terça-feira, 12 de março de 2024

ERAM ANARQUISTAS, GRAÇAS A DEUS. É A ELES QUE DEVEMOS A COLÔNIA CECÍLIA – 2

MEIO SÉCULO ANTES DO SAUDOSO RAUL SEIXAS NASCER, JÁ SE TENTARA CRIAR NO BRASIL UMA SOCIEDADE ALTERNATIVA 
O filme La Cecilia (d. Jean-Louis Comolli, 1975) resgata um episódio histórico pouco conhecido entre nós, embora aqui transcorrido: a implantação de uma colônia rural no Paraná, por parte de anarquistas italianos.

Foi a concretização de um sonho há muito acalentado por Giovanni Rossi, conforme ressaltou a historiadora Izabelle Felici

"A personagem do fundador da Cecília é indissociável da história da colônia. Toda a sua atividade política gira em torno de um projeto de vida comunitária. 

Desde a sua adesão à Internacional, em 1873, aos 18 anos de idade, Giovanni Rossi propôs um projeto de vida comunitária na Polinésia. 

Os numerosos artigos que ele apresentou na imprensa italiana, anarquista e socialista, os apelos que ele lançou às associações, federações, partidos, suscetíveis, a seus olhos, de ajudá-lo, tinham todos por objetivo expor seu projeto de comunidade ou, após 1890, apoiar a experiência em curso no Brasil. 

Com o mesmo objetivo de propaganda, Rossi funda, além disso, seu próprio jornal, Lo Sperimentale, em 1886. Ele desenvolve igualmente seu projeto de comunidade num romance utópico, Un Comune Socialista, no qual a personagem feminina tem por nome Cecília".

O experimento durou cerca de quatro anos, entre 1890 e 1893. Houve muito entusiasmo no início, mas depois foram aflorando os problemas que acabariam levando à extinção da colônia. Eis alguns:

— a contribuição desigual de citadinos e camponeses, pois a produtividade dos primeiros era inferior. Deveriam receber a mesma fração dos frutos do trabalho, conforme os ideais igualitários? Isto não significaria uma espécie de proletarização dos que produziam mais por estarem acostumados a lidar com a terra? De outra parte, se os lavradores fossem melhor aquinhoados do que os outros, não estaria sendo reproduzida a escala de valores da sociedade burguesa? Inexistia uma solução que contentasse a todos;

— a dificuldade de lidarem, no dia a dia, com o conceito do amor livre, uma novidade que incomodava principalmente as colonas de origem camponesa;

— 
a absoluta falta de seriedade do Estado brasileiro, que já era patético décadas antes de De Gaulle o haver constatado. O imperador Pedro II, atendendo a pedido do músico Carlos Gomes, doou as terras para a instalação da Cecília, mas, proclamada a República, o seu ato foi sumariamente revogado e os colonos tiveram de pagar pelas terras com parte de sua colheita e trabalhando sem remuneração em obras do governo;

— a hostilidade dos moradores da região (por sentirem-se prejudicados pela concorrência) e de uma vizinha comunidade polonesa, católica e conservadora;

— as fases de escassez e de fome, com a consequente ocorrência de doenças causadas pela desnutrição (problemas passageiros, que, contudo, reforçaram a tendência ao egoísmo por parte dos menos convictos dos ideais anarquistas, gerando desgastantes divisões); e

— a tentativa do governo de recrutar os colonos (italianos!!!) para combaterem a Revolução Federalista, o que, inclusive, contrariava seus ideais, pois simpatizavam com os revoltosos.

A Cecília chegou a ter 250 moradores e não deixaram de ocorrer defecções em massa, contrabalançadas pela chegada de novas levas de voluntários, atraídos pela divulgação nos círculos libertários europeus.

Alguns desistentes migraram para Curitiba, onde fundaram a Sociedade Giuseppe Garibaldi.
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POR QUE A HISTÓRIA DA COLÔNIA CECÍLIA
NÃO FOI CONTADA NUM FILME BRASILEIRO?

O filme francês conta esta rica história de forma dramatizada e com óbvia simpatia pela causa

O diretor Comolli (1941-2022), também crítico de cinema e de jazz, fez mais de 40 filmes entre 1968 e 2019, geralmente com posicionamento anarquista e/ou anti-stalinista. Foi editor-chefe do Cahiers do Cinema de 1966 a 1971, a fase mais politizada desta influente publicação.

Vale destacar que o elenco, cuja única cara familiar ao público brasileiro é a do ótimo Vittorio Mezzogiorno (No coração da montanhaO processo do desejoTrês irmãos), deu perfeita conta do recado.

