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segunda-feira, 15 de agosto de 2022

SARAVÁ, OGUM!

Não sou umbandista.

Nem católico, nem espírita, nem islamita, nem budista.

Menos ainda adepto de qualquer dos cultos ao bezerro de ouro que hoje proliferam, arrancando com  engodos as últimas moedas dos miseráveis.

Com os religiosos sinceros convivo.  Aos mercantilizadores da fé desprezo profundamente.   
Minha mãe era kardecista e eu a acompanhava às sessões quando criança. Lá pelos 11 ou 12 anos, numa semana estava doente e não fui. Noutra, chovia forte e não fomos. Na terceira percebi que, bem lá no fundo, eu realmente não queria ir, então nunca mais fui.

As religiões de matriz africana me agradam esteticamente, pela alegria, pelas cores, pelas danças, pela musicalidade e porque as histórias de orixás me lembram a mitologia grega, que eu adoro.

Se tivesse de escolher culto para assistir, dentre todas as religiões que conheço, seria um da umbanda. Certamente não ficaria entediado nem contando os minutos para dar o fora dali. Mas, e a fé?  Continuaria ausente.
Quando não passam de engana-trouxas, as religiões são exatamente o que Karl Marx disse no arrazoado célebre, tantas vezes e tão sordidamente deturpado:
"A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.

A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola".
O ópio, como todos deveriam saber, era uma droga utilizada no século retrasado para mitigar a dor. Cumpria bem tal papel, evitando que doentes graves sofressem terrivelmente. Mas, como não atacava a causa da moléstia, proporcionava apenas um alívio momentâneo. Foi neste sentido que Marx a ele se referiu, como se constata indiscutivelmente na frase completa.

Sou revolucionário e dediquei a minha vida a substituir as felicidades ilusórias dos homens pela satisfação das necessidades humanas, numa sociedade regida pela priorização do bem comum e pela fraternidade plena. 

Mas, até chegarmos ao reino da liberdade, para além da necessidade, os revolucionários não podemos jamais nos omitir da defesa dos injustiçados e perseguidos neste vale de lágrimas.
É o que estão sendo hoje e agora os devotos das religiões africanas. Impiedosamente.

Que ninguém se iluda: a cruzada encabeçada pela Micheque não é espiritual, mas racista. Apela aos piores instintos das piores pessoas, aquelas para quem um repulsivo consolo é existir alguém em situação mais desgraçada ainda. 

Nem me lembro mais de que personagem de filme ouvi a frase que melhor explica a atitude e a visão de mundo de um branco pobre e racista: "Se eu não sou melhor do que um negro, melhor do que quem eu vou ser?". 
Quem não tem coragem para queimar os negros nas cruzes, como os carrascos da Ku Klux Khan, inventa lorotas para disfarçar o sonho monstruoso que carrega na alma. 

Como revolucionários, nosso lugar é sempre ao lado dos negros barbarizados e que têm seus templos vandalizados, além de serem expostos à estigmatização pelos farsantes da política crapulosa. 

Se houvéssemos todos sido mais firmes na solidariedade às vítimas desse racismo travestido de religiosidade, tão ignóbil preconceito não estaria sendo usado nas fake news contra o candidato Lula, nem na cínica retórica das ovelhas desgarradas que Cristo, se aqui estivesse, expulsaria das marchas a si dedicadas como fez com os vendilhões do templo. (por Celso Lungaretti)
 

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

A ÉPOCA DE OURO DA MPB/5 (1969/1972)

No 7º FIC (1972), o amargo fim: artistas demais e talento de menos no palco.
N4º Festival da Música Popular Brasileira, que a Record realizou em outubro/novembro de 1968, a censura já dava as cartas, toda poderosa. Tom Zé, p. ex., teve de trocar os versos "o empregador que condena/ um atentado por quinzena" (referência a ações armadas) por "o pregador que condena/ um festival por quinzena"!!!

