dalton rosado
A IDIOSSINCRACIA E O OPORTUNISMO GOVERNAMENTAL
Em geral, os governos têm uma identidade de propósitos a nortear as suas ações.
Isto se dá mesmo que estas estejam circunscritas e limitadas a uma superestrutura que envolve regras constitucionais; instituições; costumes; forma de relação social de produção dos bens e serviços necessários à satisfação do consumo; subvenção da manutenção governamental; direito; valores morais e éticos, etc., etc., etc.
A identidade de propósitos define o caráter ideológico do exercício do poder vertical, mesmo que este seja exercido dentro de parâmetros constitucionais preestabelecidos. Mas, não raro, o oportunismo e o desejo de perpetuação no poder provocam mudanças de rumo, sempre conservadoras e imanentes ao dito cujo.
Sou contra o poder vertical porque ele é, invariavelmente, uma falsa representação da vontade coletiva, apenas reproduzindo a hierarquia de uma ordem social opressora e dividida em classes sociais ao longo dos tempos.
Sou contra as ideologias justamente porque elas representam uma camisa-de-força a impedir o processo dialético histórico de caminhar no sentido da incorporação e adequação dos melhores procedimentos criados pela coletividade; é como se as ideologias representassem a verdade absoluta (coisa que não existe, já que a verdade, por estar condicionada às mutações da vida social, é sempre relativa e ocasional).
A atual idiossincrasia governamental brasileira, contudo, representa a completa falta de referência norteadora, como se estivéssemos num barco à deriva, levado pela correnteza rumo ao abismo. É esta sensação que tenho com relação ao governo do capitão Boçalnaro, o ignaro.
Única bússola da ação governamental, a obsessão pela manutenção e ampliação (a qualquer preço) do poder de que dispõe é a grande responsável pela idiossincrasia governamental.
O rótulo ideológico mais apropriado para o malfadado governo atual é realmente o de idiossincrático, correspondente à contradição de conceitos que se auto-anulam. Vejamos os sintomas.
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SOBRE O AUTOPROCLAMADO LIBERALISMO – durante toda a campanha presidencial de 2018, o candidato ultradireitista admitia não dominar os conceitos da ciência econômica (aliás, ele pouco sabe de quase tudo, só se destacando na disciplina oportunismo político, da qual é PhD), mas, apesar de se fazer passar por outsider, defendia as proposições capitalistas do liberalismo econômico professadas por aquele que já escolhera para czar da economia, Paulo Guedes.
Era ao logo apelidado de posto Ipiranga que deveriam ser dirigidas as perguntas sobre a tal Escola de Chicago, a menina dos olhos do Guedes. Tendo como principal expoente Milton Friedman, a dita cuja preconiza o estado mínimo, incumbido de cumprir funções estratégicas de controle monetário e regulamentação protetora da exploração capitalista.
O liberalismo clássico data do século 19, baseado na doutrina do laissez faire, laissez aller, laissez passer (deixai fazer, deixai ir, deixai passar), que nada mais é do que a função meramente estratégica estatal de indução ao desenvolvimento capitalista, tendo como premissa a livre concorrência de mercado como pretenso fator de equilíbrio da produção e consumo, e relegando o atendimento das demandas sociais a uma pretensa melhora do poder aquisitivo da população.
Entretanto, jamais promoveu, em quase dois anos de governo, qualquer privatização de peso, o que levou a pessoa encarregada dessa agenda (o ex-secretário especial para a Desestatização e Privatização, Salim Mattar) a se demitir por absoluta falta do que fazer.
É que, apesar de ser militar indisciplinado e infenso à hierarquia, o que lhe valeu uma aposentadoria remunerada precoce, ele gosta do poder estatal forte, nacionalista, como qualquer militar em qualquer lugar no mundo e na história (vale lembrar que os governos militares de 1964 a 1985, estatizaram mais do que preconizavam as pretensas reformas de base do combatido governo João Goulart). A contradição com o liberalismo clássico salta aos olhos.
Mas, como ele não entendia mesmo nada de economia, fez uma mistureba indigesta entre o nacionalismo patriótico (sob a bandeira verde-amarela de combate a um comunismo inexistente) e a proposta liberal do estado mínimo, sem que os seus fanáticos eleitores percebessem a contradição flagrante.
Faltava-lhe, claro, consistência política e histórica, dado o seu primarismo intelectual; mas, sobrava-lhe esperto oportunismo político eleitoral.
Foi, ademais, bafejado por uma suspeita facada, cuja intensidade ou mesmo veracidade permanecem na penumbra, mas que terminou por lhe ser oportuna, ao poupá-lo da continuidade dos debates eleitorais que vinham comprovando e escancariam ainda mais a sua mediocridade.
Assim, graças a um triste acaso ou a um crime eleitoral impune, pôde passar desapercebida a contradição contida nesse enunciado nacional-liberal.
Os gastos militares do governo em 2019, foram maiores do que os gastos com educação, p. ex., evidenciando a falácia do projeto liberal do estado mínimo: a prometida redução do orçamento público em relação ao PIB, foi colocada de lado, num ano em que a economia já estava combalida mas ainda não sofria o impacto negativo da pandemia do coronavírus.
Ressalte-se que o PIB do primeiro ano do governo do Boçalnaro foi inferior ao de 2018, sob o presidente Temerário. Agora, já se comemora como grande conquista a previsão de que o PIB fechará 2020 com uma queda de apenas 5,8%!
E o desastre só não será maior porque o governo, contrariando a ortodoxia liberal, abriu os cofres; ou melhor, botou a gráfica da Casa da Noeda para trabalhar, endividando-se e promovendo farta distribuição de dinheiro sem valor. Caso contrário esse governo dificilmente conseguiria evitar uma convulsão social de grandes proporções, nem se sustentaria em pé por muito tempo.
A distribuição de dinheiro sem valor, embora seja providência emergencial necessária, já está causando inflação de alimentos. E, caso seja oficializada em função de interesses eleitorais evidentes, deverá causar danos graves à economia.
Mas, se o tal auxílio emergencial, sob qualquer nome que se invente, vier a ser suprimido, a convulsão social entrará na ordem do dia.
No capitalismo é assim, se ficar o bicho pega, se correr o bicho come (e se autodevora).
Destarte, Boçalnaro jogou pro alto todos os conceitos de ajuste fiscal orçamentário, desmoralizando a orientação liberal do Guedes.
Mas este, cumprindo orientação do capital financeiro (que hoje é internacional por excelência) do qual sempre foi caudatário, prefere engolir sapos em profusão, tentar justificar o injustificável e permanecer no governo. (por Dalton Rosado)
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