparição.

De positiva há a intenção manifestada por ele de retomar as atividades musicais, nem que seja gravando composições em espanhol, num país latino-americano qualquer.

E sua intenção de enveredar por poemas sinfônicos não é  tão despropositada como possa ter parecido para os que ignoram ser ele autor de uma missa apresentada em conventos dominicanos, Paixão Segundo Cristino.

Mas, não foi desta vez que a pergunta do repórter Geneton Moraes Neto – e de todos nós – teve verdadeira resposta: o que aconteceu, afinal, com Geraldo Vandré?

Só nos resta torcer para que o jornalista Vitor Nuzzi, na biografia que logo lançará do cantor e compositor paraibano, consiga desvendar o enigma.

Em primeiro lugar: Vandré foi torturado antes de partir para o exílio?

Há ex-preso político que garante tê-lo visto desmaiado numa sala de tortura. Mas, naquelas circunstâncias tão dramáticas, podia-se tomar uma pessoa por outra, ou confundir imaginação e realidade.

Quando eu estava preso na PE da Vila Militar, ouvi de cabos e sargentos relatos terríveis sobre as humilhações e indignidades a que submeteram Caetano Veloso e Gilberto Gil. Orgulhavam-se de haver colocado “no seu lugar” aquelas “bichas choronas”...

Mas, as torturas brutais não eram decididas por cabos da guarda e carcereiros entediados, e sim pelos oficiais, que as reservavam para os casos em que havia informações a serem arrancadas.

Então, Vandré só haverá sido massacrado se os ressentimentos contra ele, de tão exacerbados, tiverem feito com que recebesse tratamento diferente do habitual.

Pode ser, os militares nunca engoliram a estrofe famosa da “Caminhando”:
“Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos, de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam antigas lições
De morrer pela pátria e viver sem razões”
É estranha a seletividade de sua memória, ao reconhecer, p. ex., que se refugiou na casa da viúva do Guimarães Rosa, mas omitir que o então governador de São Paulo, Abreu Sodré, o escondeu no próprio Palácio dos Bandeirantes. Quem me revelou isto, um companheiro jornalista que então atuava na imprensa palaciana, é totalmente confiável.

O certo é que, ou fugiu do País ao receber aviso da Dedé, mulher do Caetano (conforme alega) ou foi preso e depois despachado para o exterior (a versão mais plausível), vagou pelo Chile e pela França, sentiu-se infeliz e amargurado, teve problemas com drogas.

Seu disco francês (Das Terras de Benvirá) é pungente, inventário das dores de uma geração que viu seus sonhos destruídos e pagou altíssimo preço pela derrota. Chega a chorar nitidamente no meio da interpretação.

Mas, ainda era Vandré:
“Eu canto o canto
Eu brigo a briga
Porque sou forte
E tenho razão”
("Vem Vem")
Acabou não agüentando a barra do exílio e, como era usual, teve de negociar com a ditadura as condições de sua volta, para “não ter na chegada/ que morrer, amada/ ou de amor, matar” ("Canção Primeira").

Indagado sobre a entrevista que concedeu de imediato, na qual declarou a intenção de só fazer dali em diante canções de amor, ele agora diz:
“Gostaria de rever as imagens. Houve a gravação. O que foi para o ar, não sei. Queriam que fizesse uma gravação. Não lembro mais. Mas nada disse que não tenha querido dizer. Aquela declaração foi feita a pedido de alguém que se apresentou como policial federal. Fiz um depoimento aqui, no Rio. Depois disseram que tinha que ir para Brasília. Cheguei ao Brasil em 14 de julho. Em 11 de setembro de 1973, apareço como se estivesse chegando em Brasília. O depoimento foi gravado antes. Gravaram minha imagem descendo do avião em Brasília. Tudo muito manipulado. Tive que passar por um processo de readaptação ao voltar”.
A gravação era sempre parte do acordo, previamente combinada, e não “feita a pedido de alguém que se apresentou como policial federal”.

Com Gilberto Gil aconteceu o mesmo. Foi mostrado em pleno aeroporto, declarando: “Não tenho mais compromissos com a História”. Uma variante de “agora só farei canções de amor”. Os serviços de guerra psicológica das Forças Armadas não eram lá muito sutis...

Também não acredito que o depoimento tenha sido prestado a uma produtora independente. Quem costumava cumprir tais tarefas para a ditadura era a própria Globo.