Como novidade, houve duas relações de premiados.

júri especial (críticos e artistas ilustres) escolheu "São, São Paulo, meu amor", de Tom Zé, seguida de "Memórias de Marta Saré" (Edu Lobo/Gianfrancesco Guarnieri), "Divino Maravilhoso" (os autores Caetano e Gil, até em razão da má experiência com o FIC, cederam a música e o palco para a tímida Maria das Graças se metamorfosear na agressiva Gal, sob óbvia influência de Janis Joplin), "2001" (Tom Zé/Rita Lee) e "Dia da Graça" (Sérgio Ricardo).
Melhores momentos da final do 4º festival da Record 
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"Marta Saré" também foi vice na votação popular, enquanto o tributo sarcástico de Tom Zé a São Paulo ficou apenas em 5º lugar.

O povo preferiu a xaroposa "Bem-vinda", outra canção convencional e atemporal que Chico Buarque compôs no ano de maior efervescência política e cultural da nossa história recente.

Em 3º, uma curiosa parceria entre Ary Toledo e Chico Anísio, para enaltecer o clã dos Kennedys: "A Família".

O 4º foi para "Bonita", estranha guarânia de um Geraldo Vandré que parecia pressentir a tragédia que se abateria sobre ele.
Inacreditavelmente, a magnífica "Sentinela", de Milton Nascimento, não entrou em nenhuma das listas. Talvez porque o júri especial soubesse tratar-se de (e temesse premiar) um tributo velado a Che Guevara, enquanto os cidadãos comuns ignoravam tal detalhe...

No 4º FIC, em setembro de 1969, vitória de "Cantiga para Luciana", de Edmundo Souto e Paulinho Tapajós.

Nas colocações seguintes, outras musiquinhas rasteiras.

E pensar que concorriam "Gotham City" (Macalé/Capinan), "Ando Meio Desligado" (Mutantes) e a antológica "Charles Anjo 45" (Jorge Ben)!!! Os juris continuavam sendo simpáticos, mas incompetentes...
5º FIC, em outubro de 1970, lançou Ivan Lins (2º lugar, com "O amor é meu país", dele e Ronaldo Monteiro) e Gonzaguinha (4º, com "Um abraço terno em você, viu, mãe".

Sueli Costa ficou em 3º, com "Encouraçado", dela e Tite Lemos.

E quem venceu, acreditem, foi a intragável "BR-3", de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, projetando Tony Tornado – cuja carreira principal logo se tornaria a de ator coadjuvante em pornochanchadas.

No 6º FIC, setembro de 1971, os artistas mais renomados tramaram um protesto contra a censura, que ocorreria quando o festival estivesse sendo transmitido ao vivo para o Brasil e outros países.
A TV Globo ficou sabendo (espalhou-se, com base em mera suposição, que o delator teria sido o Wilson Simonal, por ter agentes subalternos da repressão como companheiros de farras) e, inviabilizada a surpresa, os grandes nomes retiraram em bloco suas composições.

Vitória de "Kyrie", de Paulinho Soares e Marcelo Silva.

A 3ª colocada, "Desacato", da dupla Antonio Carlos e Jocafi, foi a única que emplacou em termos comerciais. Artisticamente, nenhuma.

Finalmente, no 7º FIC, setembro de 1972, a TV Globo teve de destituir o júri para premiar sua preferida, "Fio Maravilha", de Jorge Ben, com Maria Alcina.
Fim de feira apropriado para um ciclo que, na verdade, tinha terminado em dezembro de 1968, quando o Ato Institucional nº 5 impôs ao País a paz dos cemitérios, sufocando as energias criativas dos artistas, que não puderam mais cumprir seu papel de antenas da raça.

Melancólico, o derradeiro FIC deixou, pelo menos, uma semente: "Cabeça", de Walter Franco, lançou o experimentalismo pós-tropicalista que vicejaria nos anos seguintes, com ele próprio, Jards Macalé, Jorge Mautner, Hermeto Paschoal, Naná Vasconcellos, Wagner Tiso, Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, entre outros.

