domingo, 6 de setembro de 2020

7 DE SETEMBRO: MORTE (parte 1)

Brasil chega ao Dia da Independência com um genocida no 
poder e negacionistas do genocídio em todas as partes
Se este 7 de Setembro transcorrer como se o Brasil vivesse algum tipo de normalidade, enterremos nossos corações, porque já estarão mortos. Devemos então parar de fingir que estamos vivos e assumir nossa condição de zumbis. 

Não o dos filmes, que tentaram escapar dessa condição. Mas os que escolhem ser contaminados pela normalidade criminosamente anormal. 

A covardia é uma forma de existência a qual se escolhe. Este país está cheio de oportunistas, sim. Mas também está cheio de covardes incapazes de defender qualquer território para além da sua família, porque também o sentimento de comunidade foi persistentemente destruído. 

Em 7 de Setembro de 1822, quando se aliviava de uma diarreia insistente no riacho Ipiranga, em São Paulo, o príncipe português Dom Pedro I teria gritado: Independência ou Morte! Depois de 198 anos, já entendemos que o Brasil sempre escolheu a morte. Mas jamais, em nenhum outro momento de sua história, o país havia alcançado esse nível de perversão sob o título formal de democracia. 

Negros e indígenas vivem uma longa história de extermínio, mas esta é a primeira vez em que um governo construiu uma máquina de morte. Temos um genocida no poder, e ele está matando tanto quanto deixando morrer. Tem intenção, tem plano e tem ação sistemática.
Os quatro pedidos de investigação de Jair Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional não são um jogo político de retórica. São a denúncia de que o judiciário brasileiro não consegue ou não quer barrar os crimes de Bolsonaro e de outras pessoas com cargos de poder no Governo, sejam generais ou civis.

Se conseguisse ou quisesse, como os fatos já mostraram, Bolsonaro nem poderia ter sido candidato. 

Ele é o resultado de uma longa série de impunidades iniciada ainda quando era militar. Foi absolvido no Tribunal Superior Militar, num julgamento povoado de indícios de fraudes, de planejar um ato terrorista com um motivo corporativo: botar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. 

Só se tornou presidente pela vocação característica do sistema judiciário brasileiro: a de punir severamente os pretos e pobres e despachá-los para um sistema carcerário incompatível com qualquer ideia de civilização, mas perdoar ou deixar de julgar os ricos e brancos. 

Especialmente se estes forem militares e tiverem o privilégio de uma justiça paralela que escolhe inocentes e culpados com base não nos fatos, mas nos interesses corporativos de uma instituição que se considera acima da Constituição.
Bolsonaro é brasileiríssimo. A criatura que está matando os Brasis que considera obstáculos ao seu projeto de poder, assim como as populações que despreza (indígenas e negros), é a versão mais bem acabada – e por isso tão terrivelmente mal acabada – de todas as deformações. As que os governos anteriores não quiseram corrigir, pelas mais variadas razões, as que as diferentes elites estimularam, para manter seus privilégios, as que o povo se acostumou a conviver.

O Brasil chega a este 7 de Setembro com os símbolos nacionais sequestrados pelo bolsonarismo. A bandeira foi sequestrada, o hino foi sequestrado, as cores foram sequestradas.  

Porque o bolsonarismo não se coloca como uma parte do Brasil, mas como o todo. Os outros Brasis e brasileiros que se opõem a ele são considerados e tratados como não brasileiros, como aqueles que precisam ser expulsos ou eliminados porque não deveriam estar aqui.

O seu discurso no telão da Paulista, pouco antes do segundo turno das eleições de 2018, quando a vitória já era certa, é explícito:
"Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil (...) Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia"
Percebam. Não a lei do Brasil, que é a Constituição, mas a lei de todos nós. E esclareceu quem são nós: o Brasil de verdade.

O bolsonarismo é, em sua gênese e na sua estrutura, incompatível com a democracia. Na minha opinião, também incompatível com a civilização. O fato de Bolsonaro ter sido eleito não altera sua vocação totalitária nem sua lógica de eliminação dos opositores como falsos brasileiros. Ao contrário.  
Ao ser candidato, apesar de todos os crimes que já tinha cometido, a começar pelo de apologia à tortura, Bolsonaro desmoraliza e destrói uma combalida democracia que jamais foi capaz de julgar os crimes da ditadura e por isso jamais foi capaz de se proteger de criminosos como Bolsonaro.

Ele não apenas leva os generais de volta ao governo e militariza toda a máquina pública, o que pareceria impossível apenas alguns anos atrás, para um país que viveu uma ditadura militar de 21 anos. Bolsonaro também carrega para o Planalto a lógica de guerra dos regimes totalitários.