E está inteiramente confirmado que o alegado "processo de readaptação" foi algo bem diferente: Vandré recebeu tratamento psiquiátrico, sob controle da ditadura, nesse período entre 14 de julho e 11 de setembro de 1973. 

Pode-se, sim, levantar a hipótese de lavagem cerebral.

De que, nesses quase dois meses em que o tiveram indefeso em suas mãos, extremamente fragilizado, hajam nele incutido a bizarra devoção pela Força Aérea Brasileira, a ponto de ele compor uma canção homenageando a FAB e de dar agora entrevista em instalações da Aeronáutica, trajando abrigo da Academia da Força Aérea.

Que o tenham condicionado a gostar do  policial bom  faz mais sentido do que uma  síndrome de Ícaro num homem com sua idade e história de vida.

Mas, é claro, trata-se apenas de uma hipótese.

sábado, 25 de setembro de 2010

NOSSO SAMBA AINDA É NA RUA

A música mais apropriada para este dia não é do Geraldo Vandré, mas pertence àquela época áurea em que ele obtinha merecido destaque na MPB.

O autor, Chico Buarque, foi adversário do Vandré no inesquecível Festival da Record de 1966, quando o 1º lugar foi dividido entre nada menos que duas obras-primas, "Disparada" e "A Banda".

Das mais marcantes é "Quem te viu, quem te vê", uma das pérolas do Chico naquela fase em que estava muito influenciado pelo Noel Rosa.

Foi a canção que logo me veio à cabeça, quando li estas declarações que Sua Excelência Luiz Inácio da Silva deu na festa de lançamento de novos papéis da Petrobrás, na Bolsa de Valores de São Paulo -- cuja imagem, para minha geração, estará sempre associada ao  milagre brasileiro, do qual foi cartão de visitas e, depois da derrocada,  símbolo do logro que lesou diretamente muitos brasileiros e, indiretamente, a todos.

Exaltando mais uma vez  a si próprio por ter conseguido a aclamação dos antigos inimigos (sem nunca perguntar-se qual dos dois, afinal, abdicou de suas convicções de outrora), Luiz Inácio disse, no auê da Bovespa:
"Só pode ser uma dádiva de Deus porque, dez anos atrás, eu passava aqui na porta da Bolsa, as pessoas tremiam de medo: 'Aonde é que vai esse comedor de capitalismo?'. E exatamente esse comedor de capitalismo deixa a Presidência da República como o presidente que participou, de forma honrosa, do momento mais auspicioso do capitalismo mundial".

Se era só isso que Luiz Inácio queria, conseguiu. Outros, como o  companheiro presidente  Allende, queriam muito mais.

Quanto às  dávidas de Deus, algumas não são exatamente o que parecem. Goethe explica. 
Foto: Ricardo Stuckert / PR, a quem agradeço.

É HOJE: TV LEVA AO AR 1ª ENTREVISTA DE VANDRÉ DESDE 1973!

Neste sábado (25), às 21h05, o canal por assinatura Globo News apresentará uma atração imperdível:
"Depois de quatro décadas de isolamento, o cantor e compositor que se transformou em um dos maiores enigmas da MPB resolve finalmente quebrar o silêncio (...). Geraldo Vandré deu uma entrevista ao repórter Geneton Moraes Neto no dia em que completava 75 anos de idade. Desde que voltou do exílio, no segundo semestre de 1973, ele não falava para a TV".
O Dossiê Globo News com Geraldo Vandré será reprisado no domingo (26), às 04h05 e às 12h30; e na 2ª feira (27), às 15h30.

HOMENAGEM

Para dimensionar a importância de Geraldo Vandré na música e na sociedade brasileira, apresento, em seguida, dois diferentes enfoques de sua trajetória:
Para quem tiver interesse, há também neste blogue um teleteatro que eu criei a partir de uma das composições do Vandré: Geração Maldita. Não considerei apropriado colocá-lo nesta sequência de textos relativos ao artista propriamente dito.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

BAÚ DO CELSÃO: DE COMO UM HOMEM PERDEU SEU RUMO E SEGUIU AO LÉU

"O que foi que fizeram com ele? Não sei
Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei"
("Tributo a um Rei Esquecido", Benito Di Paula)

Eu era um adolescente começando a me interessar pela política quando uma música me atingiu em cheio: "Canção Nordestina", do Geraldo Vandré, com aquele seu grito lancinante ("...e essa dor no coração/ aaaaaaaAAAAAAAAIIII!!!!, quando é que vai acabar?") reverberando em todo o meu ser.