Epílogo – Em termos artísticos a era dos festivais se encerrara no final de 1968, com a assinatura do AI-5; o que teve fim em 1972 foi a sequência de eventos anuais que se iniciara em 1965. Daí em diante, pipocariam esporadicamente tentativas de retomada, mas estas serviram apenas para confirmar que aquela página tinha sido mesmo virada.
Uns poucos resquícios da época de ouro da MPB ainda se notariam no Festival Abertura da TV Globo (fevereiro/1975), cuja vitória coube à esquecível e esquecida "Como um ladrão", de Carlinhos Vergueiro. Marcantes foram, isto sim, a partida de dados que Walter Franco e o maestro Júlio Medaglia fingiram estar jogando, enquanto o público vaiava histericamente "Muito tudo"; e Alceu Valença despontando para o estrelato com "Vou danado pra Catende".

E também no Festival 79 da Música Popular, que a TV Tupi promoveu quatro anos mais tarde – até porque Walter Franco, com sua blueseira e contundente "Canalha", recebeu nova vaia digna de Sérgio bom de bola Ricardo e de Caetano Cohn-Bendit Veloso.

O júri igualmente bisou a crassa incompetência dos congêneres de outrora, dando a vitória à banal "Quem me levará sou eu" (Dominguinhos/Manduka), quando imensamente melhores eram a própria "Canalha", "Bandolins" (Oswaldo Montenegro") e "Sabor de veneno" (Arrigo Barnabé).

Depois, nem isto. Os MPB Shell de 1980, 1981 e 1982, bem como o Festival dos festivais de 1985, foram meras irrelevâncias. Nada sobrara do boi para a TV Globo faturar mais uma graninha, nem mesmo o berro...  (por Celso Lungaretti)

sábado, 20 de novembro de 2021

A ÉPOCA DE OURO DA MPB/4 (1968)

"Caminhando" foi o ápice da carreira do Vandré e também a causa maior de seus infortúnios
O ano de 1968 registraria uma verdadeira  overdose  de festivais. 

Erro de cálculo: estes já haviam cumprido sua função, de renovação estética e revelação de uma geração de artistas que dominaria a cena brasileira, pelo menos, durante a década seguinte inteira.
Jair Rodrigues na Bienal do Samba: 4º lugar.

E a política, que até então se expressara por meio da música e ajudara a alimentar o interesse por esses eventos, agora se jogava definitivamente nas fábricas, escolas e ruas.

Inventaram festivais de todo tipo: dos Presidiáriosdo Violão, de Música Carnavalesca, etc.

O mais duradouro dessa safra tardia foi o Universitário da Canção, promovido pela TV Tupi, que se aguentou até 1971. 

O saldo de seus quatro anos de existência foi a afirmação do Movimento Artístico Universitário, integrado por Ivan Lins, Gonzaguinha, Aldir Blanc, César Costa Filho, Ronaldo Monteiro, Ruy Maurity, Paulo Emílio, Quarteto Forma, Rolando Faria, etc.

Além disto, foi nele que começaram a despontar Alceu Valença, Belchior, Fagner, Abílio Manoel, Walter Franco e outros.
Não tinha caráter nacional; cada Estado importante realizava o seu, daí ser impraticável fornecer-se a lista de premiações. Entre as músicas que se tornaram mais conhecidas estão "O Trem" (Gonzaguinha), "Mucuripe" (Fagner), "Na hora do almoço" (Belchior) e "Pena verde" (Abílio Manoel).

A Record abriu 1968 com a Bienal do Samba, organizada às pressas para aproveitar a maré. Vitória de "Lapinha", de Baden Powell e Paulo César Pinheiro.
Chico Buarque ficou em 2º, com uma música que atesta o quanto ele estava alheio à barra pesada daqueles dias: "Bom tempo". [Depois, na autocrítica "Agora falando sério", ele reconheceria a impropriedade de ter feito "cantiga tão bonita/ que se acredita/ que o mal espanta".]

Destaque para um Sérgio Ricardo que, na agradável "Luandaluar", fez os censores de tolos, pois só eles não devem ter captado o que estava subentendido no verso "Abaixo a desventura!"; para a marcante "Canto chorado" (de Billy Blanco, com Jair Rodrigues), que merecia bem mais do que o 4º lugar; e para a paciente e metódica escalada para o estrelato de Paulinho da Viola, cuja "Coisas do mundo, minha nêga" obteve o 6º lugar.
A Excelsior tentou em julho ressuscitar seu Festival Nacional da Música Popular Brasileira, mas apenas acabou de o enterrar.

