segunda-feira, 6 de junho de 2022

O INTERMINÁVEL MARTÍRIO DO COMPANHEIRO 'BACURI' VOLTA À BAILA – 2

celso lungaretti
ATÉ HOJE NÃO ME PASSA PELA GARGANTA QUE A VÍTIMA DE TÃO TERRÍVEIS SUPLÍCIOS TENHA
SIDO AQUELE GORDINHO BOA GENTE
É
 como  Basílio  que eu me lembro de Eduardo Collen Leite, cuja covarde execução, depois do verdadeiro calvário ao qual as bestas-feras da repressão ditatorial o submeteram durante mais de 15 semanas, se deu no dia 8 de dezembro de 1970. Ele morreu aos 25 anos de idade.

Bacuri  era um codinome já descartado, que ele usara antes de abril/1969, quando o conheci no Congresso de Mongaguá da VPR.

Deve tê-lo mudado porque era revelador em demasia, mais próximo de um apelido: um tanto gordo, ele lembrava mesmo um porquinho. E, claro, assim o nome de guerra descumpria a finalidade de dificultar a identificação do companheiro que o utilizava.

Eu era um secundarista de 18 anos, um tanto deslumbrado por ter sido repentinamente admitido no círculo dos revolucionários mais procurados do Brasil. Queria entrosar-me o quanto antes com os novos companheiros. 

E, sem me dar conta, já era com olhar de jornalista que eu observava a tudo e a todos, fazendo  minhas avaliações, tentando entender como haviam sido forjados combatentes daquela têmpera. Sentia-me, como no bordão do Repórter Esso, uma testemunha ocular da História...

Basílio não parecia o combatente  da pesada  que depois fiquei sabendo ser. Nem de longe. Fiquei surpreso quando o  Moisés  (José Raimundo da Costa) me contou algo de sua história.

Estava com o cabelo curto e um farto bigode, que o deixava com um jeitão de português, além de envelhecê-lo um pouco. Nunca adivinharia que ele, àquela altura, tinha tão somente 23 anos.

Era simples, afável, simpático. Quando se alterava, gaguejava um pouco. Foi o que aconteceu ao comunicar que deixaria a Organização.

Minhas recordações, mais de meio século depois, são nebulosas. Lembro-me de que ficou muito emocionado, talvez tenha até chorado.

Desentendera-se com outros companheiros a respeito do encaminhamento dado a operação(ões) armada(s); devido às regras de segurança, fiquei sabendo disso muito superficialmente, então não pude (nem posso agora) estabelecer quem tinha razão.

Montou então uma pequena organização, a Rede Democrática, que se manteve bem próxima da VPR, sendo nossa parceira em várias ações.

Quando o Moisés e eu vimo-nos ameaçados de expulsão da VAR-Palmares, no curso da luta interna que desembocaria na recriação da VPR, ele consultou o Basílio a respeito do nosso ingresso na Rede, recebendo sinal verde.

Bem ao seu estilo – conservava sempre uma carta escondida na manga –, o Moisés só me falou dessa sondagem quando o racha estava consumado e nós, os precursores, reabilitados.
Uma ótima biografia

É minha última reminiscência envolvendo o Basílio, até ficar sabendo de sua prisão e martírio – um dos episódios mais chocantes dos anos de chumbo. "Nenhum tormento conseguiu arrancar qualquer informação do Bacuri", afirmou Jacob Gorander.

Até hoje não me passa pela garganta que a vítima de tão terríveis e prolongados suplícios tenha sido aquele gordinho boa gente que batia bola comigo na praia de Mongaguá, durante os intervalos do congresso da VPR. As duas imagens não casam.

O destino foi cruel demais com ele.

Obs. – ainda sobre o Bacuri, leia aqui (clique p/ abrir) a descrição do seu martírio no relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

2 comentários:

Henrique Nascimento disse...

Coincidentemente, este último final de semana estava lendo um texto sobre Víctor Jara e escutando músicas desse compositor que foi também brutalmente assassinado pela ditadura chilena.

celsolungaretti disse...

O que essas duas execuções têm em comum é a característica de vingança.

O Victor Jara era um Vandré chileno, lutava apenas com seu talento musical. Era tocante a sinceridade que suas interpretações transmitiam, parecia que, do fundo da alma, ele acreditava no que estava cantando.

O Eduardo Leite foi, como o Devanir de Carvalho, retaliado por enfrentar o inimigo de igual para igual. Tentei passar isto no meu texto. A bronca dos milicos era por ele reagir à violência com idêntica violência.

Em suma, foram dois assassinatos covardes de quem desafiava corajosamente a repressão, embora de maneiras diferentes. Não suportaram a própria pequenez diante desses dois desafios altaneiros e se vingaram bestialmente, como guerreiros indignos que eram.

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