NÃO FALAR
Diante de 100 mil mortos, ocupar os espaços públicos para falar à classe média sobre como suportar a pandemia é só outra forma de puxar o gatilho
Diante da catástrofe (e o que temos diante de nós é a descrição mais clara de catástrofe ―não apenas a catástrofe do número impensável de mortos por negligência do estado, mas a catástrofe da vida normal que parece voltar numa letargia muda), seria o caso de dizer que este é um país não-viável, sentir até o mais profundo de nossos ossos sua inviabilidade para que esse sentimento queime todo e qualquer desejo de retorno em direção ao que quer que seja.
Ao menos, esse desejo de não-retorno nos pouparia do último de nossos desejos responsáveis que só serviram para cavar mais fundo o impasse, a saber, os chamados para grandes frentes amplas contra o fascismo (e se me permitirem, vai aqui uma autocrítica pois até eu assinei um desses chamados, o que definitivamente não faria novamente).
Eles formaram com JK a Frente Ampla mais bizarra de todas |
Pois este é o país das frente amplas inúteis, dos bons sentimentos de responsabilidade civil que produzem monstros. Esse é o país dessa linguagem do diálogo entre diferentes. Do eterno diálogo de cúmplices.
O mesmo argumento estava lá a selar o aperto de mão entre Luiz Carlos Prestes e Getúlio Vargas no final da 2ª Guerra. Uma frente ampla com comunistas, trabalhistas e os bons e velhos representantes das oligarquias locais. O resultado não foi brilhante.
Ele voltou mais outra vez como certidão de nascimento da Nova República, quando uma outra frente ampla subiu aos palanques para dizer um eu quero votar para presidente, o que apenas serviu para dar alguma forma de legitimidade ao pacto de paralisia que nos marcará durante os 30 anos por vir, pacto selado entre oposicionistas moderados e governistas sagazes.
Se as palavras de ordem fossem para valer, a primeira coisa que Tancredo Neves-José Sarney teriam feito seria renunciar para a convocação de eleições gerais imediatas. Mas, não. Era o mesmo discurso contra o ódio (que, na época, atendia por outro nome. Seu alcunha era revanchismo).
Agora, foram necessárias apenas duas semanas para entendermos qual era a real função da frente ampla. O Brasil conhece atualmente forte tensão entre:
— uma extrema-direita popular de claros traços fascistas, que controla o executivo, e
— uma direta tradicional e oligárquica, que controla o judiciário e o legislativo.
Ou seja, de um lado novos atores fora do horizonte tradicional da política, vindos do lumpem-proletariado; e, do outro, a casta política tradicional.
Os dois lados do embate representam os mesmo interesses econômicos, comungam do mesmo projeto, mas não obedecem a mesma cadeia de comando. Era necessário um certo equilíbrio temporário que não dizia em nada a respeito de políticas de proteção da população contra a pandemia, mas apenas a uma geometria mais estável de partilha do poder. Geometria esta conquistada através da pressão da chamada frente ampla.
Esta era apenas uma forma de pressão que em momento algum levou efetivamente em conta a possibilidade de lutar para afastar o Governo. Assim, o país pôde continuar a assassinar sua população vulnerável enquanto preserva a ilusão própria a esta democracia geograficamente sitiada que construímos.
Democracia que funciona num espaço geográfico definido nas regiões centrais das grandes cidades enquanto inexiste em suas periferias e nas relações no campo. Foi para preservar essa democracia geograficamente sitiada, que ameaçava ruir, que tais frentes amplas foram convocadas.
Ou seja, na hora de tomar ciência do intolerável, de mobilizar o entusiasmo para a tarefa dura e necessária de parar de falar como sempre falamos e começar a falar de outra forma, um falar de outra forma que produz necessariamente um agir de outra forma (já que vale aqui o dito de Austin, dizer é fazer), eis que reencarnam os mesmo enunciados, com seus mesmos tons e exortações, com suas mesmas falas de duplo sentido, que devem ser sempre lidas nas entrelinhas.
Este país deveria aprender a recusar as falas que lhe são impostas, recusar a crença de que nossa emancipação se dará com as formas produzidas pelos setores mais fetichizados da indústria cultural, recusar os que nos aconselham o que fazer com nossos conflitos insolúveis, sejam eles individuais ou sociais.
Parecem tipos de problemas diferentes colocados, de forma indevida, num mesmo nível. Mas quando a imaginação social de um país se paralisa, todos os níveis da vida parecem girar em torno da mesma cantilena. Melhor seria lembrar, como dizia Wittgenstein: Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo.
Esta deveria ser a primeira lição para todos os que querem realmente entender política: explodir os limites da linguagem para que o mundo vá junto. (por Vladimir Safatle, na edição brasileira do El Pais)
TOQUE DO EDITOR – Como este artigo era longo demais para os padrões deste blog, deixamos de lado os dois primeiros (enormes) parágrafos, o que, a nosso ver, não prejudica a compreensão do tema, por serem basicamente introdutórios. Os interessados poderão acessar o texto integral aqui.
TOQUE DO EDITOR – Como este artigo era longo demais para os padrões deste blog, deixamos de lado os dois primeiros (enormes) parágrafos, o que, a nosso ver, não prejudica a compreensão do tema, por serem basicamente introdutórios. Os interessados poderão acessar o texto integral aqui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário