sábado, 27 de maio de 2017

A CONEXÃO DA CRACOLÂNDIA COM O REINO DA CORRUPÇÃO

"Nada é permanente nesse mundo cruel. Nem
mesmo os nossos problemas" (Charlie Chaplin)
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Há 22 anos moro no mesmo lugar, sempre fazendo o mesmo percurso de casa até o escritório. Assim, tendo de passar sempre pelo mesmo semáforo, pude acompanhar a evolução (ou involução) daquele menino de 14 anos, saudável, que lavava pára-brisas para ganhar alguns trocados. 

Papeávamos. Éramos antagonistas futebolísticos, então ele sempre zoava comigo quando o Ceará (meu time) perdia, recebendo o troco nas derrotas do Fortaleza. perdia. Tínhamos uma relação cordial.

Com tempo ele foi decaindo: os dentes, antes sadios, ficaram cheios de cáries; a roupa, cada vez mais suja e rota; a barba crescendo de modo descuidado; e o seu ar já não era alegre, mas sombrio. O crack fez dele um zumbi ambulante, desinteressado pelo que acontecia ao redor, esquecido do futebol.

Assisti, impotente, à sua decadência física e mental, até o dia em que não mais o vi no semáforo. Havia sido assassinado por um traficante, por não poder pagar-lhe o que devia.

Esta história é real e se repete com um incontável número de meninos e meninas jogados(as) na rua por um sistema segregacionista que os marginaliza. É-lhes introjetado na mente, subliminar ou diretamente, o repúdio a uma ordem social injusta, cuja injustiça, contudo, eles não compreendem, acabando por internalizar uma culpa pessoal que na verdade não têm. Isso os leva a buscar na droga o prazer e a liberdade que jamais tiveram;  e se tornam cada vez mais escravos do vício. Uma armadilha social.
O que assusta mais, a ficção dos filmes de zumbis...

Nós todos somos culpados pela morte do menino do semáforo, tendo o traficante que o matou sido um instrumento da nossa indiferença com relação à injustiça social sistêmica. A indiferença que fabricou os dois personagens. 

Quem é mais criminoso? O grande empresário do tipo Joesley Batista, que movimenta bilhões de dólares graças ao meteórico enriquecimento obtido com o desvio de verbas que deveriam ser utilizadas em benefício da população, em falcatruas facilitadas pela omissão do Estado e intermediada por políticos? Ou o favelado que, para escapar da miséria ambiente, foi atrás do lucro fácil (e perigoso) do tráfico de drogas?

Todos esses criminosos, tanto os de colarinho branco e jatinho de milhões de dólares quanto os de fuzil AR-15 nas mãos dentro do gueto, são gerados no ventre da serpente capitalista. O móvel da corrupção praticada por empresários em conluio com políticos e da corrupção de menores e adultos pelas drogas é o mesmo: o dinheiro ou poder (que, finalmente, se traduz em dinheiro e vice-versa). 

A superação da forma-mercadoria, célula germinal de toda a corrupção social (mas que parece, aos olhos ingênuos e desavisados, algo tão natural como o ato de respirar), é o único modo de acabarmos com a produção e comércio internacional cada vez mais intenso das drogas, que nenhuma polícia é capaz de conter (lembram-se da escalada do gangsterismo durante a década de 1930, quando a lei seca vigorava nos Estados Unidos?).
...ou a realidade dos expulsos da cracolândia se arrastando pelas ruas paulistanas?

O mesmo raciocínio se aplica, sem tirar nem por, à produção e o comércio de armas. Elas são fabricadas, principalmente nas economias desenvolvidas, porque o capitalismo não pode desprezar qualquer possibilidade de lucro (ainda mais agora, quando o dito cujo se torna escasso!). Até porque, desde o seu surgimento, o capitalismo se impôs à base da violência, da qual é concomitantemente causa e efeito, o que leva à existência de armas cada vez mais sofisticadas. 