"Modinha", uma amenidade de Sérgio Bittencourt, ficou em 1º, secundada por "Ultimatum", dos oportunistas Marcos e Paulo Sérgio Valle, então em fase de bajular a esquerda.

A instigante "Mágica", dos Mutantes, nem chegou à final, da qual participaram com a menos importante "Lovely Rita".
O veterano João Dias teve uma aparição bizarra, defendendo "Capoeira", de Evaldo Gouveia e Jair Amorim.

Sérgio Ricardo não obteve o justo reconhecimento para sua impactante "Gira-sol", o melhor fruto de sua fase experimental em que tentava abrir novos caminhos (brincando com o som das palavras como os poetas concretistas, ousando ir além das chamadas raízes musicais e até inovando em suas performances – foi, que eu saiba, o primeiro a utilizar filmes como pano-de-fundo para suas músicas, numa curta temporada no Teatro de Arena (SP), em 1968.
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A cidade cantou com Vandré. Aí veio o dilúvio – O último grande marco da época dos festivais foi o 3º FIC, que a TV Globo realizou em setembro.
Ocorreu em meio a passeatas, mortes, ações armadas da esquerda, atentados dos paramilitares de direita, atuação impune do CCC (que acabara de espancar o elenco da peça Roda Viva, em SP), TFP, TFM e outras siglas medonhas.

A temperatura começou a ferver na eliminatória paulista, quando Caetano Veloso recebeu monumental vaia ao defender, com os Mutantes, sua "É proibido proibir", baseada numa palavra-de-ordem das recentes barricadas parisienses.

Gil, com barba cerrada e camisolão africano, chocou tanto a plateia pela aparência quanto pelos versos incendiários de "Questão de ordem".
Ao serem anunciadas as músicas classificadas para a grande final no RJ, Caetano foi  proibido, pelas vaias, de  apresentar sua "É proibido proibir". Já irritado por "Questão de Ordem" ter ficado de fora, explodiu, pronunciando o discurso famoso:
"Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? (...) São a mesma juventude que vai sempre, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que morreu ontem! (...) Vocês são iguais sabe a quem? (...) Àqueles que foram ao Roda Viva e espancaram os atores. Vocês não diferem em nada deles!"
A esquerda compareceu ao Maracanãzinho com o que tinha de melhor: "Caminhando", profissão-de-fé de um Vandré amargurado por várias desilusões recentes e que extraiu do sofrimento seus versos mais certeiros e contundentes; "América, América", altaneiro tributo de César Roldão Vieira ao comandante Che Guevara; e "Canção do Amor Armado", outra culminância da fase de ousadias de Sérgio Ricardo.

Pressões das autoridades ditatoriais sobre os organizadores, e destes sobre o júri, impediram a vitória da grande favorita do público: "Caminhando". Graças a um expediente típico de araponga, o radialista Walter Silva esqueceu um gravador ligado no recinto da reunião do júri, constatando então que os jurados foram orientados a não premiar músicas que fazem propaganda da guerrilha.
A reapresentação de "Caminhando", já anunciado seu 2º lugar, foi comovente, com os moradores de Copacabana saindo às janelas para cantá-la junto com a TV (colocada no volume máximo!), num clímax emocional que tinha a ver tanto com a injustiça musical quanto com as indignidades a que os efetivos da repressão haviam recém-submetido os participantes de uma  passeata, urinando nos jovens rendidos e bolinando as moças, tão confiantes na sua impunidade que se permitiam praticar tais atos em público.

A maior vaia da história dos festivais foi então direcionada a "Sabiá", impedindo que as atônitas Cynara e Cybele bisassem a vencedora. Para compensar, a Globo deu um jeitinho para que esta canção anódina vencesse também a fase internacional do 3º FIC...
Juízos estéticos à parte, a composição de Chico Buarque e Tom Jobim estava mesmo em descompasso com o Brasil convulsionado daqueles dias e pagou por isto.

As demais classificadas:
— , "Andança", de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, por Beth Carvalho e Golden Boys;
— , "Passacalha", de Edno Krieger, pelo Grupo 004; e
— , "Dia da Vitória", de Marcos e Paulo Sérgio Valle, pelo primeiro.
Foram preteridas músicas indiscutivelmente melhores do que estas três últimas, como "O sonho" (Egberto Gismonti), "Caminhante noturno" (Mutantes), "Na boca da noite" (música de Toquinho e versos – belíssimos!!! – de Paulo Vanzolini) e "Oxalá" (Theo de Barros), além das já citadas "Canção do Amor Armado" e "América, América".  

Além de covarde, o júri foi de uma incompetência ímpar. (por Celso Lungaretti)

quinta-feira, 18 de novembro de 2021

A ÉPOCA DE OURO DA MPB/3 (1967)

sucesso de O Fino fez brotarem os concorrentes, paradoxalmente quase todos também da TV Record;  a exceção ficou por conta de Ensaio Geral, da TV Excelsior, com Gil, Bethânia, Marília Medalha e outros, que durou uns quatro meses, no início de 1967.

A emissora do Aeroporto, mais ambiciosa, diversificou sua linha de produtos a ponto de, praticamente, apresentar um show a cada dia da semana: 
  • Bossaudade, que reunia a  velha guarda, sob o comando da Elizeth Cardoso;
  • Elza Soares e Germano Mathias (samba do morro e do asfalto);
  • Pra ver a banda passar, com Chico Buarque e Nara Leão;
  • Show em Si-monal (com os expoentes da chamada  pilantragem; e
  • Disparada, com Geraldo Vandré.
O ponteio era da viola, mas também de metralhadora... 
O resultado foi o enfraquecimento d'
O Fino, privado de várias atrações, sem que os outros programas decolassem.

Na última fase, O Fino ainda tentou sobreviver numa linha mais descontraída, com Juca Chaves, humoristas, conjuntos regionais e outras fórmulas desencontradas que os novos produtores, Miéle e Bôscoli, testaram. A audiência continuou despencando.

De certa forma, era o fim da fase ecumênica da MPB. Os artistas de classe média, em conjunto, ocuparam o espaço que se lhes ofereceu no mercado e expandiram-no ao máximo. Os objetivos comuns terminaram aí.

Seguir-se-ia uma diversificação de propostas e interesses, inicialmente polarizada no confronto entre engajados  e tropicalistas, depois explodindo em dezenas de grupelhos com identidades precárias.

Enquanto os teóricos (como Gil) alinhavavam explicações confusas, colocando a culpa no colonialismo cultural, falta de novas músicas, má divulgação, exclusivismo dos cantores (que faziam questão de ser os únicos a gravar cada canção) e crise de intérpretes, a intempestiva Elis Regina encontrou logo seu bode expiatório para as desgraças d'O Fino: a Jovem Guarda.
"Domingo no Parque": canção comum + guitarras

Então, no 
Show do Dia 7 do mês de junho, deitou falação contra o programa de RC.

Na sequência (e como provável consequência), a direção da Record resolveu extinguir O Fino, alegando "dados do Ibope que acusaram queda de audiência", como explicou na nota distribuída à imprensa.

O último programa, gravado no dia 19, foi ao ar em 21 de junho (25 meses após a estréia). Os convidados foram Vandré, Gil, Jair Rodrigues, Trio Maraiá, Quarteto Novo e Maria Odette.

O Teatro Paramount (recém-alugado pela Record) ficou lotado e uma multidão permaneceu na calçada da av. Brigadeiro Luiz Antônio, sem conseguir entrar.

Colheram-se assinaturas em protesto contra sua extinção.

Elis Regina encerrou com um comovente "sem ter vocês, sem ver vocês, eu não sou ninguém".

Durante dois meses, a Record ainda levou ao ar um programa na mesma linha, só que comandado a cada semana por apresentadores diferentes.
Chico Buarque logo entraria mesmo numa roda-viva...
Revezavam-se nessa função Elis Regina/Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Chico Buarque/Nara Leão e Gilberto Gil.

Havia quatro equipes de produção, para darem conta de quatro propostas distintas, respectivamente calcadas nos finados O Fino, Disparada, Pra ver a banda passar e Ensaio Geral.

Inicialmente intitulado Noite da Música Popular Brasileira, passou depois a chamar-se Frente Única da Música Popular Brasileira.