Na ditadura iniciada com o golpe de 1964, os inimigos da pátria eram os opositores políticos, especialmente os estudantes que a ela resistiram também com luta armada. No regime criado pelo bolsonarismo, que já não podemos chamar de democracia, os inimigos da Pátria são ampliados para todos aqueles que se opõem democraticamente a ele e a todos aqueles que são obstáculos ao projeto econômico de grupos no poder. 

Os opositores, como ele disse, devem ser levados à Ponta da Praia, referindo-se a um local de tortura e desova de cadáveres na ditadura, no Rio de Janeiro. Já os indígenas, principal obstáculo ao projeto de exploração da Amazônia, são tratados como uma espécie inferior: cada vez mais humanos iguais a nós. Aos quilombolas, outro obstáculo, ele se refere com termos usados para animais: nem para procriadores servem. 

De certo modo, Bolsonaro vai além da ditadura militar na qual se inspira ao tornar brasileiros de verdade apenas os fiéis de seu culto político ― e falsos todos os outros. Porque ele não é apenas um mau militar, como definiu o ditador e general Ernesto Geisel. Bolsonaro está também aliado aos pastores de mercado e ao ruralismo mais predatório. 

Bolsonaro emprestou à lógica da guerra dos generais uma versão bíblica do bem contra o mal, explicitada pelos brasileiros de verdade e pelos brasileiros de mentira. Estes devem ser expulsos ou eliminados não apenas como inimigos, mas como infiéis da pátria.

Para consolidar sua vitória colocou em campo uma máquina de propaganda, o chamado gabinete do ódio, que poderia ser elogiada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. 

O bolsonarismo converteu todos aqueles que se opõem a ele em inimigos da pátria, do mesmo modo que o nazismo fez com os judeus num primeiro momento. 

Com os indígenas e com os negros, ele já entra numa segunda etapa, ao considerá-los apenas quase humanos como nós.

Bolsonaro e o bolsonarismo, que vai muito além dele, faz uma colagem dos totalitarismos do século 20 com a versão bíblica do evangelismo de mercado que se consolidou na política partidária neste século e alcançou o poder central com a eleição de 2018. 

Se fossem contemporâneos, Adolf dificilmente teria prazer em se sentar à mesa com Jair, porque a vulgaridade do presidente brasileiro o escandalizaria. Hitler queria criar sua própria arte e estética.  
Bolsonaro, pelo menos por enquanto, só quer destruir qualquer forma de arte. É o supremacista que prega (também) a supremacia da estupidez como a vingança dos ressentidos.

Bolsonaro não precisou criar seus campos de morte. Deixou a covid-19 avançar e agiu para reter recursos públicos destinados ao enfrentamento da doença, para afastar os quadros técnicos com experiência em saúde pública e epidemias, para vetar medidas decisivas de prevenção e para tumultuar o combate ao vírus.

Também incentivou a invasão das terras indígenas e das áreas protegidas por grileiros e garimpeiros. Se a pandemia acabasse hoje, este já é um Brasil sem muitas das grandes lideranças que lideraram seus povos na luta pelo direito a viver em suas terras ancestrais e para manter a floresta amazônica e outros biomas em pé. Parte dos opositores de Bolsonaro, na Amazônia que mais uma vez volta a queimar, morreram nos últimos meses. E a pandemia ainda está longe de acabar.

A mais recente liderança indígena morta por covid-19, em 31 de agosto, foi Beptok Xikrin, 78 anos, conhecido como Cacique Onça. Voltou à sua aldeia, no Médio Xingu, num caixão fechado, enfiado em uma lona, amarrado a uma caminhonete como se coisa fosse, na mais abjeta indignidade. Não basta matar ou deixar morrer, é preciso humilhar, quebrar a espinha dos povos indígenas também pelo insulto e pela desonra.

Mesmo para quem tem baixa expectativa com relação à decência das várias elites brasileiras, é custoso compreender como ainda chamam o que hoje há no Brasil de democracia. O que aí está não é bom nem mesmo para o mercado, essa entidade pronunciada com reverência. 

Que tipo de crença leva alguns setores, mesmo da imprensa, a considerar, depois de um ano e meio de governo, que há alguma composição possível com o bolsonarismo? 

A ação das elites não foi diferente nos processos totalitários do século 20, mas ainda assim é espantoso. (por Eliane Brum, escritora, repórter e documentarista, no jornal global El Pais)
(continua neste post)

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