Particularmente, eu preferiria uma abordagem menos convencional – como, p. ex., a que o cineasta suíço Alain Tanner deu aos ideais de 1968 no seu extraordinário Jonas, que terá 25 anos no ano 2000

Mas, sendo tão raras as produções que enfocam episódios históricos ligados às bandeiras da esquerda, temos mais é de incentivar filmes como este, recomendando a todos que o prestigiem, discutam e divulguem...

Chega a ser chocante que, em meio a tanta tralha produzida no Brasil, ninguém haja realizado um filme sobre a Colônia Cecília, nem sobre a importantíssima greve geral de 1917. 
   
Antes mesmo das trevas que desabaram sobre nós em 2019, já existiam assuntos malditos para nosso cinema, como os relativos a episódios libertários (não confundir com o uso fake que está sendo dado a esta palavra pelos liberticidas ultradireitistas), às lutas por justiça social e às possibilidades eróticas inaceitáveis para as pessoas reprimidas. 

E, claro, nada mudou significativamente com a volta do Lula ao poder, já que sua simpatia pela esquerda combativa sempre foi e é cada vez mais... nenhuma! O máximo que ele almeja é um capitalismo que assopre com mais força para mitigar nossa dor, depois de nos morder impiedosamente. (por Celso Lungaretti)
O projeto era ótimo; Rossi deveria tê-lo tentando noutro país.
Observações: esta duologia junta duas pautas que vieram por si sós ao meu encontro. Interessei-me pela greve geral de 1917 porque ela nasceu no cotonifício Crespi, em cujas dependências meu pai trabalhou 46 anos consecutivos (primeiro na tecelagem e depois, que ela faliu, em empresas menores que alugaram sua dependências). 

Nem na memória dele, que lá começou a trabalhar em 1930, nem na do bairro da Mooca a greve ainda era tema de conversas, o que me fez querer saber o porquê.

Já a Colônia Cecília  tinha, obviamente muitos pontos de contato com a comunidade alternativa da qual participei após sair das prisões militares, e que foi fundamental para eu superar os traumas da tortura e a amargura de constatar que nada mais restava a fazer para tentarmos impedir o prolongamento indefinido das trevas ditatoriais. 

Acreditando que venceria ou morreria, não estava preparado para aguentar a paz dos cemitérios naquela terra arrasada, ao lado de um povo acovardado. 

Mas, as poucos percebi que sobrara um desafio importante: seríamos capazes de viver realmente como irmãos solidários, a partir de laços ideológicos e não de sangue? Nossa sociedade alternativa em miniatura sobreviveria à do Raulzito

Tudo estava contra nós e a nossa comuna também durou pouco, mas houve momentos nos quais deu para perceber que, sim, em circunstâncias mais propícias teríamos conseguido. 

Viver em fraternidade é muito melhor do que ser movido pela ganância, competindo ferozmente com iguais por uma salvação cada vez mais duvidosa.  

Senti que o homem novo com que tanto sonhávamos em 1968 habitava em nosso interior. E é esta a nossa esperança de salvação nos tempos terríveis que estão à nossa espreita adiante, quando a debacle definitiva do capitalismo somar-se à devastação das alterações climáticas. (CL) 
Raulzito numa performance ousada de "Metamorfose ambulante"

5 comentários:

Neves disse...

No comício da Central do Brasil, Jango desceu do muro em favor dos mais pobres e libertou o fantasma golpista de 1964.
https://www.ihu.unisinos.br/637290-no-comicio-da-central-do-brasil-jango-desceu-do-muro-em-favor-dos-mais-pobres-e-libertou-o-fantasma-golpista-de-1964-entrevista-especial-com-juremir-machado-da-silva?utm_campaign=newsletter_ihu__12-03-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

O Golpe Civil-Militar. Compromisso de não apagar a História
https://www.ihu.unisinos.br/587954-o-golpe-civil-militar-compromisso-de-nao-apagar-a-historia?utm_campaign=newsletter_ihu__12-03-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

O Golpe civil-militar de 64. Impactos, (des)caminhos, processos
Mar 13, 2024 das 10h às 12h
https://www.youtube.com/watch?v=JR06SWigAuA

Neves disse...

O último ato do governo democrático antes do golpe de 1964
https://www.dw.com/pt-br/o-%C3%BAltimo-ato-do-governo-democr%C3%A1tico-antes-do-golpe-de-1964/a-68509987

60 anos do Golpe de 1964: “A possibilidade de rupturas institucionais ainda paira sobre nós”. Entrevista especial com Adriano de Freixo
https://www.ihu.unisinos.br/637364-60-anos-do-golpe-de-1964-a-possibilidade-de-rupturas-institucionais-ainda-paira-sobre-nos-entrevista-especial-com-adriano-de-freixo?utm_campaign=newsletter_ihu__13-03-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

Capitalismo e saúde mental
https://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/350cadernosihuideias.pdf?utm_campaign=newsletter_ihu__13-03-2024&utm_medium=email&utm_source=RD+Station

David Emanuel disse...