Foi meu primeiro ídolo. Acompanhei a consagração da "Disparada" no Festival da Record de 1966, amaldiçoando o Jair Rodrigues por abrir um sorriso bocó no trecho mais dramático ("...porque gado a gente marca,/ tange, ferra, engorda e mata,/ mas com gente é diferente").

Depois, nos estertores d'O Fino, o programa passou a ser conduzido, uma em cada quatro semanas, pelo Vandré (nas outras, se bem me lembro, os apresentadores eram Chico Buarque/Nara Leão, Elis Regina/Jair Rodrigues e Gilberto Gil/Caetano Veloso).

Num de seus programas, o Vandré declamou o "Poema da Disparada", sobre a modorrenta mansidão da boiada, até que um simples mosquito, picando um boi, provoca o estouro, e nada volta a ser como antes. Belíssimo.

Aí o Vandré brigou com a TV Record e saiu da emissora, alegando que um desses seus programas havia sido censurado pelos patrões, por temerem os milicos.

Veio o Festival da Record de 1967 e Vandré, com sua "De Como Um Homem Perdeu o Seu Cavalo e Continuou Andando" ("Ventania"), virou alvo de críticas e maledicências ininterruptas nas emissoras da Rede Record. Diziam até que ele havia contratado uma turba para vaiar Roberto Carlos.

"Ventania" não era mesmo uma segunda "Disparada", mas, sem toda essa campanha adversa, certamente teria obtido classificação melhor do que o 10º lugar.

O Vandré antigo: no front musical contra o imperialismo.

Aconteceu então aquele 1º de Maio esquisito, em 1968, quando o PCB garantiu ao governador Abreu Sodré que ele poderia discursar tranqüilamente na Praça da Sé.

O ingênuo acreditou e, mal tomou a palavra, recebeu uma nuvem de pedradas dos trabalhadores do ABC e de Osasco, organizados pela esquerda autêntica.

Sodré correu para se refugiar na Catedral... e Vandré foi fotografado ajudando Sua Excelência a escafeder-se!

A foto saiu na capa da Folha da Tarde e fez com que muito esquerdista virasse as costas ao Vandré.

No final de junho/68, os operários de Osasco tomaram pela primeira vez fábricas no Brasil (em plena ditadura!). A reação foi fulminante, com a ocupação militar da cidade.

Os estudantes, por sua vez, ocuparam a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, na rua Maria Antônia, para mantê-la aberta durante as férias de julho, prestando apoio à greve de Osasco.

O Vandré apareceu lá numa noite em que estava marcada uma assembléia para tratar desse apoio estudantil à greve. Foi hostilizado pelos universitários. Lembro-me de uma fulaninha gritando sem parar: "traidor!", "traidor!".

Eu estava lá com companheiros secundaristas da Zona Leste, todos admiradores do Vandré. Então, nós nos apresentamos e fizemos o convite para vir conosco ao bar da esquina, oferecendo-lhe a oportunidade para retirar-se de lá com dignidade, e não como um cão escorraçado.

Bebemos, papeamos horas a fio, apareceu um violão e rolaram algumas músicas.

Lá pelas tantas, o Vandré mostrou uma letra rascunhada e cheia de correções, que ele escrevera numa daquelas folhas brancas de embrulhar bengalas (pão). Era a "Caminhando", que tivemos o privilégio de conhecer ainda em gestação.

É importante notar que ele fez a "Caminhando" exatamente para responder aos esquerdistas que o estavam hostilizando. Quis lhes dizer que continuava acreditando nos mesmos valores, que nada havia mudado.

Perguntamos por que ele havia socorrido o Sodré. A resposta: "Nem sei. Estava tão bêbado que não me lembro de nada que aconteceu".

Na verdade havia amizade entre ambos, tanto que o Vandré, meses mais tarde, encontraria abrigo no Palácio dos Bandeirantes, onde o próprio Sodré o escondeu quando a repressão estava no seu encalço.

Mas, não ficava bem para um artista de esquerda admitir publicamente que mantinha  relações perigosas  com um governador da Arena, partido de apoio à ditadura.

