O primeiro texto político mais ambicioso que escrevi na vida foi um esboço de programa da Frente Estudantil Secundarista para o congresso da União Paulista de Estudantes Secundaristas, no final de 1968. E derivei minha linha de argumentação, exatamente, do ensaio clássico de Rosa Luxemburgo, Reforma ou revolução?.
Ou seja, mal acabara de completar 18 anos e já me definia incisivamente pela superação do capitalismo, repudiando o reformismo (pois a lógica do capitalismo, já em fase decadente, não apontava para uma humanização do sistema de exploração do homem pelo homem, mas sim para uma escalada desembestada da desigualdade econômica, gerando desequilíbrios sociais cada vez mais devastadores).
Nunca mudei. E é este o meu grande motivo para combater o Lula, que jamais teve a revolução como objetivo.
Quando ele era dirigente sindical, seu grupo mantinha (inclusive na base da porrada) a esquerda combativa fora das assembleias no ABC paulista.
Almejava tão somente obter melhoras salariais e profissionais para os metalúrgicos, inclusive ajudando as montadoras a esvaziarem o congelamento de preços impostos pela área econômica da ditadura: Lula puxava greves, as montadoras concediam aumentos e depois usavam suas planilhas de custos para arrancarem do governo a permissão para majorarem o preço de seus veículos.
Quando a anistia de 1979 permitiu a volta dos asilados, Lula e seu grupo perceberam que Leonel Brizola, criando um partido político, acabaria dominando o sindicalismo também. E foi por isto que eles resolveram fundar um partido alternativo ao do Brizola, empreitada sutilmente favorecida pelo general Golbery do Couto e Silva, principal estrategista da ditadura militar.
Para ter representação nas principais cidades paulistas e no resto do país, o grupo do Lula precisou negociar com a esquerda, pois só ela poderia viabilizar nacionalmente o PT. Tal acordo foi fechado com forças de esquerda que não tinham aderido à luta armada, com algumas remanescentes do combate nas trevas e com a esquerda católica que adotava a linha da Teologia da Libertação.
Do programa de fundação do PT consta seu compromisso com a superação do capitalismo no Brasil e no mundo ("O PT buscará conquistar a liberdade para que o povo possa construir uma sociedade igualitária, onde não haja explorados nem exploradores. O PT manifesta sua solidariedade à luta de todas as massas oprimidas do mundo"). Isto logo virou letra morta.
Ao longo da década de 1980 os lulistas promoveram o expurgo de várias tendências de esquerda existentes no seio do PT, inclusive escancarando as portas do partido para o ingresso indiscriminado de meros carreiristas (gente interessada apenas em subir na vida dentro da sociedade de classes), pois estes eram seus aliados naturais na luta interna contra os militantes ideológicos.
Então, meu problema com o Lula jamais foi pessoal, mas sim político: ele sempre fez tudo que pôde para domesticar o PT, tornando-o um partido estrategicamente voltado para a tomada do governo pela via eleitoral, no sentido de obter algumas migalhas a mais para os explorados, fidelizá-los e eternizar-se no Executivo, sempre satelizado pelo verdadeiro poder dominante (o econômico) e nunca contribuindo para a transformação em profundidade que a sociedade brasileira requer desesperadamente.
E o pior é que, após ter-se omitido repulsivamente quando governadores reacionários sufocavam a ferro e fogo as manifestações de protesto de junho de 2013 (quase um levante social!), o PT foi guinando cada vez mais à direita, sendo hoje, tão somente, uma força auxiliar da burguesia.
Após contribuir, com seus erros crassos e práticas incompatíveis com a moral revolucionária, para a devolução do poder à direita em 2016, o PT foi, a partir de 2019, fundamental para esvaziar as manifestações #ForaBolsonaro, tendo o Lula se ausentado de cada uma delas, enquanto as desestimulava em suas falas, deixando secundaristas e torcidas organizadas de futebol irem enfrentar os bolsonaristas em seu lugar. Foi uma das posturas mais covardes e vergonhosas da esquerda brasileira em todos os tempos.
E, por esvaziarem a luta pelo impeachment do Bolsonaro com idêntica obstinação àquela mostrada pelo Bozo na sabotagem à vacina, o PT e Lula devem ser considerados coadjuvantes de extermínio: ajudaram o governo genocida a durar o suficiente para, com seu negacionismo demente, causar a morte de algumas centenas de milhares de brasileiros a mais, além dos que a covid teria matado de qualquer jeito.
