terça-feira, 28 de janeiro de 2025

AINDA ESTOU AQUI É UM RETRATO DESPOLITIZADO E REVISIONISTA DA DITADURA MILITAR

Em Ainda Estou Aqui, lançado em 2024 e que traz Fernanda Torres e Selton Melo nos papéis principais de Eunice Paiva e Rubens Paiva, a ditadura militar brasileira é praticamente um pano de fundo para o desenvolvimento do drama familiar em torno do desaparecimento do pai, Rubens. O motivo para tal desaparecimento poderia ter sido variado, sendo causa para as angústias e dilemas familiares dos Paiva, mas ocorreu de ser pelo sequestro perpetrado pelos aparatos repressores do estado. 

Importante colocar que o filme não é sobre Rubens Paiva, mas sobre Eunice Paiva e todo ele se passa por sua perspectiva. Somos apresentados a uma típica família de classe média do Rio de Janeiro dos anos 1970, quase de margarina, frequentadora das praias de Copacabana, que adora recepcionar os amigos, com planos para construir uma nova casa e cuja filha se prepara para estudar em Londres. A ditadura aí é um detalhe, surgindo furtivamente nos caminhões com soldados ou na blitz responsável por atrasar o retorno da filha para casa. De resto, tudo vai bem.

Em Ainda Estou Aqui a ditadura aparece para 
atrasar o retorno das pessoas para casa.

Em certo sentido, há um realismo aqui, pois uma parte considerável da classe média brasileira daqueles períodos de falso milagre econômico deveriam mesmo viver a dolce vita, só tropeçando na ditadura ocasionalmente. Mesmo os trabalhadores, esmagados pelo arrocho, estavam siderados pela economia aquecida e a popularização da TV, item antes de luxo. Os revolucionários, isolados, amargavam a derrota das guerrilhas e iam caindo uns atrás dos outros. 

Contudo, a família retratada não é qualquer uma, mas a família de um ex-deputado do PTB, ex-exilado, retornado ao país com a promessa de não se envolver mais em política. Não eram raros os retornos de exilados após fazerem acordos com os militares. Um exemplo notório é de Álvaro Vieira Pinto, antigo diretor do ISEB - Instituto Superior de Estudos Brasileiros -, considerado inimigo mortal pelos golpistas de 1964 e que, após ficar no exílio na Iugoslávia e no Chile, retorna ao Brasil em 1968 para nunca mais sequer publicar um artigo de jornal com seu nome. Outros voltam e, além de abdicarem de suas atividades políticas ou intelectuais, também se curvam diante dos ditadores, caso de Geraldo Vandré, cuja submissão aos militares após seu retorno é conhecida. 

Cada com seus acordos para voltar à pátria-mãe. Porém, Rubens Paiva parece não ter cumprido sua parte do trato e volta a se imiscuir na política, para surpresa de sua esposa. O filme não mostra quais seriam as atividades políticas de Rubens Paiva, fica o dúbio nos telefonemas para ele, nas entregas noturnas e nas reuniões reservadas em seu escritório. Lembremos que o filme transcorre na perspectiva de Eunice, então, na realidade, tal modo dúbio nos é apresentado por ela mesma. Mas aí reside um ponto crucial na trama do longa, pois essa dubiedade fica lançada na tela para justificar que a prisão de Rubens teria sido injusta, pois o ex-deputado não estaria envolvido em política. Algo semelhante também é sempre reafirmado no caso de Herzog, ele não estaria envolvido em política. 

O drama familiar é retratado de forma contida.

Ora, qual o fundo disso? Uma sutil reafirmação que a mobilização política contra o regime militar era de fato um crime, agravado em caso de envolvimento com a luta armada. Algumas cenas de Ainda Estou Aqui, inclusive, reafirmam esse pecado da luta armada. No fim, é a visão mdbista de oposição consentida ao regime sendo reafirmada: a oposição só pode ser institucional, compactuando com as diretrizes políticas, econômicas e sociais da ditadura, particularmente sua guerra contra os subversivos. 

A crença no sistema jurídico da ditadura, inclusive, é reafirmada quando Eunice - seria candidamente? - sugere ir à polícia denunciar o desaparecimento de seu marido e quando o caminho do habeas corpus é insistentemente apresentado com uma fé quase religiosa. Mais uma vez, o espectador fica com a impressão que não se está em uma ditadura, mas em um regime político como qualquer outro em que uma simples carteirinha da OAB tem imensos poderes sob a milicada. Até a imprensa parece ser livre, pois Eunice fala abertamente ao jornalista sob seu caso e chega mesmo a criticar a censura. Em uma cena de puro delírio histórico, Cid Moreira, âncora do Jornal Nacional da Globo, é ouvido narrar que presos políticos foram libertos em troca do embaixador suíço sequestrado pela guerrilha. É difícil acreditar que o doutor Roberto Marinho deixasse que seu principal telejornal lesse um texto falando em presos políticos ao invés de subversivos ou terroristas. Tal cena, sutil, é exemplificadora do revisionismo histórico do filme, tentando livrar a imagem da Globo que, conforme é de conhecimento geral, funcionava como canal oficioso da ditadura. 

Roberto Marinho deixava que seu telejornal
falasse em presos políticos?

