"O ministro de estado da Justiça, no uso de suas atribuições legais (...) e considerando o resultado do julgamento proferido pelo plenário da Comissão de Anistia na sessão realizada no dia 27 de julho de 2005, (...) resolve declarar Celso Lungaretti anistiado político (...), concedendo-lhe reparação econômica de caráter indenizatório, em prestação mensal, permanente e continuada, referente ao cargo de editor..."
No próximo domingo, portanto, se completarão 20 anos desde a sessão da Comissão de Anistia que foi o ponto de partida da maior volta por cima que dei na vida.
Em 1970 eu caíra numa armadilha de História e acabei sendo injustamente acusado de delatar a área principal de treinamento guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária, cuja localização eu nem sequer conhecia.
Por já estar preso no DOI-Codi/RJ, facilmente deduzi quem apontara aos militares onde ela ficava, mas não tinha provas e, ao perceber que estavam me fazendo de bode expiatório nessa questão, avaliei que seria ruim demais para a Organização e para todos os companheiros se eu tornasse pública minha conclusão.
Tinha esperança de que ainda conseguiria lançar luzes sobre aquele episódio e, malgrado muitos companheiros não me concederem o benefício da dúvida, ainda tive oportunidade de prestar solidariedade revolucionária a outros injustiçados, nos casos dos quatro de Salvador e da expulsão de Paulo de Tarso Venceslau do PT.
A virada do milênio, no entanto, teve um efeito surpreendente sobre mim: de um dia para outro senti que me privara de algo muito precioso ao não ser, até então, pai biológico. Criara uma filha adotiva até os 14 anos e fora uma má experiência, mas o meu melhor amigo me garantia que com uma criança do meu sangue o desfecho seria diferente.
Acreditei e finalmente resolvi colocar em risco a situação estabilizada que já conquistara aos 50 anos pelo sonho de ser responsável por outra vida. Antes mesmo de o Martinho da Vila compor a belíssima "Tom maior", eu já me imaginava transmitindo meu legado a um ser querido, ensinando-o a viver onde ninguém é de ninguém e a amar a liberdade como sempre amei.
Mas dar fim à velha vida foi oneroso e uma crise no mercado jornalístico era mau sinal para quem tinha salário elevado (o meu era). Enquanto isto, o projeto da nova vida estava dando certo, já tinha uma namorada grávida.
Então um amigo advogado me trouxe a notícia sobre o início de atuação da Comissão de Anistia e eu tive o bom senso de inscrever-me no programa, embora me incomodasse ser recompensado por algo que fizera por idealismo e não por interesse.
O que eu temera, contudo, aconteceu. Fiquei desempregado em dezembro de 2003 e passei enormes dificuldades financeiras em 2004 e 2005. A reparação econômica pelos danos físicos, psicológicos, morais e profissionais que um governo ilegítimo me causara acabou se tornando minha última esperança de voltar à tona.
E tive de lutar por essa chance, pois os critérios do programa estavam sendo descumpridos e a prioridade para os desempregados na marcação de julgamentos, que me favorecia, vinha sendo ignorada pelo colegiado. Precisei exigir meu direito.
Finalmente, no dia 27 de junho de 2005 ocorreu o julgamento que decidiria se eu receberia uma indenização em parcela única de R$ 50 mil ou uma pensão vitalícia no valor médio dos salários que recebia no último emprego.
Devendo três aluguéis, ainda tendo um teto graças à solidariedade da administradora, a indenização só serviria para prolongar a minha agonia, não para sair dela.
Sem formação jurídica, confiando no que aprendera no exercício do jornalismo, defendi sozinho o meu caso, o que quase nenhum anistiando fazia. O representante das Forças Armadas na comissão tudo fez para que eu recebesse apenas a indenização, mas acabei sustentando bem o meu pleito.
Deram-me a pensão vitalícia sem nenhum voto contrário: mesmo o que estava contra mim optou por abster-se. E o decano da comissão, no seu voto, disse que até então o meu caso era o de mais flagrante injustiça dentre todos que haviam sido julgados.
