quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

A COVID-19 COMPROVOU O QUE TANTOS NÃO QUERIAM ENXERGAR: A INSENSIBILIDADE DE NOSSO MODO DE RELAÇÃO SOCIAL – 1

dalton rosado
REFLEXÕES SOBRE A INCONSCIÊNCIA SOCIAL E A PANDEMIA
"
A dominação pessoal foi substituída por uma dominação da reificação
*, ou seja, não superou a injustiça social, que apenas foi objetivada pela mediação universal da concorrência a um grau de abstração mais elevado do que antes" (Robert Kurz)
A matriz fetichista que habita as nossas mentes não nos deixa raciocinar sobre a possibilidade de um modo de relação social diferenciado deste que temos. 

Numa conversa informal minha com alguém razoavelmente informado e com bom nível de escolaridade, pude constatar quão difícil é, para as pessoas em geral, admitirem que podemos viver socialmente sem a mediação da forma-mercadoria, expressa principalmente no dinheiro, que parece tudo viabilizar.

Ao tentar explicar que, em cada bem útil ao consumo, não existia um grama sequer de dinheiro, e que poderíamos tudo fazer e construir com a mera interação de mente, músculos e nervos humanos com as matérias da natureza (da qual fazemos parte), o meu interlocutor sempre voltava à pergunta denunciadora de sua incompreensão: mas, como vamos extrair e processar a matéria-prima sem o dinheiro para extraí-la e processá-la???
Duas formas sem valor: o homem e a caixa

É o fetichismo da mercadoria que não nos permite raciocinarmos como muitos de nossos antepassados mais distantes (ressalvo não estar defendendo a volta ao passado sofrido, seja comunitário ou escravista, ambos sem o domínio do saber que hoje detemos), os quais, apesar das agruras da opressão direta, pelo menos eram ainda imunes à intermediação nociva do dinheiro. 

Sabiam, portanto, que uma banana nascia da terra e matava a fome naturalmente, sem que essa mesma banana representasse valor monetário, mercadoria ou coisa que o valha, sendo, apenas um item de sua alimentação.

Já não somos capazes de raciocinar sem a intermediação do dinheiro nas nossas vidas, ou seja, estamos presos a outro tipo de opressão, impessoal, abstrata, reificada e, agora no seu ocaso, muito mais cruel. 

Hoje, na chamada modernidade, estamos permanentemente presos ao modo de produção de mercadorias que nos obriga, p. ex., ao impulso suicida de relações sociais concentradas (de produção e comercialização) num momento de infecção contagiosa capaz de vitimar cerca de 3% dos contaminados  pelo coronavírus. 

Vivemos sob a égide de uma inconsciência social cultural que se estabeleceu milenarmente, de início sob a escravidão direta e, nos últimos cinco séculos, pela escravização indireta da impessoal forma-sujeito da mercadoria.

Quando os senhores do mundo escravista monárquico, aliados com os senhores do mundo transcendente (a religiosidade fundamentalista retrógrada), foram paulatinamente substituídos pela forma-sujeito da mercadoria, que é um comando abstrato e fetichista, toda a humanidade a ela se prostrou. irracionalmente subsumida. 
A insensibilidade do capitalismo salta aos olhos...
Por muito tempo os revolucionários marxistas tradicionais consideraram erroneamente que o sujeito da revolução capitalista seria a classe operária. 

Mais numerosa do que a classe patronal, quando se unificasse politicamente sob a direção de um partido revolucionário, implantaria –supunham– um Estado proletário capaz de caminhar no sentido de autodissolução do próprio partido, do próprio Estado, das categorias capitalistas e das classes sociais distintas, até chegar-se a uma relação social comunista em escala mundial. 

Idealistas uns, oportunistas outros, a realidade lhes mostrou que o caminho do inferno está pavimentado de boas intenções , como já dissera o próprio Marx.

A história demonstrou que a classe operária não se constituía no sujeito da emancipação social comunista, mas, muito pelo contrário, era inconscientemente parte integrante da própria dinâmica da forma-sujeito abstrata, ou seja, da autotélica forma-valor, representada pelo dinheiro (equivalente geral numericamente intangível) e pelas mercadorias tangíveis, com seus valores de uso e de troca.

Ao entronizar a classe operária no papel de sujeito da revolução,  endeusando-a como sacrossanta artífice da grande mudança (não é por menos que as bandeiras vermelhas ostentam a foice e o martelo, símbolos da pretensa eternidade e superioridade dos trabalhadores braçais), os revolucionários de então cometeram um erro que teria consequências as mais danosas.
...seja nos casebres insalubres em que os pobres se contagiam, seja nos hospitais improvisados em que vão morrer
Deveriam é tê-la combatido como produtora de valor e, portanto, como indispensável mônada primeira da acumulação do capital sob sua égide funcional; ao não fazê-lo, inadvertidamente erigiram a raiz do mal em solução para o dito cujo.

Um equívoco histórico que nos fez perder muito tempo e desmoralização perante nosso adversário histórico, qual seja o escravismo milenar, agora muito mais letal, abrangente e dissimulado: o sujeito da forma-mercadoria. 

A questão que se coloca hoje para a humanidade é: como se viabilizar socialmente diante do esgotamento de um modelo que se exauriu por suas próprias contradições endógenas e exógenas, as quais agora se tornam claramente explicitadas sob a forma de tragédia social e desumanização do indivíduo? (por Dalton Rosado continua neste post)

* 
reificação
relação de coisas entre si (as mercadorias, na concorrência de mercado), como se tivessem vontade própria preponderando sobre a vontade humana e lhe estabelecendo regras de comportamentos ditatoriais (DR).  

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