quinta-feira, 7 de maio de 2020

ONTEM ALMOCEI FEIJOADA

E daí? – devem estar perguntando os leitores, certamente decepcionados, embora não tenham os maus bofes do palhaço sinistro que será lembrado durante muito tempo por tal perguntinha. 

Os pobres sendo ceifados como moscas, a pandemia avançando para ter seu epicentro no Brasil, a esquerda se guardando para quando o carnaval chegar ao invés de apontar caminhos para os explorados, humilhados e ofendidos num momento decisivo da nossa História...  e um veterano da resistência à ditadura falando da sua refeição!

O que posso dizer em minha defesa? Basicamente, que dos problemas realmente sérios eu tenho falado e escrito praticamente todos os dias. Hoje, não é de palavras que precisamos, mas sim de ação. 

E, infelizmente, não depende de mim o desencadeamento das lutas que deveriam estar sendo travadas, como a do impeachment do miliciano maluco. 

São outros os que dispõem dos meios para tanto. E não sei mais o que escrever para fazê-los encherem-se de brios, tantas foram as minhas tentativas! Às vezes fico pensando que eu precisaria ter poder para ressuscitar os mortos, como Cristo...

É claro que me incomodam  – e muito! – as notícias de mortes de pessoas notórias e valorosas, bem como as dos óbitos dos vulneráveis anônimos (idosos, pobres, moradores da periferia ou dos grotões), que estão sendo dizimados em massa porque são aqueles cuja sobrevivência pouco ou nada importa para os poderosos. 
O mico: aliar-se a um partido stalinizado durante a ocupação

Como deixamos as coisas chegarem a este ponto? Sinto vergonha e culpa por ter sido reduzido à impotência, desta vez não pelo terror ditatorial, mas pelos mecanismos de dominação implícita e anulação da vontade de uma democracia burguesa. 

É o cruel dilema que há muito os idealistas de verdade enfrentamos, desde que a esquerda, sob Stalin, trocou o ideal revolucionário puro por um hibrido entre a sociedade que deveríamos fazer nascer e a sociedade cuja morte deveríamos apressar. Um hibrido que acabou não sendo nem uma coisa, nem outra, mas o pior dos dois mundos.

Sartre disse tudo sobre o que é fazermos política dentro dos limites do que o senso comum considera possível ao invés de acreditarmos até o fim que o necessário também poderá tornar-se possível, se não nos conformarmos com as soluções intermediárias que acabam apenas ajudando a perpetuar o inaceitável e o intolerável . 

Fazer política é mergulhar as mãos no sangue e na merda – definiu Sartre, que era obrigado a engolir sapos ao colaborar com o Partido Comunista Francês na resistência à ocupação nazista, detestando coonestar, pelo silêncio, o massacre físico e/ou político dos melhores revolucionários, aqueles que resistiam ao stalinismo na URSS.  

Era desconfortável sua posição de, simultaneamente, aliado do partido comunista stalinizado  na França e crítico do partido comunista do próprio Stalin na pátria mãe dos trabalhadores. E não deixavam de atirar-lhe tal ambiguidade na cara.
...e encontra um inferno de última geração!

Também aqui a opção revolucionária foi esmagada, só que por dois rolos compressores: 
— de um lado, o consumismo capitalista e a lavagem cerebral da indústria cultural; 
— do outro, o populismo de uma esquerda que se deslumbrou quando alguns dos seus quadros eminentes foram para o paraíso (material, tão somente), deixando para trás a grande maioria do povo, que continuava no interno sem saída da sociedade de classes.

O certo é que eu tinha total clareza quanto ao que precisava ser feito, mas passei este século inteiro sem encontrar com quem fazê-lo (salvo numa moeda que caiu em pé, a luta pela liberdade de Cesare Battisti em 2008/2011). 

Como isso tudo vem dando voltas na minha cabeça há bom tempo e tende a ser muito depressivo durante uma quarentena, tenho tentado valorizar ao máximo o pouco que resta de positivo num período tão negativo. Era o que eu fazia, como preso político, nos cárceres militares. 

Graças, oh Deus, pelas pequenas mercês! era a frase irônica que me vinha à cabeça quando a coisa melhorava um tiquinho (como, p. ex., quando nos deram permissão para leitura, ainda que fossem as memórias de Caxias e outras tralhas existentes na biblioteca do quartel...).

E a pequena mercê de hoje foi uma feijoada, como as que venho comendo há mais de meio século nas quartas-feiras ou sábados, mas não provava desde março.