Trocou de dia (da 2ª para a 3ª feira) e de horário (das 20h para as 21h30), sem que nada alterasse a tendência decrescente na pontuação do Ibope.

Enfim, após um desentendimento público entre Paulinho Machado de Carvalho e Vandré (que acusava a Record de não investir suficientemente na MPB e de censurar seu programa), a Frente Única se desfez discretamente em setembro..
Caminhando contra o vento, sob muitas vaias – O 3º Festival da Música Popular Brasileira se iniciou em setembro de 1967, quando ninguém adivinhava que nos recônditos daquela pasmaceira que prevalecia nas ruas e só era sacudida pelas manifestações artísticas estava sendo incubado o grande ano da contestação no Brasil (e no mundo). 

Documentário com todas as finalistas do Festival da Record de 67...

Era a calmaria que antecede as tempestades.

O certame da Record foi marcado por um dos episódios mais deprimentes de toda a história dos festivais: o público pespegou monumental vaia numa composição que abordava com muita propriedade o fenômeno futebol.

Sérgio Ricardo, compositor idealista e talentoso, autor de clássicos como "Zelão" e "Esse mundo é meu", além de haver dado magnífica contribuição musical para duas obras-primas de Glauber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol e Terra em transe), cansou de tentar interpretar sua "Beto bom de bola". Que não era nem de longe alienada, tratando-se, isto sim, de uma veemente denúncia da engrenagem esportiva que tritura ingênuos como Mané Garrincha.

Afinal, o artista explodiu: "Vocês são uns animais!". E, arrebentando seu violão, atirou-o contra os espectadores. [A manchete jocosa de um jornal sensacionalista foi "Violada no palco"...]

...menos uma, a do Vandré, cujo sumiço foi pra lá de suspeito!
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O festival da Record de 1967 trouxe à tona, ainda, uma aguda cisão no front da música popular:
  • de um lado os defensores dos ritmos genuinamente brasileiros e das canções engajadas às lutas sociais; e
  • do outro, os adeptos do  som universal, da liberdade temática e das experiências formais.
Em teoria, a posição dos tropicalistas era inatacável: as raízes culturais só se mantêm vivas e puras em comunidades fechadas, não no Brasil de 1967, com sua economia integrada ao bloco ocidental e as informações chegando de todos os lados.

Na prática, entretanto, a contestação ao autoritarismo das lideranças políticas foi, para muitos, um pretexto conveniente para delas se afastarem, servindo-lhes, portanto, como justificativa de sua omissão num período crítico da vida brasileira.
Músicos protestando contra as guitarras elétricas alheias

A derrota, sabemos hoje, custou-nos anos e anos de trevas absolutas. Mas, seria um exagero imputá-la apenas aos jovens que se desgarraram do rebanho ao verem o lobo se aproximando...


O próprio tropicalismo foi, por sinal, contraditório, ora pregando a revolta jovem ("É proibido proibir") e fazendo a apologia da guerrilha ("Soy loco por ti, América", "Questão de Ordem"), ora se embasbacando com as vitrines e outros signos da sociedade de consumo.

Em tempos normais, seria uma mistura de Semana de 1922 com psicodelismo à Beatles.

Em meio ao transe brasileiro, assumiu posturas às vezes mais radicais que  a daqueles (os puros) que faziam passeatas contra as guitarras elétricas.

E, no final, acabaram todos vítimas dos mesmos algozes, frequentando as mesmas prisões e amargando o mesmo exílio.
Caetano Veloso apresentou a canção mais inovadora
A canção-manifesto do tropicalismo foi "Alegria, alegria", de Caetano, que ele interpretou acompanhado pelos Beat Boys, conjunto de iê-iê-iê cujos integrantes ostentavam enormes e desgrenhadas cabeleiras.

[Um deles era o guitarrista e cantor Tony Osanah, que parecia não saber exatamente em qual América se encontravam suas raíces, daí seguir pulando de galho em galho...]

Flagra o estado de perplexidade resultante do bombardeio de informações, contrapondo-lhe o descompromisso de caminhar "contra o vento, sem lenço, sem documento". Ficou em 4º lugar.