"HÁ SOLDADOS ARMADOS, AMADOS OU NÃO"

Naquele Festival Internacional da Canção da Rede Globo, "Caminhando" foi uma das cinco classificadas de São Paulo para a final nacional no Rio. O que chamou mais a atenção por aqui foi a não-classificação de "Questão de Ordem", do Gil, e o desabafo de Caetano Veloso, que acabou retirando sua "É Proibido Proibir" do festival em solidariedade ao amigo (depois de detonar o júri "simpático, mas incompetente" com um discurso célebre, que acabou sendo lançado em disco com o nome de "Ambiente de Festival").

No Rio, entretanto, o clima era outro. Numa manifestação de rua, a repressão acabara de submeter estudantes a terríveis indignidades (os soldados chegaram a urinar sobre os jovens rendidos e a bolinar as moças). Isto despertou indignação geralizada na cordialíssima  cidade maravilhosa.

O III FIC aconteceu logo depois e os cariocas adotaram "Caminhando" como desagravo. Vandré teve muito mais torcida lá do que em SP. Quando ele reapresentou a música, já como 2ª colocada, os moradores de Copacabana abriram as janelas de seus apartamentos e colocaram a TV no volume máximo. Cantaram juntos, expressando toda sua raiva da ditadura.

Reencontrei Vandré por volta de 1980, quando eu estava colaborando com várias revistas de música. Propus-lhe uma entrevista, que ele não quis dar: "Não tenho disco nenhum para lançar, para que falar à imprensa?".

Acabamos indo (eu e minha companheira de então) ao apartamento do Vandré na rua Martins Fontes e papeando durante horas -- mas em off, ou seja, com o compromisso de nada publicar.

Reparei que ele continuava lúcido, ao contrário das versões de que teria ficado xarope por causa das torturas. Mas, perdera a concisão e clareza. Seus raciocínios faziam sentido, mas davam voltas e voltas até chegarem ao ponto. Para entender a lógica do que ele dizia, eu precisava ficar prestando enorme atenção. Era exaustivo.

O mais importante que ele disse: estaria na mira de organizações de extrema-direita, inconformadas com o gradual abrandamento do regime.

A censura finalmente liberara "Caminhando", que fazia sucesso na voz de Simone. Vandré explicou que tinha de passar-se por louco pois, se ele tentasse voltar ao estrelato junto com a música, seria assassinado.

Insistiu muito em que não se apresentaria no Brasil enquanto o País não oferecesse garantias legais aos seus cidadãos. Realmente, algum tempo depois, soube que ele marcara um show para uma cidade paraguaia fronteiriça com o Brasil. Quem foi lá vê-lo? Brasileiros, claro...

Quando estudava na ECA/USP, eu fiz um trabalho de teleteatro de meia hora baseado nos personagens e no clima da música "Das Terras de Benvirá" -- sobre uma comunidade de refugiados brasileiros decidindo se já era hora de voltar para a patriamada ou não. Minha pequena contribuição àquele momento (1979) da anistia.

Conheço quase toda a obra do Vandré. E considero o LP francês, "Das Terras de Benvirá", uma pungente obra-prima.

"SEM TER NA CHEGADA QUE MORRER, AMADA"

Quanto à promiscuidade com milicos depois de sua volta do exílio, a canção composta em homenagem à FAB e as declarações negando ter sido torturado, a minha opinião é que ele não conseguiu suportar a realidade de que não se comportara heroicamente.

Em várias músicas (como "Terra Plana", "Despedida de Maria" e "Bonita"), o personagem central era um guerrilheiro. As canções, narradas sempre na primeira pessoa. Ou seja, saltava aos olhos tratar-se do papel que sonhava ele mesmo vir a representar na vida real.

Mas, claro, o Vandré não foi para a guerrilha nem parece ter passado pela prova de fogo nos porões da ditadura com o destemor desejado. Além disto, não aguentou viver muito tempo fora do Brasil e voltou com o rabo entre as pernas. Com certeza, negociou com os militares para poder desembarcar "sem ter na chegada/ que morrer, amada,/ ou de amor matar" ("Canção Primeira").

