Nasceu em meados de novembro de 1919 e, como naquele tempo os cartórios tinham de fiar-se no que relatava o declarante, a data ficou sendo a da proclamação da República..
Os antigos achavam isso bonito, embora ainda não fosse um feriado. Nem ele nem nenhum dos parentes, inclusive a minha avó, sabia o dia certo.
Morreu em 2003, após quatro derrames que o deixaram sem vontade nenhuma de prolongar uma existência agônica.
Já escrevi sobre ele (vide aqui), mas faço questão de lembrar a injustiça que sofreu em seus direitos trabalhistas e um episódio no qual ousou desacatar um torturador da ditadura.
Começou a trabalhar (irregularmente) aos 11 anos de idade no Cotonifício Rodolfo Crespi, um marco da industrialização de São Paulo. Quando este pediu concordata em 1963 e em seguida encerrou atividades, tinha uma dinheirama a receber de aposentadoria.
A grana era descontada do salário mês a mês e tinha como depositária infiel a própria empresa, que raras vezes honrava integralmente seu débito: ou dava um chapéu nos trabalhadores ou lhes pagava quantia bem inferior.
Foi o que aconteceu ao meu pai. Resistiu enquanto pôde a aceitar o acordo podre, mas, a partir do golpe de 1964, quando o patronato passou a ter a faca e o queijo na mão, insistir seria quixotesco.
Acabou recebendo mais do que a maioria dos seus colegas, mas nem metade daquilo a que fazia jus. Serviu ao menos para (juntando com poupança e empréstimos levantados) finalmente sairmos do aluguel.
Sendo eu filho único, ele tudo fez para me dissuadir de trilhar o caminho dos revolucionários. Mas, nunca se queixou de semana sim, semana não, já cinquentão, entrar na via Dutra de madrugada com seu fusquinha, visitar-me pela manhã na PE da Vila Militar (só quando estava perto de ser libertado me transferiram para um quartel menos sinistro, o da Cavalaria) e pegar a estrada de volta logo em seguida, sem faltar uma vez sequer.
Dava para perceber que, no fundo, no fundo, me respeitava. Tanto que gostava muito de contar à parentela que, quando uma equipe da Operação Bandeirantes foi revistar nossa casa em plena madrugada, não achando nada de aproveitável, o comandante da operação disse à saída: "Tente convencê-lo a entregar-se, nós só queremos o bem dele".
Homem pacífico, que nunca superou totalmente o trauma de haver ficado órfão aos 11 anos de idade (meu avô paterno foi assassinado com um tiro nas costas por haver demitido um funcionário desordeiro da fábrica que gerenciava), ele daquela vez não se conteve: "E foi pelo bem do meu filho que vocês vieram nos tirar da cama trazendo toda essa artilharia?".
Quase o levaram preso. (CL)
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