Exausto, ansioso por ar fresco, saí da sala de audiência e desabei no primeiro banco que vi. Então vieram uns seis funcionários subalternos da comissão me cumprimentar. Tão focado eu estava na batalha legal que nem percebera a torcida do pessoal dos serviços de apoio por mim. Uma senhora até chorou.
E eu também choraria, se pudesse; fazia décadas que as lágrimas haviam secado. De tanto esforçarmo-nos para não dar tal satisfação ao inimigo, era frequente os torturados ficarmos com esse bloqueio permanente.
Com o depoimento do historiador Jacob Gorender em meu favor, seguido da decisão da Comissão de Anistia, a esquerda passou a reconhecer a minha condição de injustiçado, o que inclusive permitiu que eu fosse o porta-voz informal do Comitê de Solidariedade ao Cesare Battisti no período 2008/2011 e que assumisse no Orkut, durante a década retrasada, o papel de um dos principais defensores da luta armada brasileira e dos militantes que a travaram.
Éramos eu e o companheiro Ivan Seixas contra toda a rede das viúvas da ditadura e olavetes. E na batalha dos argumentos sempre prevalecíamos. (por Celso Lungaretti)
6 comentários:
Só em 27 de junho de 2005 você se viu reconhecido como "caso de mais flagrante injustiça dentre todos que haviam sido julgados"
Massafumi Yoshinaga desistiu da vida em 7 de junho de 1976. Tivesse resistido, teria sido igualmente anistiado. Não esqueçamos dos 50 anos em 2026.
O Massafumi deveria, sim, receber a anistia. Ela não era um prêmio para quem tinha se comportado melhor diante do inimigo, mas sim uma reparação por o cidadão sofrer arbitrariedades praticadas por um governo ilegítimo, fruto de um golpe de estado. O Massa se entregou para o Deops depois de ter sido abandonado pela VPR, que aceitou seu pedido de desfiliar-se, mas não lhe deu meios para sobreviver (ele havia ficado procuradíssimo em função de sua militância na VPR, antes não o era).
Daí aquela dificuldade que a Comissão teve para não anistiar o cabo Anselmo. Se ele tivesse se tornado agente da repressão durante a ditadura, faria jus, sim, à anistia, pois sua vida teria sido alterada em função de estar em vigência um governo ilegítimo. Então a Comissão protelou ao máximo o julgamento dele e só o marcou quando surgiram evidências de que ele já era um infiltrado antes do golpe de 1964, com a missão de espionar os movimentos de marinheiros.
Quanto à frase a meu respeito, foi porque o representante das Forças Armadas estava conseguindo trazer para o lado dele (contra mim) alguns dos integrantes menos politizados da comissão. Então o membro mais antigo e o presidente fizeram intervenções bem enfáticas, no sentido de que eu era amplamente merecedor do benefício. Aí os membros menos influentes se posicionaram todos a meu favor e o único que estava contra preferiu abster-se.
Na verdade, eu me enquadrava nos quatro quesitos para receber a pensão vitalícia e o pessoal da comissão não tinha certeza de qual era meu lado. No momento que comecei a aparecer mais nas redes e os meus artigos passaram a ser muito lidos, perceberam que eu falava a verdade ao me queixar de que havia sido feito de bode expiatório para que outros pudessem descarregar suas culpas sobre mim. Eles não tinham uma imagem tão má dos que fizeram isso e estavam em dúvida. Mas quando me viram e ouviram, além de saberem que o Jacob Gorender jamais teria intercedido em meu favor se não confiasse na minha palavra, a orientação da comissão a meu respeito mudou claramente. Marcaram logo o meu julgamento e me deram a chance de refazer a minha vida.
Depois, quando a direita fez o maior escarcéu a respeito da reparação concedida à família do Lamarca, eles ficaram sabendo quem realmente era eu. Embora houvesse tido algumas decepções com o Lamarca enquanto militante, fui o único dos remanescentes da VPR a confrontar toda a grande imprensa para defender a sua memória e sua família. Não havia outra atitude a tomar quando os que o combatiam eram canalhas empedernidos.
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