O Vandré atual: homenageado ao assistir show no Bixiga

A minha impressão é que, nordestino e machista, ele não aguentou admitir que fora quebrado pela tortura e pelos rigores do exílio. Então, preferiu desconversar, embaralhar as cartas, descaracterizar-se como ícone da resistência. Enfim, um caso que só Freud conseguiria explicar (e esgotar).

De qualquer forma, aquele artista que tanto admiramos foi assassinado pelos déspotas, da mesma forma que Victor Jara e Garcia Lorca. Sobrou um homem sofredor, que merece nossa compreensão.

GERALDO VANDRÉ, ENTRE TANTOS

Por Vitor Nuzzi (*)

“O problema é que 
você quer falar com 
Geraldo Vandré. E
Geraldo Vandré não
existe mais, foi um
pseudônimo que usei
até 1968.”

Ele estava particularmente irritado naquela noite, em agosto de 1985. Há pouco, ficara sabendo que não haviam permitido o acesso ao prédio a um antigo porteiro. Naquela noite, conheci um pouco da fúria daquele homem de voz grave, que estava prestes a completar 50 anos e vivia, como ainda vive, em um antigo prédio na região central de São Paulo, com o apartamento mergulhado na penumbra e cheio de livros por todos os lados. E pelo menos um violão.

O próprio Geraldo havia ligado para mim, meses antes, depois que eu, ainda estudante de Comunicação, tinha conseguido localizar o seu telefone na hoje extinta Superintendência Nacional de Abastecimento (Sunab), em que ele trabalhava como fiscal – cassado em 1968, havia sido anistiado em 1979. Deixei recado ao doutor Geraldo Pedrosa, e na manhã seguinte uma voz empostada fala comigo. “Aqui é Geraldo. Você ligou para mim?” Combinamos de nos encontrar à noite, por volta de 19h. "Por volta, não. Às 19h", decretou Geraldo.

O paraibano Geraldo Pedrosa de Araújo Dias completou 70 anos no dia 12 de setembro de 2005. Nascido em João Pessoa, aos 16 anos foi para o Rio de Janeiro. Entre ginásio e colégio, passou por Nazaré da Mata (PE) e Juiz de Fora (MG). No Rio, estudou Direito (de 1957 a 1961) para satisfazer a família, mas depois pendurou o diploma e foi viver de música. Ou de arte. O sobrenome artístico veio do segundo nome do pai, o médico José Vandregísilo. Começou usando o nome artístico de Carlos Dias, homenagem aos cantores Carlos Galhardo e Carlos José. O Dias era de seu próprio sobrenome. Foi influenciado pela Bossa Nova, mas depois introduziu outros elementos em sua música – “em termos musicais, ele começava a travar uma luta sonora com o meio ambiente da bossa nova e com suas próprias influências jazzísticas”, escreveu o crítico Tárik de Souza, em artigo publicado no livro Oitenta (L&PM Editores, 1979).

E os seus 70 anos passaram despercebidos. Geraldo andava, inclusive, meio sumido até poucas semanas atrás, quando os atendentes de uma padaria na região central de São Paulo, reencontraram o antigo freqüentador, que continua no mesmo velho apartamento, mas costuma se ausentar com freqüência. Sempre de camisa branca, normalmente com símbolos da Força Aérea Brasileira (FAB). Também é assim que os funcionários de um restaurante na rua Xavier de Toledo, perto dali, costumam vê-lo. Camisa branca e vastos cabelos brancos. Um homem magro, que normalmente almoça sozinho.

Vandré, militares, Força Aérea? A relação parece estranha, mas vem dos tempos de criança. O pequeno Geraldo tinha 4 anos quando explodiu a 2ª Guerra Mundial, e ele gostava de imitar o vôo de caças. “Porque só tu soubeste enquanto infante/ As luzes do luzir mais reluzente/ Pertencer ao meu ser mais permanente” são os versos finais de “Fabiana”, escrita em 23 de outubro de 1985 “em honra da Força Aérea Brasileira”. Daí o nome, “Fabiana”. Em 1995, ele esteve presente a uma comemoração da Semana da Asa, em que cadetes da FAB cantaram a sua composição. “Musicalmente é uma valsa. Literariamente, compõe de três estrofes de seis decassílabos e um refrão de três versos de seis sílabas”, explicou, didático, em entrevista ao jornal paulistano Diário Popular (atual Diário de São Paulo) em 26 de julho de 1991.