Há duas lembranças marcantes associadas a esse prato. A primeira é a de que, ao contrário da grande maioria dos jovens da minha faixa de idade que moravam na Mooca, desde lá pelos 14 anos eu ia procurar novos horizontes, pegava até dois ônibus para assistir a um filme do outro lado da cidade, adorava andar pelo centrão e conhecer uma realidade diferente da do bairro.
E não é que encontrei uma foto de onde ficava o restaurante?!

Numa dessas andanças, passei por um restaurante pobretão da avenida São João cujo prato de sábado, claro, era feijoada (que nunca comera em família). Arrisquei, era um tempo que eu chamava o mundo para mim, queria experimentar de tudo. E gostei tanto que, permanecendo por perto até a noite, resolvi repetir a dose. 

Tive dor de barriga, claro, e meu pai me explicou que era uma temeridade comer duas feijoadas no mesmo dia. Mas, nem o mau desfecho me afastou do prato que eu descobrira fora do círculo familiar e era uma peça do quebra-cabeça que eu estava montando naquele momento: uma personalidade que eu pudesse chamar de minha.

Se esta lembrança é apenas pitoresca, a outra, não. Lá pelos meus trinta e poucos anos, eu morava próximo de onde um amigo artesão montara seu pequeno ateliê. Tínhamos ambos participado de uma comunidade alternativa, brigado por namorada e depois nos reconciliado, quase uma década após ainda éramos chegados.

Num sábado, saí para comer feijoada e resolvi passar pelo ateliê para convidá-lo. Preso às manias da era hippie, ele planejara comer apenas uma marmita de arroz integral. E, brincalhão, disse-lhe mais ou menos isto:
— Pô, o mundo está marchando para a escassez e você se priva das coisas boas da vida! Amanhã não vai ter mais feijoada pra comer e depois de amanhã você vai morrer. Aproveite enquanto é tempo...
Não durou nem seis meses: um câncer de próstata negligenciado o levou. E fiquei achando que jamais devemos fazer afirmações que possam tornar-se agourentas. (por Celso Lungaretti)

[Se o Apollo, onde estiver, for capaz de nos ver, deve ter gostado do meu esforço para escrever uma crônica, tentando preencher, pelo menos em parte, a enorme lacuna que deixou cá no blog. É a ele, insuperável mestre cronista, que eu a dedico.] 

6 comentários:

André Luiz disse...

Ótima crônica.

Matheus Trunk disse...

Eu achei seu texto bonito. Celso, eu gostaria de saber uma curiosidade meio mórbida. Que livros vocês tinham acesso na prisão? O que você lembra que leu? Como conseguiam manter a sanidade nesse local ? Desculpe puxar sua lembrança de algo tão terrível. Se preferir não responder não tem problema. Abraço

celsolungaretti disse...

Não é segredo, Matheus. No DOI-Codi/RJ e na PE da Vila Militar o regime carcerário era dos mais rigorosos, então passei os primeiros meses sem nada para ler.

Aí, finda a fase das torturas, já na PE, o Wellington Moreira Diniz passou mal do coração e resolveram permitir que lesse os livros da biblioteca do quartel. Consegui pegar uma carona nessa abertura e lia os mesmos livros que um soldado levava para ele. Tudo chatice militar, mas eram melhores do que nada.

Até que o soldado, simpatizando conosco, passou a trazer algo mais atraente que encontrou por lá: as obras completas do Júlio Verne. Foi à custa delas que superei a confusão mental remanescente das torturas e me senti perfeitamente lúcido de novo.

Adiante, no finzinho do meu tempo de cativeiro, me transferiram para o Regimento Escola de Cavalaria, no qual o tratamento era bem mais civilizado (como não sou ingênuo, percebi que lá era onde os milicos recuperavam um pouco os presos políticos que pretendiam libertar, para que não voltassem às ruas parecendo os sobreviventes de campos de concentração nazistas).

Pude então ler quaisquer livros de ficção que meus pais retirassem na biblioteca da Mooca. Cada um fez um cartão e não me lembro se eram quatro ou seis livros que traziam em cada visita. Eu os devorava.

Até li as obras completas do Freud, que aos milicos pareciam inofensivas, mas eram o ponto de partida para o meu passo seguinte, quando fosse libertado: estudar o Marcuse, que fizera uma espécie de releitura do Marx à luz dos ensinamentos freudianos.

Anônimo disse...

Não concordo com esses sentimento de vergonha, culpa.
Foi e continuas tendo uma vida de luta. O Náufrago da Utopia é um dos raros blogs cuja leitura podemos enxergar alguma coisa além desse emaranhado de informações da mídia eletrônica. E com que precariedade de recursos o blog é mantido!