Outra cena emblemática é um soldado dizendo a Eunice não concordar com o tratamento por ela recebido na prisão. Ou seria não concordar com as próprias torturas e com a ditadura em geral? O filme deixa, mais uma vez, a dubiedade. Fato é que o famoso tira bom entra em cena aqui para, em mais um revisionismo, defender que nem todas as forças armadas compactuavam com aqueles crimes. Ora, os militares contrários ou tinham sido expulsos em 1964 ou haviam ido para a luta armada. Embora possa ser verídica a presença dos compassivos militares ao lado das câmaras de tortura - igual aos compassivos nazistas dos campos de extermínio - sua presença em tela não visa outra coisa senão limpar a imagem dos militares. 

Mesmo os militares maus, no retrato dicotômico apresentado em tela, são mostrados como praticamente lordes. Um é doutor em paranormalidade, outro adora brincar com crianças, um terceiro pede desculpas por colocar o capuz em Eunice. Claro, tudo pode estar relacionado à condição de classe da protagonista, mas, lembremos, Rubens foi barbaramente torturado e morto muito provavelmente pelos mesmos agentes tão gentilmente retratos para o espectador. Vejamos o clássico Lúcio Flávio, Passageiro da Agonia, filmado durante a ditadura, para ter um retrato mais efetivo de quem eram os agentes da repressão. 

O peso político do desaparecimento de Rubens
Paiva é diluído.
Conforme dito, porém, Ainda Estou Aqui é um drama familiar e a ditadura existe apenas como pano de fundo. Igual a ele existem milhares de filmes abordando a temática do luto pela ausência de um ente querido, com todos os cacoetes relacionados: a privação das crianças da verdade dos acontecimentos, como se elas fossem idiotas, as angústias, os apertos financeiros e finalmente a mudança de rumo, abandonando a casa onde antes estavam. Tudo, no entanto, no filme de Walter Salles, é retratado de forma absolutamente desapaixonada e não vemos drama ou verdadeiro conflito. O sofrimento familiar parece ter sido sublimado, mas o diretor não consegue transmitir, por incapacidade ou escolha, as tensões desse processo de sublimação. A vida prossegue como se o sumiço de Rubens fosse apenas um detalhe. A cena do sorriso chega a ser paradoxal, pois é difícil compreender Eunice insistir em sorrir sabendo que seu marido está morto. Ato de resistência ou negação da realidade? Mais uma vez, fica ambíguo. 

É inabalável a fé na legalidade,
seja a da ditadura...
O drama familiar se fecha na democracia, urdida pelos generais e sem punição aos fardados, quando somos apresentados a dois momentos. Um é quando Eunice recebe a certidão de óbito de Rubens Paiva em 1996 e o outro quando é citada na TV a comissão da verdade do governo Dilma. Eunice agora é uma militante pelos direitos indígenas, advogada, e busca fazer cumprir a Constituição de 1988. Diante do reconhecimento pelo estado e das revelações da comissão da verdade, o drama familiar é encerrado e a família é mostrada reunida com as novas gerações prontas para seguir em frente. A mensagem de Walter Salles e dos produtores globais é que foi feita justiça, Rubens foi reconhecido em sua inocência e a angústia da família enfim pode se encerrar porque a ausência não é mais ausência, mas presença na forma da memória cristalizada pela certidão de óbito e pela elucidação do crime pela comissão da verdade. 

Mais que isso, na Nova República vivemos no melhor dos mundos, em que a verdade do período de chumbo é restituída, bastando se lutar para cumprir a constituição, conforme se diz em uma cena. A mensagem exibida na tela, após o fim do filme, contudo, relativiza o clima otimista do final ao indicar que os militares foram denunciados, mas não condenados. Por que não encenar isso e apenas exibir enquanto mensagem? Talvez porque esse fato desminta a própria mensagem final, ao ressaltar as contradições profundas da redemocratização. 

Ao final, Walter Salles e a Globo entregam um filme despolitizado, um drama familiar comum em que a ditadura militar brasileira é apenas um eco distante. O peso político do desaparecimento de Rubens Paiva é diluído como se fosse um equívoco jurídico. A fé na institucionalidade é reforçada, seja em 1971, seja em 1996, seja em 2014, com uma confiança acrítica nas leis e na constituição, seja ela a imposta pelos generais-ditadores, seja ela a costurada com a burguesia reacionária. 

...seja a da Nova República.
Sem tirar, nem por, é a visão da ala liberal da burguesia brasileira sobre a ditadura e sobre o Brasil de hoje, pois condena na ditadura os abusos, sobretudo contra os inocentes, enquanto faz apologia do Estado Democrático de Direito, ignorando que aqui e agora também existem desaparecidos, torturados e mortos pelas forças policiais e militares. Sua produção e lançamento no contexto atual não é acaso e visa disseminar a mensagem que tudo estaria bem, bastando evitar o retorno dos abusos do passado. A fé judicial do filme casa bem com a fé judicial do pós 8 de janeiro em que Alexandre de Moraes e sua caneta redentora se tornaram pilares da salvação nacional contra o barbarismo bolsonarista. 

O filme tem tudo para sair premiado do Oscar de 2025 pois é exatamente o tipo de produção tão amada pela indústria cultural de Hollywood e pelo imperialismo estadunidense. Aliás, outro grande ausente nas duas horas do filme é justamente os EUA, aparecendo apenas sutilmente nos dólares contados por Eunice já em cena passada durante o período democrático. Em 1996 o Brasil avançava com as medidas neoliberais de FHC e o capital financeiro internacional ia sendo santificado por aqui. Cena aleatória ou mais uma mensagem?

Walter Salles e a Globo nos entregam um melodrama familiar revisionista que, embora tenha seus méritos técnicos, não esconde sua vocação liberal. A respeito do tenebroso período da ditadura militar sempre haverão outros filmes melhores. (por David Coelho)

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