Dez entre dez pessoas citarão “Pra não Dizer que não Falei das Flores” (subtítulos "Caminhando" e "Sexta Coluna") como a sua música mais famosa. Outros lembrarão de “Disparada”, celebrizada por Jair Rodrigues. Poucos, certamente, lembrarão de “Pequeno Concerto que virou Canção”, “Samba em Prelúdio”, “Quem Quiser Encontrar Amor”, “Canção Nordestina”. E quem lembrará que foi Vandré quem primeiro defendeu uma música de Chico Buarque em um festival? Pois foi ele quem cantou “Sonho de um Carnaval”, do novato Chico, no 1° Festival de Música Popular Brasileira, em 1965. Os dois dividiriam o prêmio do Festival da Música Popular Brasileira em 1966, quando "A Banda", de Chico, e “Disparada”, de Vandré e Théo de Barros, dividiram a torcida. "A Banda" ganhou no júri, mas o prêmio foi dividido por imposição do próprio Chico.

Em setembro de 1968, seria a vez de Vandré sair em defesa de Chico – e de Tom Jobim –, diante de milhares de pessoas no Maracanãzinho (jornais da época falam em 30 mil), no Rio de Janeiro. A maioria queria ver “Caminhando” como vencedora da fase nacional do 3° Festival Internacional da Canção, promovido pela TV Globo, e por isso vaiava a decisão do júri, que escolhera “Sabiá”. “Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem o nosso respeito. (...) Pra vocês que continuam pensando que me apóiam vaiando... (...) A vida não se resume em festivais”, disse Vandré, enquanto a multidão acenava com lenços brancos.

Pouco depois, em dezembro de 1968, ele sumiu dos palcos. Naquele período, “Pra não Dizer que não Falei das Flores” foi proibida e sua cabeça, posta a prêmio. Em artigo publicado em outubro daquele ano no jornal O Globo, Nélson Rodrigues chegou a afirmar que “nunca se viu uma Marselhesa tão pouco Marselhesa”. Sentindo-se ameaçado, Vandré decidiu desaparecer (na mesma época, Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos). Segundo o compositor Geraldo Azevedo, no dia em que foi decretado o Ato Institucional 5 (13 de dezembro de 1968), Vandré e o Quarteto Livre (do qual Azevedo fazia parte) iriam se apresentar em Brasília. Depois de permanecer escondido por amigos, ele fugiu disfarçado e com passaporte falso no carnaval de 1969.

No Chile, seu primeiro destino, Vandré manteve contatos com artistas locais e gravou um compacto com as músicas “Desacordonar” e “Caminando” – quem recebeu da mão dele um desses compactos tem o exemplar numerado pelo próprio autor. De lá, viajou para a Europa – no final de 1970, gravaria na França o pungente “Das Terras de Benvirá”, seu quinto LP – e seria o último, lançado no Brasil apenas em 1973 (na França, foi lançado um compacto, "La Passion Bresilienne"). "Foi algo quase de improviso", conta Marcelo Melo, que participou da gravação e pouco depois formaria o grupo Quinteto Violado. Em 1971, Vandré voltou ao Chile. Em 1972, ganharia um festival no Peru com "Pátria Amada Idolatrada, Salve, Salve", parceria com Manduka (falecido em 2004), filho do poeta Thiago de Mello e da jornalista Pomona Politis. O retorno oficial ao Brasil aconteceu em 21 de agosto de 1973. “Quero agora só fazer canções de amor e paz”, declarou ao Jornal Nacional, na chegada, em Brasília, lembrando que nunca esteve vinculado a qualquer grupo político.

Na verdade, Vandré teria chegado ao Brasil um mês antes, em julho de 1973. Foi direto ao I Exército, no Rio de Janeiro. A sua permanência no país teria sido condicionada à entrevista ao JN. “Nunca fui preso, torturado, essas coisas que dizem por aí”, afirmou à revista VIP Exame em março de 1995. Essa é uma parte obscura da vida do cantor, que enfrentou sérias crises de depressão. De todos os artistas daquela geração, foi o único a não se apresentar novamente em um palco brasileiro, embora continue a fazer música.