Sinto uma enorme angustia quando observo que os mais sofridos, os mais explorados, deram os votos decisivos ao insano que dirige o país. O grande tartufo da esquerda e sua sucessora têm enorme responsabilidade pela alienação do nosso povo.

No entanto foi muita alienação durante décadas. Repetidamente, os mais necessitados, os jovens alienados, as mulheres, se não elegeram, deram votação expressiva a figuras como Collor, FHC, Maluf, Aécio, Serra e por fim Bolsonaro.

O poeta, diretor de cinema Pier Paolo Pasolini expressa sua angustia com a alienação da juventude de seu país no episódio do filme Amore e Rabbia, de 1969. O filme tem cinco episódios tratando dos dois temas, com 5 diretores, Godard, Bertolucci, Bellocchio e Lizzani.

No episódio de Pasolini, o jovem Riccetto perambula despreocupadamente pelas ruas de Roma enquanto o mundo arde com a Guerra do Vietnã, assassinato de Guevara, etc. O curta tem imagens sobrepostas das atrocidades do capitalismo no século 20.

"Deus" tenta conversar com o jovem:
- "Escuta, Riccetto. Escute-me se não quiser se perder.
A inocência é uma culpa, entende?
Os inocentes serão condenados porque não têm mais o direito de ser inocentes.
Não posso perdoar quem passa com o olhar do feliz inocentes entre as injustiças e a guerra.

Como você, há milhões de inocentes no mundo que preferem desaparecer da história a perder a inocência. . . . .
Os inocentes não sabem e quem não sabe não quer. Eu, que sou seu Deus, ordeno que você saiba e queira.
É contraditório, eu sei. Talvez até seja sem solução, já que sendo inocente, não há como não o ser, e sendo inocente, você não tem consciência e vontade.

Diga-me, com quem falou Jesus, meu filho, senão com os inocentes? E para quê? Para que eles soubessem.
- Riccetto: Para mim, Deus, são palavras vazias. FIM
= = = =
Eu acredito nos jovens e que, do meio deles, sairá uma nova esquerda no Brasil.
Luiz Carlos Barbosa

celsolungaretti disse...

Luiz Carlos,

um revolucionário nunca deve considerar que fez o máximo possível. Quando não concretizamos nossos ideais, dificilmente teremos acertado em tudo.

Eu acredito ter feito meu melhor quanto a compreender o rumo dos acontecimentos e comunicar minhas deduções e propostas aos companheiros. Apontei caminho corretos, alertei em tempo hábil contra fracassos e desastres anunciados.

Mas, isto era exatamente o mais fácil para mim. O difícil era abrir espaços para que minhas mensagens atingissem as pessoas certas, aquelas que precisavam ser atingidas.

Não que eu tenha ficado de braços cruzados. Tentar, até que tentei. Mas não com toda a tenacidade de que eu era capaz.

Quem erige como modelo a política revolucionária em sua mais nobre acepção, tem dificuldade em lidar com a política desvirtuada, acanalhada, que é a moeda corrente tanto na democracia burguesa quanto no socialismo desvirtuado.

Daí Sartre haver dito que fazer política era mergulhar as mãos no sangue e na merda.

Daí Trotsky, quando a URSS já estava em processo de stalinização, ao chegar numa reunião partidária, ter respondido assim à indagação de um camarada, que perguntou o que ele estava buscando: "Um cabide vazio para pendurar meu sobretudo e um bom comunista. Aqui não estou encontrando nem uma coisa, nem outra".

Mas, mesmo tendo de lidar com a borra do fundo do tacho (como disse um saudoso companheiro sergipano) depois que a luta armada tragou os melhores revolucionários que este país já produziu, eu lamento não ter buscado com mais empenho uma forma de furar os bloqueios que eu sofria.

Sinto-me como a Cassandra troiana: sabia o que de ruim ia acontecer, mas nunca consegui atingir e convencer os revolucionários que tinham condições para corrigirem o rumo adotado.

Hoje, quando o Brasil passa por seu pior momento desde os anos Médici, eu seria um hipócrita se não reconhecesse que fiquei devendo algo à História.

Daí não acomodar-me: enquanto tiver forças e lucidez, continuarei tentando legar um Brasil melhor para minhas filhas. Foi a isto que me propus em 1967 e até hoje não entreguei.

Um abração!

Anônimo disse...

Isso é coisa nossa. Batismo brasileiro. Feijoada, caipirinha, rabada, torresmo etc. Brasilidade.

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