"Domingo no Parque" é uma música descritiva, que nos sugere imagens cinematográficas e nada mais. Gil, aliás, já fizera coisa semelhante em "Água de Meninos". O que ela teve de tropicalista foram as guitarras elétricas dos Mutantes.

Numa total inversão de valores, o júri atribuiu-lhe a 2ª colocação, à frente da incomparavelmente superior "Alegria, alegria".

A vitória coube a "Ponteio", de Edu Lobo e Capinam, um dos temas da trilha musical do filme A Vida Provisória, de Maurício Gomes Leite.
"Água de Meninos": quase um rascunho da "Domingo no Parque".
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Metafórica (a viola a cujo ponteio os versos aludem é a metralhadora guerrilheira), correta, com ótimo arranjo e as presenças simpáticas de Edu Lobo e Marília Medalha, foi a solução encontrada para não se premiar a sensação tropicalista; em termos criativos, contudo, não avançou um milímetro em relação ao que já se fazia.

Em 3º lugar, Chico Buarque com "Roda Viva", composta para a peça homônima (aquela cuja encenação foi vandalizada por uma horda do CCC) e defendida pelo autor com o MPB-4.

No 5º, a xaroposa "Maria, carnaval e cinzas", de Luís Carlos Paraná, por Roberto Carlos e O Grupo.

Como melhor letra, prêmio merecidíssimo para "A Estrada e o Violeiro", do precocemente falecido Sidney Muller (mesmo destino, aliás, da Nara Leão, que a interpretou em dupla com ele).

Finalmente, é muito estranho que este seja o festival do qual se conservaram mais e melhores gravações, com a única exceção de "Ventania", de Geraldo Vandré, cujo sumiço pode ter sido imposição dos militares, mas também uma mera pirraça dos mandachuvas da TV Record (vide aqui).
A fútil "Margarida". Melhor do que "Travessia"? Jamais!

O ano teve ainda o 2º Festival Internacional da Canção, em outubro. 

Era um certame que teimava em não esquentar. Mas, quando isto finalmente ocorreu, o calor gerado seria suficiente para incandescer toda uma cidade – que era maravilhosa, mas estava raivosa com os excessos bestiais da ditadura – e devorar em suas chamas um dos maiores talentos da música brasileira em todos os tempos (esta história contaremos depois).

Em 1967, valeu apenas pela revelação de Milton Nascimento, que classificou e defendeu "Travessia" (dele e Fernando Brant, 2ª colocada), "Morro velho" (7ª) e "Maria, minha fé",

A vencedora foi a pueril "Margarida", de Gutemberg Guarabyra, por ele e o Grupo Manifesto.

Em 3º, a xaroposa "Carolina", de Chico Buarque, por Cynara e Cybele.
O 2º FIC injustiçou esta obra-prima de Milton Nascimento

terça-feira, 16 de novembro de 2021

A ÉPOCA DE OURO DA MPB/2 (1966)


Vandré se destaca também, à época, pela extraordinária trilha musical que criou para o filme A Hora e  Vez de Augusto Matraga, de Roberto Santos, na qual pontificam "Réquiem para Matraga", "Modinha" ("Rosa, Hortência e Margarida") e a vigorosa “Cantiga Brava”.

Confirma a boa fase com “Disparada”, dele e Théo de Barros, uma das ganhadoras do 2º Festival da Música Popular Brasileira que a TV Record promoveu em setembro/outubro de 1966.

Épico sertanejo, “Disparada” coroa as pesquisas de Vandré no sentido de definir um idioma musical comum ao Centro-Nordeste e às pessoas egressas dessas regiões que se estabeleceram no chamado  Sul Maravilha, mas ainda traziam as marcas do êxodo rural.

É a saga do peão que, após longo tempo cumprindo tarefas subalternas (“na boiada já fui boi”), ascende a boiadeiro, “por necessidade do dono de uma boiada cujo vaqueiro morreu”.
Clique p/ ver a obra-prima de Roberto Santos, com trilha musical do Vandré
.
Contar com uma montaria é uma verdadeira realização para aquele homem simples, mas “o mundo foi rodando, nas patas do meu cavalo”, até que, de repente, ele acorda de sua euforia e se descobre “valente lugar-tenente de dono de gado e gente”.