A grande indústria bélica obtém seu lucro sangrento causando a morte, geralmente instantânea, de tanta e tanta gente; e as drogas, matando lentamente.  

Vide o que ocorre com políticos e fundamentalistas africanos e árabes, a digladiarem-se entre si na busca de um poder miserável diante de um povo desesperado, já que tornado supérfluo pelo capitalismo (não produz valor e, portanto, não pode consumir valor em qualquer quantidade que seja, mas vive sob a égide do capital). Ou seja, está condenado à morte caso o próprio capitalismo não morra antes).
As batalhas contra os zumbis de mentirinha do cinema...
Este é o caldo de cultura do fundamentalismo religioso arcaico: a incompreensão de qual seja a causa da miséria social. E é por aí também que podemos entender por que crescem tanto as seitas religiosas charlatãs, que fazem da miséria extrema de suas vítimas uma fonte de riqueza para si.      

A produção das mercadorias armas e drogas obedecem a um mesmo critério teleológico (a obtenção de valor, dinheiro, lucro), ainda que se queira separar uma coisa da outra. A cracolândia é uma de suas consequências mais chocantes.
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O INFERNO PAULISTANO
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A existência de verdadeiros guetos de consumidores e traficantes de drogas a céu aberto na cidade de São Paulo reflete um dos muitos sintomas de degradação social na Meca do capitalismo na América do Sul. 

As tragédias sociais existentes em São Paulo têm como causa a mesma lógica do capitalismo que a transformou no maior centro mercantil da América do Sul. Isto explica, p. ex., a existência da favela Heliópolis, tida como uma das maiores do continente sul-americano (120.000 pessoas habitam num emaranhado de vielas e construções toscas fora do padrão recomendável de habitabilidade), bem demonstrando o que é o capitalismo: uma ilha de riqueza cercada por um oceano de pobreza. 
...ou o pau comendo adoidado nas ruas de São Paulo?
Entretanto, os governantes do estado capitalista, submissos à lógica destrutiva da vida social a que servem, jamais podem discutir com seriedade, sem a hipocrisia costumeira, o que está na base desse problema social. Afinal, eles não podem morder a mão do dono (parafraseando Celso Lungaretti, ao ironizar o feitiço virando contra o feiticeiro Reinaldo Azevedo).

Assim, por não poderem debelar as causas do problema, atuam nos seus efeitos, amontoando doentes e criminosos numa mesma vala comum, como se fossem todos párias sociais. 

Episódio parecido, aliás, ocorreu quando o corvo Carlos Lacerda era governador do estado da Guanabara: ele mandou afogar mendigos, por não suportar vê-los enfeiando a cidade. O princípio é o mesmo, embora os aprendizes de feiticeiros atuais ainda não estejam adotando a solução final, talvez por lembrarem que Lacerda acabou se dando mal (a imprensa descobriu).

Devemos insistir na necessidade de discussão do modelo social sob o qual vivemos e que é a causa de todos os males, ao invés de ocultarmos os problemas debaixo do tapete, adotando soluções paliativas que nunca resolvem satisfatoriamente qualquer problema.

Há um aumento redobrado dos antigos problemas sociais, que agora explodem de forma conjunta e sob os mais variados aspectos: cracolândia, redução de direitos trabalhistas e previdenciários, desemprego estrutural, predação ecológica, aumento da violência urbana, corrupção com o dinheiro dito público, falência dos serviços públicos de educação e saúde, crise no topo das instituições do Estado, falência das contas públicas, favelização crescente, etc.
Por Dalton Rosado

Já estamos assistindo, em plena capital do País, a chocantes enfrentamentos de populares com o aparato repressivo, paradoxalmente composto composto por pessoas da mesma origem de classe (afinal os militares são irmãos, primos, namorados, ou amigos dos que protestam). 

Este quadro de deterioração social cada vez mais acentuada e acelerada somente poderá ser revertido com a superação e o fim daquilo que lhe origina: a mediação social feita pelo dinheiro, que se tornou criminosa, obsoleta e inviável.

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