No início de agosto de 1982, por volta de 200 pessoas testemunharam a volta de Geraldo Vandré aos palcos. Foi em uma sala de cinema em Puerto Stroessner, na fronteira do Paraguai com o Brasil. Cantou do lado paraguaio. Defendia a anulação de todos os atos praticados com base no AI-5 – o que, na prática, significaria o retorno à Constituição de 1946. “Não houve aplausos nem gritos (na entrada de Vandré)”, contou a repórter Ruth Bolognese, do Jornal do Brasil, em texto publicado dia 9 de agosto. Foram dez músicas, quase todas inéditas. “E falam em liberdade, soldados, homens fracos e fortes, homens aprendendo a ser gente.”

Era o mesmo Vandré capaz de, numa noite qualquer de um sábado de 1985, pedir para esperarmos diante de um Pronto-Socorro municipal na zona norte de São Paulo, de onde ele sairia uma hora depois disposto a discutir os motivos pelos quais a cadeira de dentista é tida como um local de sofrimento. Ou capaz de ser preso em novembro de 1974, após se desentender com um taxista em Mogi das Cruzes, interior paulista, e terminar o dia jantando na casa do delegado.

“Assim como outros grandes, o tronco Vandré resultou em vários galhos relevantes”, escreveu, em 1999, o jornalista Luís Nassif, citando Quinteto Violado – que em 1997 gravaria um CD só com músicas dele –, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai. Sábado, dia 17 setembro, talvez tenha sido realizada a única homenagem pública a Vandré: Jair Rodrigues, que imortalizou “Disparada”, e o próprio Quinteto Violado se apresentaram em Brasília, justamente onde haveria o show em 1968, quando a carreira de Vandré foi interrompida. "Sinto falta dele", diz Jair.

Um homem que recusou delicadamente um pedido de entrevista, feito anos atrás, com a seguinte resposta, escrita à mão: “Trata-se de uma sociedade para a qual a BELEZA cumpre função secundária e dispensável. Aqueles que se ocupam da beleza têm, portanto, função secundária e dispensável". Mas ele termina a mensagem dizendo que "sem beleza não existe O HOMEM FELIZ”. E assina: Vandré, com um PS datado de 14 de junho de 1995: “Cada vez mais distante”.

Muitos o consideram louco. Certamente, ele não tem certas convenções sociais. Nassif chamou-o de “solitário e desconexo”, “triste como a própria solidão na qual se meteu”. Mas se Vandré sempre buscou a beleza, talvez seja um homem feliz.
* Vitor Nuzzi é o jornalista que mais e melhor tem acompanhado a trajetória do Vandré, devendo futuramente lançar uma biografia do artista, aguardada com ansiedade pelos que conhecemos a ambos. (CL)

REFLEXÕES SOBRE O GOLPISMO E A HIDRA

Para que não pairem dúvidas, esclareço: meus alertas sobre a montagem de cenário para nova quartelada apenas colocam em evidência uma das tendências do quadro político atual -- e que não é a dominante neste momento.

Percebe-se claramente que a extrema-direita não acredita mais em reação dos seus candidatos na eleição presidencial do mês que vem. Dá a derrota como inevitável e já trabalha para uma virada de mesa.

Alguns textos publicados na imprensa também são, nitidamente, direcionados para o que virá depois da eleição de Dilma Rousseff. Caso do famoso editorial no qual a Folha de S. Paulo exortou a que se dê  paradeiro  no lulismo.

Entretanto, vale repetir mais uma vez, tudo isso só se tornará ameaça real se os eternos conspiradores conseguirem convencer os realmente poderosos de que poderão perder seus privilégios.

Sem o apoio do grande capital e dos EUA não se derruba governo no Brasil.

Quanto à caserna, também não mostra entusiasmo por aventuras que terminaram muito mal no passado, quando o poder usurpado teve de ser devolvido sob a vara da execração popular.

O passado nos ensina que os fardados são sempre a última e decisiva peça a ser colocada no quebra-cabeças golpista. Nada existe a temermos, por enquanto.

A faina manipulatória da grande imprensa serve tanto para ajudar os demotucanos a tentarem ainda virar a disputa eleitoral, como para enfraquecer previamente o governo de Dilma Rousseff e também para lastrear recaídas totalitárias. É de espectro amplo.

Da mesma forma, por trás do tal "Manifesto em Defesa da Democracia" estão tanto as figurinhas carimbadas da direita troglodita (Reinaldo Azevedo à frente), como os serristas.