E só simplórios não percebem que, no momento, o alvo principal da máquina de desqualificação petista é a chamada 3ª via e Sergio Moro. Lula mal consegue dissimular que almeja ter o desmoralizado genocida como seu principal adversário em outubro, daí não querer vê-lo afastado da presidência antes disso, faça quantas loucuras fizer e desgrace quantos brasileiros desgraçar.
Ele chegou ao cúmulo de, no final de janeiro, praticamente ecoar as falácias negacionistas, ao afirmar que as pessoas têm o direito de não aceitarem vacinas, desde que não saiam às ruas! Algo assim só deixaria de representar perigo para a coletividade no caso de ermitãos que vivessem isolados, cada um sua própria cabana...
Portanto, continuarei opondo-me ao político profissional Lula enquanto houver uma chance de sacudir a esquerda brasileira de sua letargia, despertando-a para a realidade de que a diferença entre o Bolsonaro e Lula é apenas a diferença entre o estupro a seco do capitalismo selvagem e o estupro com lubrificante do capitalismo do século 21 (que substitui o chicote pelas miragens consumistas).
Enquanto permitirmos que uma e outra face da moeda capitalista alternem-se na dominação e exploração dos brasileiros, nosso povo continuará sendo joguete dos poderosos e não sujeito da própria História.
E foi exatamente para libertá-lo de seus grilhões que fiz a opção revolucionária na virada de 1967 para 1968 e permaneço fiel a ela até hoje, deixando de lado quaisquer considerações de ordem pessoal e priorizando sempre os ideais que nortearam toda a minha vida adulta.
Presto estes esclarecimentos porque é comum minimizarem minhas justificadas críticas políticas ao reformismo do PT, atribuindo-as a um ódio cego que jamais tive ao Lula.
Na verdade, sempre considerei-o o homem errado no lugar errado, pois os cérebros do partido em gestação, mesmo sabendo que ele não tinha consciência ideológica de esquerda, optaram por utilizá-lo como chamariz de votos e cartão de visitas da nova agremiação, acreditando que poderiam tutelá-lo indefinidamente. Durante a crise do mensalão, contudo, muitos desses personagens caíram em desgraça, permitindo que Lula finalmente passasse a conduzir o partido como lhe desse na telha.
O resultado foi a descaracterização acelerada do PT, até se tornar o que hoje é: apenas outro partido da ordem, incapaz de formular qualquer política alternativa aos ditames da dominação burguesa.
De nada valerá havermos suportado tamanha barbárie sob Bolsonaro, se em seguida tivermos de aguentar Lula novamente repetindo a cada instante, com incompreensível orgulho (!!!), que nunca os banqueiros lucraram tanto quanto na época em que ele era presidente...
A esquerda hoje não representa uma alternativa de poder no Brasil, mas apenas uma variante menos agressiva do vírus da dominação burguesa. E, com isto, deixou até mesmo de ter uma razão para existir.
Precisamos virar esse jogo, no qual o papel reservado para nós é o de eternos perdedores! (por Celso Lungaretti, jornalista, escritor e ex-preso político)
7 comentários:
Quando li seu comentário/resposta ao cara que falou que você odeia o Lula pensei: Celso vai publicar.
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Aposto que escreveu de um fólego só.
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Minhas homenagens.
Estás me conhecendo bem, companheiro. Gosto da contundência que alguns textos adquirem quando os escrevo com alguma emoção. E isso não acontece sempre, faz tempo demais que eu escrevo praticamente todo dia. Mas, algumas coisas ainda mexem comigo.
Então, essa resposta a comentário de leitor foi exatamente isto. Percebi que tinha ficado contundente e resolvi aproveitá-la num contexto mais amplo.
Vale dizer que aí, como artigo, já não é mais a resposta àquele leitor e sim, também, a várias outras situações. As alterações que eu fiz foram exatamente para adaptá-lo de forma a abranger mais casos. O comentário serviu como inspiração, ponto de partida.
Bom fds!
Como se costuma dizer por aí : Falou e disse, Celso!
Marcelo Roque
Um forte abraço, velho amigo!
Pois é!!!! O Lula é um um caudilho envernizado
Mas vamos combinar!! Ambiente que se viveu ajudou a se criar o PT: muitas confluências...Hoje pagamos pela falta de estratégias de um Plano de Industrialização...
Excelente artigo! Muito esclarecedor e verdadeiro! Quem dera todos lessem e iluminassem suas ideias antes das eleições.
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