Então recusa a condição de braço-direito do latifundiário, “porque gado a gente marca, tange, ferra, engorda e mata, mas, com gente é diferente”.

A interpretação foi de Jair Rodrigues, a simpatia em pessoa. Não percebia, contudo, que o público explodia em aplausos no trecho "mas, com gente é diferente" como um desabafo contra a ditadura; sua inadequada reação era abrir um largo sorriso.  

E chamou a atenção o uso, como instrumento musical, de uma queixada-de-burro, na verdade mais uma atração exótica do que qualquer outra coisa.

“Disparada” dividiu o primeiro lugar com “A Banda”, de Chico Buarque, interpretada pelo autor juntamente com a Nara Leão.
Carioca radicado em São Pulo, Chico em pouco tempo saltou da boêmia universitária para a consagração nacional, apontado como um novo Noel Rosa.

As letras de precoce desencanto faziam a delícia das mocinhas românticas, como também sua timidez e os paparicados olhos verdes.

Suas composições mais características eram do tipo “Meu Refrão”, “Olê Olá” e “A Banda”, com lirismo, tristeza e rimas certinhas.

Vez por outra incursionava no campo das preocupações sociais, mais por influência do ambiente político que frequentava. O exemplo mais conspícuo é “Pedro Pedreiro”.

Fãs menos atentos acabaram identificando-o também com os poemas (de João Cabral de Melo Neto) que musicou para a peça famosa do Tuca, Morte e Vida Severina.

O público teve participação intensa neste festival, praticamente se dividindo no apoio à “Disparada” e “A Banda”. Como se estivessem num estádio de futebol, os torcedores hostilizavam o time adversário, xingando uns aos outros de bandidos e disparatados...
Por estreita diferença, o júri concedeu o 1º lugar a Chico Buarque que... insurgiu-se contra sua vitória! Dela cientificado pelos organizadores antes de ser chamado ao palco para o anúncio da decisão, dignamente se recusou a aceitar o prêmio, por não considerar "A Banda" melhor do que "Disparada". Impasse estabelecido, a saída foi proclamarem ambas como vencedoras.

No 2º lugar, “De amor ou Paz”, de Luís Carlos Paraná e Adauto Santos, por Elza Soares.

3º, “Canção para Maria”, de Paulinho da Viola e Capinan, por Jair Rodrigues.

4º, “Canção de Não Cantar”, de Sérgio Bittencourt, pelo MPB-4.

5º, “Ensaio Geral”, de Gilberto Gil, por Elis Regina (um erro de cálculo do Gil: pensando que a fase ainda fosse de marchas-ranchos, inscreveu uma espécie de Porta-Estandarte 2...).

Como melhor letra ficou a belíssima “Um Dia” ("Eu não estou indo embora, 'tou só preparando a hora de voltar"), do saudoso Caetano Veloso de antes do endeusamento e da máscara... 

Na definição lapidar de Paulo Francis, o Caetano era então um ser humano vulnerável, sensível, tanto que um dia foi parar na PE do Rio, “mas isto foi em outro país e aquele rapaz morreu”.
Segundo os jornais da época, a péssima (Que exagero!) dicção de Maria Odette prejudicou acentuadamente a classificação de “Um Dia”. 

Para fechar um grande ano desses certames, houve ainda o 1º Festival Internacional da Canção, em outubro, no Maracanãzinho (RJ).

Vitória da pífia “Saveiros”, de Dori Caymmi e Nelson Motta, por Nana Caymmi. Convencional, com impacto zero. 

Mesmo não sendo nenhum assombro, a vice merecia melhor sorte: “O Cavaleiro”, de Geraldo Vandré e Tuca, na voz da segunda. O compositor paraibano continuava seguindo as pegadas de Guimarães Rosa, mas com uma abordagem cada vez mais politizada.

A seguir, “Dia das Rosas”, de Luís Bonfá e Maria Helena Toledo, com Maysa.

As agradáveis “Beira Mar” (Gil/Caetano) e “Minha Senhora” (Gil/Torquato Neto) passaram despercebidas.
O 2º FIC injustiçou esta obra-prima de Milton Nascimento
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