segunda-feira, 27 de março de 2023

NO ANIVERSÁRIO DO GOLPE MILITAR, UMA DÚVIDA ATROZ: O PESADELO DE UMA NOVA DITADURA FOI AFASTADO, MAS ATÉ QUANDO?


Eu tinha 13 anos no dia 1º de abril de 1964, verdadeira data da usurpação do poder por parte de conspiradores que a vinham tentando praticamente desde 1954.

Os pretextos que alegaram para derrubar o presidente legítimo João Goulart eram mentirosos, daí terem intitulado a quartelada de Revolução de 31 de março, embora nem fosse revolução, nem tivesse ocorrido na véspera do Dia da Mentira. Foi uma vã tentativa de evitarem a piada pronta. A utilização descarada de fake news por parte dos ultradireitistas vem de longe...

Puxando pela memória, só consigo me lembrar de que a TV vendia o golpe de estado em grande estilo, insuflando tamanha euforia patrioteira que os cordeirinhos faziam fila para atender ao apelo dê ouro para o bem do Brasil!.

Matronas iam orgulhosamente tirar suas alianças e oferecê-las aos salvadores da Pátria, torcendo para que as câmeras as estivessem focalizando naquele momento solene.

Desde muito cedo eu peguei bronca dessas situações em que a multidão se move segundo uma coreografia traçada por alguém acima dela, com cada pessoa tanto esforçando-se para representar tão bem seu papel... que acaba parecendo, isto sim, artificial e canhestra.

Dê ouro para a compra de instrumentos de tortura?!

De paradas de 7 de setembro a procissões, eu não suportava a falsa uniformidade. Gostava de ver cada indivíduo sendo ele próprio, igual a todos e diferente de todos ao mesmo tempo.

E, na preparação do clima para a sedição, houvera a Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade. Aquelas senhoras embonecadas e aqueles senhores engravatados me pareceram sumamente ridículos.

Aqui cabe uma explicação: duas fortes influências me indispunham contra o patético desfile daquela classe média abasta(rda)da, que detestava tanto o comunismo quanto o samba, talvez porque fosse ruim da cabeça e doente do pé.

Minha família era kardecista e, quando eu tinha oito, nove anos, me levava num centro espírita cujo orador falava muito bem... e era extremadamente anticatólico.

A cada semana recriminava a riqueza e a falta de caridade da Igreja, contrastando-a com a miséria do seu rebanho. Cansava de repetir que Cristo expulsara os vendilhões do tempo, mas estes estavam todos encastelados no Vaticano.

Vai daí que, cabeça feita por esse devoto tardio do cristianismo das catacumbas, eu jamais poderia aplaudir um movimento de católicos opulentos.

E devorara a obra infantil de Monteiro Lobato inteira. Com ele aprendera a prezar a simplicidade, desprezando a ostentação e o luxo; a respeitar os sábios e artistas, de preferência aos ganhadores de dinheiro.

Mas, afora essa rejeição, digamos,  estética, eu não tinha opinião sobre a tal da  Redentora.

Escutava meu avô dizendo que, se viesse o comunismo, ele teria de dividir sua casa com uma família de baianos (o termo pejorativo com que os paulistas botavam num mesmo saco a maioria dos excluídos da época, predominantemente nordestinos).

Registrava a informação, que me parecia um tanto fantasiosa, mas não tinha certeza de que Vovô estivesse errado.

O certo é que os grandes acontecimentos nacionais me interessavam muito pouco, pois pertenciam à realidade ainda distante do mundo adulto.

Na canção em que Caetano descreveu sua partida de Santo Amaro da Purificação para tentar a sorte na cidade grande, ele disse que "no dia que eu vim-me embora/ não teve nada de mais", afora um detalhe prosaico: "sentia apenas que a mala/ de couro que eu carregava/ embora estando forrada/ fedia, cheirava mal".

Da mesma forma, o dia que mudou todo meu futuro – seja o 31 de março do calendário dos tiranos, seja o 1º de abril em que a mentira tomou conta da Nação – não teve nada de mais.

Gostaria de poder afirmar que, logo no primeiro momento, percebi a tragédia que se abatera sobre nós: estávamos começando a carregar uma fedorenta mala sem alça, da qual não nos livraríamos por 21 intermináveis anos.

Mas, seria abusar da licença poética e eu não minto, nem para tornar mais charmosas as minhas crônicas.

Os mentirosos eram os outros. Os fardados, as embonecadas e os engravatados.

NÃO HÁ NADA A SE CELEBRAR NESTE SÁBADO – Embora o golpe militar de 1964 e ditadura de 21 anos dele resultante tenham sido páginas vergonhosas da História brasileira, os saudosos (muito deles beneficiários) do arbítrio têm comemorado ano após ano o aniversário da tomada do poder.  E pretendem fazê-lo mais uma vez no Clube Militar do Rio de Janeiro. 

