Delfim Netto, num momento, era o grande timoneiro econômico da esquerda brasileira. Foi consultor de Lula, Dilma e Ciro, escrevia na Carta Capital e suas declarações contrárias ao impeachment de Dilma Rousseff recebiam destaque imenso nos sites e blogs caudatários do PT.
Delfim também foi o homem forte da ditadura militar, responsável pelo malogrado milagre brasileiro, do qual resultou hiperinflação e desigualdade social recorde.
Mesmo assim, o milagre do Delfim Netto continua sendo sentido até hoje. O projeto dele e da ditadura de industrializar o Brasil via instalação de multinacionais acabou de dar mais um de seus frutos: a saída da Ford do Brasil.
O modelo Delfim-milicos foi uma contrapartida ao nacional-desenvolvimentismo pré-64, que previa, num processo liderado pelo Estado e fortemente estimulado por investimentos estatais, um crescimento econômico alicerçado principalmente na expansão do mercado interno e numa participação cada vez maior dos trabalhadores no dito cujo, à medida que o aumento de sua capacidade aquisitiva lhes permitiria consumir mais.
Complementarmente, reformas estruturais (agrária, bancária, fiscal, urbana, administrativa e universitária) para eliminar distorções e focos de atraso, desimpedindo o caminho para um capitalismo moderno no Brasil (e não para o comunismo, como martelava a propaganda reacionária).
O golpe de 64 veio para impedir este modelo e implementar o desenvolvimento industrial por via conservadora, sem reformas e com inclusão relativa e controlada das classes trabalhadoras.
Ao invés de reformas estruturais, pequenas mudanças cosméticas. Ao invés do desenvolvimento de forças produtivas nacionais, a mera transposição de indústrias multinacionais, com gordos incentivos fiscais (até mesmo os terrenos e a eletricidade lhes eram subsidiados!). O Brasil se endividava para alavancar o lucro das múltis.
Optava-se, assim, pela transformação do país em mera barriga de aluguel das multinacionais, com um desenvolvimento superficial, pautado nas decisões volúveis dos proprietários das empresas, estes residentes fora do país. O país, portanto, criava um modelo de desenvolvimento refém dos movimentos de acionistas cujo único objetivo era o lucro.
Enquanto as polpudas isenções fiscais e os nababescos incentivos do governo fluíam, as multinacionais iam ficando. Sem compromisso com transferência tecnológica ou com implementação de qualquer estrutura científica ou mesmo econômica.
Mas, quando se tornou mais lucrativo para as multinacionais irem para outras bandas, elas saíram em peso. E assim foi ao longo da década de 90, com a transferência de fábricas para a Ásia, particularmente para a China.
Não à toa, os últimos 30 anos viram o crescimento do peso das commodities no PIB nacional. A soja e o minério de ferro foram substituindo os manufaturados, à medida que a desindustrialização se acelerava.
Portanto, não se trata de um fenômeno recente ou cuja responsabilidade recaia apenas sobre a insegurança econômica gerada pelo errático Governo Bolsonaro. Ele apenas é o epílogo deste processo, sendo também efeito dele.
O modelo criado por Delfim e pelos militares mostrou-se insustentável justamente porque não trouxe complexificação e enraizamento industrial ao país. Sem reformas estruturais e desenvolvimento tecnológico nacional, era apenas questão de tempo para as multinacionais partirem daqui, seja em busca de lugares mais atrativos, seja por questões de reorganização produtiva.
Algo irônico nisso tudo é que os militares golpistas diziam ser necessário impor a ditadura para evitar que o Brasil se tornasse uma nova China. Que palpite infeliz!
O modelo chinês hoje, para o bem ou para o mal, obtém sucesso em desenvolver o país, graças imensamente às reformas estruturais feitas por Mao. E, enquanto a China inaugura milhares de quilômetros de trens e cria um sol artificial, o Brasil se avacalha, com generais semialfabetizados sendo utilizados como dublês de ministros.
Longe de fazer uma louvação acrítica do desenvolvimento capitalista chinês, pretendo apenas mostrar o quanto opções distintas feitas há mais de meio século levaram os dois países a condições radicalmente opostas no presente.
Lamentável pela perda de empregos e de renda, bem como pela falência da cadeia de insumos, o fechamento da Ford é apenas mais uma comprovação da essência do capitalismo e de como as opções nefastas do regime de 1964, mantidas na redemocratização, conduziram o Brasil ao abismo. (por David Emanuel de Souza Coelho)
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