Algum tempo depois foi preso, exibido como troféu pela ditadura... e logo transferido para uma delegacia de bairro, na qual, segundo o jornalista/historiador Elio Gaspari, "Anselmo fazia serviços de telefonista, escrivão e assistente do único detetive do lugar". A situação carcerária do ex-marujo, continua Gaspari, não cessou de melhorar:
"Com as regalias ampliadas, era-lhe permitido ir à cidade. Numa ocasião surpreendeu o ministro-conselheiro da embaixada do Chile, visitando-o no escritório e pedindo-lhe asilo. Quando o diplomata lhe perguntou o que fazia em liberdade, respondeu que tinha licença dos carcereiros. O chileno, estupefato, recusou-lhe o pedido".Finalmente, sem nenhuma dificuldade, Anselmo deixou a cadeia em abril de 1966. Nada houve que caracterizasse uma fuga: apenas constataram que o hóspede saíra e não voltara.
"O compreensível ódio da oficialidade desacatada pelos marinheiros, logo na mais classista das forças militares, transmudou-se em represália feroz quando o golpe possibilitou a prisão da marujada rebelde. Masmorras e prisão nas piores condições em navios foram o destino comum dos apanhados.
Não, porém, para o maior incitador da rebelião e das ameaças à oficialidade: Anselmo foi posto em um pequeno e pacato distrito policial na orla da floresta do Alto da Tijuca, sem vigilância especial, e disponível para seus visitantes.
Em poucos dias, não precisou de mais do que sair pela porta para a liberdade. Os visitantes perderam a sua nos dias seguintes".
Soledad e as outras 5 vítimas do Massacre da Granja São Bento, articulado pelo Anselmo. |
Eis como Élio Gaspari relatou, em A Ditadura Escancarada, a mais lembrada de suas missões, até porque não hesitou em sacrificar a militante paraguaia com quem vivia e estava grávida dele, Soledad Viedma Barrett:
"A última operação de Anselmo, na primeira semana de janeiro de 1973, (...) resultou numa das maiores e mais cruéis chacinas da ditadura. Um combinado de oficiais do GTE e do DOPS paulista matou, no Recife, seis quadros da VPR. Capturados em pelo menos quatro lugares diferentes, apareceram numa pobre chácara da periferia.
Lá, segundo a versão oficial, deu-se um tiroteio (...). Os mortos da VPR teriam disparado dezoito tiros, sem acertar um só. Receberam 26, catorze na cabeça. (...) A advogada Mércia de Albuquerque Ferreira viu os cadáveres no necrotério. Estavam brutalmente desfigurados".
Foi a segunda morte de Anselmo: a operacional. A partir daí, não conseguiria iludir mais ninguém na esquerda, então passou a ser um ocioso sustentado e protegido por delegados do Deops paulista, às vezes conseguindo um dinheirinho extra com entrevistas e livros que profissionais escreviam sobre ele ou no lugar dele.
Ainda o requisitaram para uma tentativa de desqualificação da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça: ele pediu anistia e, caso esta lhe fosse negada, a rede de extrema-direita poderia fazer muito alarido alegando parcialidade do colegiado.
A comissão percebeu a armadilha; por seus critérios, Anselmo teria mesmo direito a uma reparação se houvesse trocado de lado apenas ao ser preso pelo delegado Sergio Fleury em maio de 1971, conforme sustentara em suas entrevistas e livros.
No inferno de Dante, o círculo reservado para os traidores é o nono. |
A possibilidade de agraciar quem levara à morte os verdadeiros resistentes (embora nem de longe suas vítimas chegassem a "100, talvez 200", como ele trombeteava repulsivamente) era tão desagradável para a comissão que ela retardou a marcação do julgamento do caso do Anselmo até lhe chegarem às mãos evidências conclusivas no sentido de que ele já era agente duplo quando foi dado o golpe e, portanto, não fazia jus a um centavo sequer.
A verdade foi estabelecida a partir de documentação secreta do Serviço de Inteligência da Aeronáutica, de papéis recebidos do Arquivo Nacional e de um depoimento do ex-delegado Cecil Borer no sentido de que Anselmo era mesmo um infiltrado (ver aqui), comprovando de viva voz o que sempre se suspeitara: não passava de farsa a alegada fuga do marinheiro da delegacia carioca na qual estava detido em maio de 1966, pois ele havia sido simplesmente solto.
Esta foi a terceira morte do Cabo Anselmo: a dos últimos fiapos de credibilidade que porventura lhe restassem. Só ingênuos dali em diante acreditariam em suas fantasias hediondas e só ultradireitistas fanáticos comprariam sua pseudo-autobiografia de 2015, Minha verdade, que merecidamente encalhou por não passar de um amontoado de mentiras já desmascaradas.
Ao tomar conhecimento de sua quarta morte, a imagem que me veio à mente foi a transformação que ocorre com Dorian Gray após esfaquear o quadro, no romance famoso do Oscar Wilde. Será este o motivo de só terem anunciado o óbito depois do enterro, ou minha imaginação voou longe demais? (por Celso Lungaretti)
2 comentários:
Não acredito como um pústula desse não foi justiçado, mesmo após o término da luta armada. "Brasileiro é tão bonzinho", já dizia aquele célebre quadro do Viva o Gordo (Jô Soares). E frouxo pra caralho, com raríssimas e honrosas exceções.
O companheiro Ivan Seixas participou de um Linha Direta da TV Globo em que a atração era o cabo Anselmo. Na época escreveu sobre o esquema de segurança montado pelos delegados do Deops para protegê-lo. Era pesado.
Ele passava a vida escondido e, quando se sabia que iria comparecer em algum lugar, era desse jeito, muito bem guardado.
Um atentado contra ele só seria viável se houvesse alguma dica "de dentro". Ignoro se algum companheiro alguma vez obteve uma informação dessas.
E, mesmo assim, seria necessária uma equipe bem armada, integrada por gente experiente. Seria dificílimo reunir todas essas condições: a "informação de cocheira", a equipe e as armas.
Companheiros com indignação e coragem para fazer um atentado destes eu conheci muitos. Mas, sem termos as condições objetivas, as chances de êxito seriam irrisórias. Não valia a pena oferecermos mais troféus ainda para o inimigo exibir em suas vitrines.
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