Foto do professor Ladislau Dowbor. Do guerrilheiro Jamil não havia imagens na busca virtual, exceto... |
Em meados de 1969, a VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) se fundiu ao Colina (Comando de Libertação Nacional), dando origem à VAR-P (Vanguarda Armada Revolucionária Palmares).
No Comando Nacional então criado, eram quatro os integrantes envolvidos com a montagem da coluna móvel estratégica, o objetivo fundamental da organização.
Dois outros (o Max/Carlos Franklin da Paixão Araújo) e o Bento/Antônio Roberto Espinosa faziam a ponte entre o trabalho principal e os comandos estaduais, dos quais o principal era o de São Paulo.
Várias divergências surgiram entre esses comandantes nacionais e nós outros, os três membros do Comando paulista (o quarto, Elias/João Domingues da Silva, acabara de ser assassinado pela Oban, que o torturou antes de restabelecido de um ferimento a bala, causando-lhe hemorragia).
Foi quando nos pareceu que o Bento e o Max estariam, na contramão das nossas definições estratégicas, favorecendo o inchaço da VAR-P nas cidades, em detrimento do crescimento no campo, cujo trabalho não deslanchava.
Enquanto o Moraes/Samuel Iavelberg evitava ir tão longe, o Moisés/José Raimundo da Costa e eu (Douglas) interpretamos o que estava ocorrendo como uma nova investida da tendência que acreditava ser fundamental uma ligação orgânica com os movimentos de massas e fora derrotada na luta interna da VPR do final de 1968.
...as dele com os demais companheiros libertados quando do sequestro do embaixador alemão. |
Foi quando li um documento de circulação interna intitulado Teses do Jamil, que percebi imediatamente tratar-se do embasamento teórico ideal para nossa propsta de recriação da VPR. Ele simplesmente cortava o nó górdio da discussão sobre se a revolução brasileira deveria ter uma etapa nacional-democrática (no sentido de erradicar os traços coloniais e as reminiscências feudais ainda existentes) ou seria, de imediato, socialista.
Não era uma questão meramente retórica, pois, no primeiro caso, deveríamos aliar-nos à burguesia nacional e ao campesinato; no segundo, o sujeito revolucionário seria o proletariado do campo e das cidades.
O Jamil contrapôs que, como a revolução inexoravelmente seria socialista, isso pouco nos deveria importar. Caberia a nós iniciá-la e, no próprio processo, as forças de esquerda de nós discordantes acabariam incorporando-se à luta como consequência da dinâmica dos acontecimentos.
Parece simples, mas foi uma espécie de ovo de Colombo que o Jamil colocou em pé, baseado em seu conhecimento de proposições teóricas da esquerda européia, pois passara alguns anos estudando na Suíça (é francês de nascimento, embora criado no Brasi), antes de voltar para cá e ingressar na luta armada. Em especial, influenciara-o o livro do Andre Gunder Frank então muito influente, O desenvolvimento do subdesenvolvimento.
Como eu vinha do movimento estudantil, soube aquilatar a importância das Teses do Jamil, que estavam passando despercebidas na organização. Lancei imediatamente um artigo de circulação interna apoiando-as entusiasticamente (*). E elas acabaram sendo mesmo a proposta teórica da VPR quando esta voltou a ter identidade própria a partir do racha dos 7 no congresso da VAR-P de outubro de 1969.
Jamil, que passou a ser comandante nacional, foi arrastado nas quedas em cascata da VPR em abril de 1970 e, dois meses depois, incluído na lista dos 40 presos políticos cuja libertação foi exigida em troca do embaixador alemão von Holleben (leia mais sobre o Jamil e tal período da trajetória da VPR aqui).
Desde então o guerrilheiro Jamil desapareceu de cena, enquanto seu alter ego, o economista Ladislau Dowbor, lecionava na Universidade de Coimbra, assessorando depois, como consultor, os governos da Guiné Bissau, Nicaragua, Costa Rica, África do Sul e Equador.
Regressou ao Brasil com a anistia de 1979, foi secretário de Negócios Extraordinários na gestão da prefeita Luíza Erundina em São Paulo, professor de pós-graduação na PUC e consultar de diversas agências da ONU.
Graças a um comentarista cá do blog, fiquei sabendo que Jamil/Ladislau Dowbor lançou novo livro neste ano, Resgatar a função social da economia – uma questão de dignidade humana (Editora Elefante, 178 pag.); o download gratuito pode ser feito clicando aqui.
"A atividade industrial permanece, sem dúvida, como permaneceu a atividade agrícola diante da Revolução Industrial; mas o eixo de dominação e controle já não está nas mãos dos capitães da indústria, e sim nas de gigantes financeiros como BlackRock, de plataformas de comunicação como Alphabet (Google), de ferramentas de manipulação como Meta (Facebook), de intermediários comerciais como Amazon.O mecanismo de apropriação do excedente social mudou, e com isso mudou a própria natureza do sistema. Estamos no meio de uma transformação profunda da sociedade, nas suas dimensões econômica, social, política e cultural, gerando o que tem sido chamado de crise civilizatória. Transitamos para outro modo de produção, e o presente estudo sistematiza os novos mecanismos presentes nesse cenário. Na última parte, propomos caminhos".
Voltarei a escrever sobre ele assim que o tiver lido. Mas, antecipo que consegue mesmo atualizar a visão que temos da dominação capitalista, sem, contudo, oferecer resposta à grande dúvida destes tempos: o que fazer?. Ou seja, como organizarmos nossas fileiras para uma luta realmente efetiva contra o capitalismo atual.
A impressão que dá, e que tenho sustentado nas últimas décadas, é a seguinte: a manipulação das consciências a partir dos mimos do consumismo e da lavagem cerebral efetuada pelos meios de comunicação de massa atingiu tal perfeição que as chances de ruptura se limitam, por enquanto, aos imprevisíveis protestos que têm eclodido quando a exploração se torna extremada e afrontosa demais, como sucedeu em 2013 no Brasil e pipocou ao longo de 2019 em vários países.
Elisa Quadros, musa dos protestos de 2013 no RJ |
Se nossa única esperança for mesmo o espontaneísmo, só nos restará tentar capacitar uma vanguarda para aproveitar melhor as chances que surgem, não as deixando entregues às lideranças de ocasião, como a pobre Sininho (despreparada ou não, a omissão da esquerda face à desmedida perseguição judicial que ela sofreu foi vergonhosa!!!).
O desafio é tentarmos ir além disto, de nada adiantando ficarmos patinando sem sair do lugar com o obreirismo e/ou a ilusão, já detonada faz mais de um século pela Rosa Luxemburgo, de que o reformismo possa um dia vir a humanizar e exploração do homem pelo homem... (por Celso Lungaretti)
* Longe de mim a pretensão de que seria o único na organização capaz de decifrar o artigo do Jamil.
Mas, os que o compreenderam devem ter sido exatamente os que dele discordavam: embora derrotados na luta interna, havia muitos companheiros que continuavam acreditando que, sem termos contato mais direto e frequente com as massas, nos tornaríamos militaristas insensíveis e sanguinários...
O Jamil ia na direção contrária, propondo que cumpríssemos as tarefas arnadas da revolução por sermos a organização mais apta para tanto, e deixássemos a conscientização do povo (e os enormes riscos de segurança nela envolvidos) por conta de outras forças da esquerda.
3 comentários:
https://www.ihu.unisinos.br/622049-a-presenca-do-odio-e-constitutiva-do-neoliberalismo-entrevista-com-jorge-aleman
https://www.ihu.unisinos.br/622060-filme-detalha-como-politicas-de-bolsonaro-estimulam-garimpo-na-terra-yanomami
Celso
Procurei as 'Teses do Jamil' e encontrei estes trabalhos acadêmicos
Se você tem as 'Teses do Jamil', publicaria?
1-SILVA, C. L. S. A revolução da VPR, a Vanguarda Popular Revolucionária.
Uberlândia: Navegando Publicações, 2021 350pgs
https://www.editoranavegando.com/_files/ugd/35e7c6_ea7b3cdbb71f499586552e021029571e.pdf
2-As Teses de “Jamil” e a luta armada dos anos 1960-70
no Brasil Fábio André G. das Chagas 11 pgs
https://seer.furg.br/rbhcs/article/view/10366/6713
3-Chagas, Fábio André Gonçalves das Chagas
A Vanguarda Popular Revolucionária: dilemas e
perspectivas da luta armada no Brasil (1968-1971)/118pgs
https://osirredentosblog.files.wordpress.com/2015/12/a-vanguarda-popular-revolucionc3a1ria.pdf
Eram tempos duros, companheira. Documentos desse tipo nós guardávamos pelo tempo estritamente necessário e os destruíamos.
Ou então dávamos um fim neles quando tínhamos de abandonar um aparelho ou uma morada às pressas. Jamais os levávamos conosco quando presentíamos perigo.
Nunca encontrei de novo as teses originais. Mas, como uma pesquisadora garimpou em arquivos dos órgãos de segurança uma trilogia de artigos que escrevi no comecinho de 1970 (sem real importância para ninguém afora eu, por ter sido a primeira de centenas de séries de artigos que escrevi desde então), quem sabe se as polêmicas teses do Jamil também não voltam à tona?
Se topar com elas, por favor, me avise. Um abração!
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