Assim, o secretário de Relações Institucionais do governo paulista, Almino Affonso, está convocando um ato para a próxima 4ª feira (29), na Praça da República (capital paulista), de repúdio às declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a imprensa e de apoio ao candidato demotucano.

Candidamente, admitiu:
"[o manifesto dos notáveis] não faz referência a Serra, mas reforça sua candidatura. Vamos dar continuidade, com outra cara".
Aliás, a mesma duplicidade se verificava no Cansei!: havia também os legalistas, claro, mas a rede virtual neofascista apoiou em peso o movimento, na esperança de que se tornasse uma nova Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade.

A burguesia, como a hidra, tem muitas cabeças.

A pior delas, com certeza, vai se tornar bem visível após a proclamação do resultado das urnas.

Os reacionários mais empedernidos não deixarão de tentar qualquer coisa, face à perspectiva de outros oito anos de lulismo no poder (os quatro de Dilma, seguidos da volta de Lula em 2014). E o mais provável é que fracassem de novo.

Trata-se de algo que não nos deve assustar nem deter, mas contra o qual precisamos nos precaver, para não sermos apanhados de pijama, como fomos em 1964 ou como Zelaya foi no ano passado.

SUPREMO CIRCO DE CAVALINHOS

A Lei da Ficha Limpa lista crimes e delitos que acarretam a seus autores a inelegibilidade por oito anos.

Se isto não é  punição, eu sou mico de circo.

Acontece que todo Direito civilizado veda a aplicação de punições se não havia lei as estipulando no momento em que tais práticas ocorreram.

Então, a Ficha Limpa só poderia vigorar para quem cometeu os crimes e delitos em questão a partir da promulgação da lei, em meados de 2010.

Isto é de clareza meridiana. Até o  sujeito na esquina (aquele que o Gilmar Mendes qualificou de estúpido demais para serem levadas a sério suas opiniões sobre as supremas lambanças) percebe.

Ocorre que temos uma alta Corte que, no mais empolado e pernóstico juridiquês, só tergiversa e confunde o que salta aos olhos dos simples mortais.

E acaba armando circo de cavalinhos como o dessa decisão empatada que deixa eleitores sem saberem se seu voto valerá ou não.

REFORMA OU REVOLUÇÃO?

Haverá companheiros que me criticarão, por estar sustentado que embarcaram numa furada canoa populista.

Curto e grosso:
  • a corrupção, tanto quanto a criminalidade, é intrínseca ao capitalismo, então não será lei nenhuma que a erradicará, mas sim a substituição de um sistema que erige a ganância e a busca do privilégio em valores supremos, por outro fundado na solidariedade entre os homens e na priorização do bem comum;
  • é péssimo negócio iludirmos as massas com promessas de que mudanças cosméticas resolverão problemas que reaparecerão sob outras formas adiante, pois nossa incoerência vai ser cobrada e nossa credibilidade, esvaziada (terei eu algum leitor tão ingênuo a ponto de acreditar que essa besteirinha vá regenerar os feios, sujos e malvados da política oficial brasileira?);
  • a imposição da  vontade das ruas, sob o capitalismo, é um salto no escuro para revolucionários, já que estamos sempre na alça de mira dos poderosos, os quais, com seus poderosos meios de comunicação, podem insuflar facilmente histerias anticomunistas, caças às bruxas como as que ocorreram no passado.
O grande problema é que os companheiros jovens têm como referenciais, unicamente, os cenários atuais e recentes, enquanto velhos revolucionários têm presentes na memória períodos como o do nazifascismo, do  milagre brasileiro  e outros em que boa parte da população bateu palmas para o arbítrio.

Hoje mesmo, na Europa, há indiscutível apoio popular para a fascistóide estigmatização e perseguição dos imigrantes.

E qualquer pesquisa de opinião revelará que o povão, em peso, concorda com a tortura de traficantes, tal qual é mostrada no repulsivo filme Tropa de Elite.

A esquerda existe para defender o cidadão contra o Estado, mesmo porque que seu objetivo último é a extinção do Estado, substituído pela organização voluntária e autônoma dos cidadãos, numa sociedade com prioridades e práticas bem diferentes das atuais.

Quem perde tempo tentando aperfeiçoar o Estado burguês com a introdução de novas regrinhas e paliativos, a bem dizer, não pensa nem age como revolucionário.
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