Neves, preciso dizer algumas coisas a respeito da entrevista que você enviou do tal Juremir Machado. De fato, achei uma análise muito superficial e equivocada. Primeiro que falar em "ricos" e "pobres" é de uma imprecisão completa e segundo que passa pano por completo ao Jango. João Goulart só fez o comício das reformas porque seu governo encontrava-se nas cordas, tendo seu apoio pela direita sido completamente minado pela evolução da luta de classes no Brasil daqueles anos. Ele, contudo, tinha trabalhado durante todo o seu governo para enfraquecer e desmobilizar as forças revolucionárias, de esquerda, começando pelo acordo com os golpistas de 1961 e o desbaratamento das forças militares que apoiaram a Cadeia da Legalidade do Brizola. Quando ele decide por encampar as reformas - em uma versão muito tímida delas - já não existiam forças populares adequadamente organizadas para sustentar o movimento, enquanto a reação tinha se fortalecido imensamente em três anos. Engolido pela situação revolucionária em curso, tentou uma saída que o regeneraria junto à esquerda, mas seria tímida o suficiente para que ele não fosse encampado como revolucionário. Sem base e sozinho, acabou tendo de partir ao exílio, o que não foi nenhum acerto e tão pouco um cálculo, mas apenas a única atitude desesperada de quem não tinha apoios e nem queria se engajar em uma luta com consequências revolucionárias. Jango era só o filhote tardio do varguismo pragmático, ao contrário de Brizola, que, esse sim, tinha pendor para levar a luta adiante.

Neves disse...

Agradeço Davi
Muitos da minha geração ainda nutrem nostálgica admiração pelo Jango. Me recordo de ter ouvido o discurso do dia 13 pelo rádio e me ficou uma impressão de anúncio de desastre.
...como consequencia...
de Laerte:
https://f.i.uol.com.br/fotografia/2024/03/14/171041161765f2cf61c877b_1710411617_16x9_xl.jpg

celsolungaretti disse...

Neves, o David já disse quase tudo sobre o Jango. Apenas acrescento que, ao militar na VPR, fiquei conhecendo bem a atuação dos cabos e sargentos do Exército e da Marinha que, confrontando seus oficiais, opunham-se à quebra da legalidade. O golpe só não ocorreu já em 1961 porque havia essa divisão e os oficiais não tinham certeza de que as tropas marchariam obedecendo ao comando deles.

O principal dissuasor, claro, foi o caso do III Exército, muito poderoso porque lhe cabia defender as fronteiras do Sul, as mais complicadas. Quando o comandante se posicionou ao lado do governador gaúcho Brizola, dispondo-se a enfrentar os outros Exércitos, os conspiradores desistiram de vez. O Exército brasileiro evitava enfrentar a si próprio nos campos de batalha, 1932 foi exceção. Mas em 1961 prevaleceu a regra: houve o recuo e a aceitação da posse do Jango, desde que num regime parlamentarista.

O pusilânime Goulart, que tanto devia às mobilizações em seu favor de cabos e sargentos, ao assumir o poder não moveu uma palha para evitar que os oficiais reaças passassem a esvaziar esses focos de resistência, transferindo os líderes para unidades distantes, ou seja, dispersando-os por todo o Brasil. Daí a resistência à quartelada de 1964 ter sido tão frouxa.

Outro erro crasso do Jango foi acreditar nas promessas do PCB, que alardeava ter o apoio de oficiais legalistas suficientes e prontos para abortar o golpe. Na hora da verdade, tal dispositivo evaporou. Só existia nos desvarios do Luiz Carlos Prestes.

Foram os remanescentes dos movimentos de cabos e sargentos que tentaram lançar a guerrilha em Caparaó. Mas, como o exilado Brizola não lhes mandou o apoio que prometera, embora tivesse até recebido grana dos cubanos para tanto, decepcionaram-se com ele também.

No primeiro semestre de 1968, um grupo deles, que sobrevivia precariamente na clandestinidade, não conseguindo mais sustentar-se financeiramente com empregos legais sob identidades falsas, resolveu assaltar um banco; depois outro; e no terceiro, temendo uma eventual prisão como ladrões comuns, decidiram deixar panfletos no local, assumindo-se como militantes de esquerda. Começava a nascer a VPR.

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