Quanto aos companheiros de esquerda, devem mesmo honrar o sacrifício dos resistentes que entregaram a vida ou sofreram torturas e perseguições terríveis na tentativa de abreviar a temporada de imposição da desumanidade e da força sobre a compaixão e a razão.

Mas, afora o merecido tributo a nossos heróis e mártires dos anos de chumbo, não vejo sentido em exaltarmos o fim da ditadura da forma como aconteceu (não escorraçada pelo povo como deveria ter sido, mas porque os déspotas, tendo fracassado na gestão da economia brasileira, não sabiam mais o que fazer com seu poder espúrio e optaram por devolver o abacaxi aos civis). 

Afora que a redemocratização daqui foi das mais tíbias possíveis e os torturadores e seus mandantes jamais pagaram na prisão pelas atrocidades cometidas, ao contrário do que ocorreu, p. ex., na Argentina e no Chile.  Tão relapsos fomos em apurar e punir os crimes da ditadura de 1964/1985 que acabamos de sofrer nova tentativa de putsch em janeiro último. Maus precedentes sempre geram consequências nefandas. 

E o pior é que novamente a pátria desalmada parece disposta a passar pano para o principal culpado, um preside(me)nte que, ademais, foi responsável pelo assassinato de centenas de milhares de brasileiros com sua sabotagem ao combate científico da pandemia de covid. A mera inelegibilidade, no caso dele, será um acinte e uma aberração jurídica. 

Convictos de que os ovos da serpente estavam longe de ter sido todos esmagados na última redemocratização, eu e os companheiros do blog Náufrago da Utopia fomos dos primeiros a alertar em 2018 que uma volta do fascismo era uma ameaça bem concreta. 

E, em seguida, atravessamos os quatro anos no deserto denunciando dia após dia a monstruosidade insana de Jair Bolsonaro e do bando de celerados com ele acumpliciados. 

Mais não fizemos porque não encontramos com quem fazê-lo, pois dispostos sempre estivemos. 

De minha parte, mesmo septuagenário, não faltei às manifestações de rua contra o genocida fujão nem descartei a possibilidade de um maior engajamento pessoal nas iniciativas visando ao seu afastamento imediato da presidência da República.  

Se dependesse de mim, ele nunca teria completado o mandato após haver cometido uma imensidão de gravíssimos crimes de responsabilidade. 

E será muito gratificante para mim a retomada das palestras sobre episódios históricos dos quais participei ou que presenciei, pois levo muito a sério a missão de transmitir às novas gerações o conhecimento acumulado em mais de meio século travando o bom combate, sempre empenhado em manter viva a memória dos companheiros que resistiram à ditadura militar.

Será a partir das 13h30 do próximo sábado (01/04) no Centro de Cultura Social Vira-Lata Caramelo (rua Sumaré, 732, no bairro de Utinga, em Santo André), ponto de encontro de luta e de fortalecimento dos movimentos sociais na região do ABC Paulista, mediante a concretização de atividades educativas, culturais e políticas, em dialogo com a comunidade local, valorizando princípios libertários de atuação popular. 

É composto pela Brigada Lucas Eduardo MartinsRede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio e Quilombo Invisível, em conjunto com outras organizações autônomas. 

Por último: nem em 1985 nem agora alcançamos nosso objetivo maior, o de garantir para o povo brasileiro justiça social e liberdade plena. 
A luta continua.  (por Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ex-preso político)

3 comentários:

Anônimo disse...

https://www.ihu.unisinos.br/627336-fome-no-brasil-nao-e-conjuntural-pontual-transitoria-ou-atipica-e-estrutural-entrevista-especial-com-jose-raimundo-sousa-ribeiro-junior

https://www.nytimes.com/es/2023/03/27/espanol/mineria-ilegal-brasil-yanomami.html

Henrique Nascimento disse...

Ei Celso, finalmente tive a oportunidade de conhecer há pouco mais de 1 mês o local onde Lamarca e Zequinha foram assassinados no povoado de Pintada. No local há uma linda estátua de Zequinha carregando um Lamarca debilitado depois de dias fugindo da repressão policial. Uma grande cruz representa o local exato onde Lamarca e Zequinha estavam sentados quando foram descobertos e executados. Ainda hoje é um local longínquo, imagina em 1971.

celsolungaretti disse...

Henrique,

o Lamarca era bem diferente de dirigentes de organizações de esquerda que optaram por sobreviver ao fracasso na luta armada. Nem citarei nomes, não merecem ser lembrados.

Já o Lamarca sempre fez questão de correr os mesmos riscos de seus comandados e resistiu às pressões de muitos companheiros que queriam vê-lo salvando a pele quando ficou evidente que a revolução não triunfaria.

Como um almirante, sabia que o navio estava afundando e preferiu manter-se no seu posto. "Vencer ou morrer", no caso dele, não era um mero slogan.

Infelizmente, o seu corpo não estava à altura do esforço que impôs a si mesmo. Sucumbiu fisicamente. Foi pena, merecia ter morrido em combate e não covardemente executado.

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