terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

A 'NARRATIVA DO GOLPE' DEVE CONTINUAR ONDE JÁ ESTAVA: NA LIXEIRA DA HISTÓRIA

O Oscar não é, nem nunca foi, uma premiação voltada para o reconhecimento de méritos artísticos. Está mais para uma festa de fim de ano de grande empresa.

A escolha dos ganhadores da estatueta cabe a profissionais da indústria do cinema: atores, diretores, roteiristas, designers, maquiadores, técnicos de som, executivos, etc. 

A visão da maioria deles é a do mundo dos negócios, daí a frequência com que, nas principais categorias, notáveis obras-primas como Cidadão Kane têm sido preteridas em favor de amenidades que tão-somente faturaram alto nas bilheterias (A volta ao mundo em 80 dias, p. ex.).

Dos troféus de cinema cujos agraciados têm motivo reais para orgulhar-se, os principais, claro, são os de Cannes. Mas, eternos colonizados, os brasileiros praticamente ignoramos Cannes e somos presas fáceis do mesmerizante marketing estadunidense, deslumbrando-nos com o evento brega-chique que a Globo transmite todos os anos.

Ainda assim, o que sempre contou para nós foram as categorias de melhor filme, melhor(es) ator(es) e, vá lá, melhor diretor. A importância desmesurada que desta vez se atribuiu ao melhor documentário se deveu apenas a fatores políticos. E se constituiu num total equívoco.

Artisticamente, a transposição da narrativa do golpe petista para as telas foi tendenciosa e panfletária demais, do tipo que arranca aplausos dos que nela já acreditavam e não convence ninguém que tivesse dúvidas.
Politicamente, porque tentou fazer dar certo na arte o que fracassou de forma acachapante na vida real, não passando, enfim, de um jus sperniandi travestido de documentário.

Grupos de interesses se articulando para derrubar governos existem praticamente o tempo todo. Obtêm sucesso contra governos fragilizados e perdem tempo contra governos sólidos. É simples assim.

Dos fatos que explicam o defenestramento de Dilma Rousseff, os principais foram estes:
— a desideologização do PT, que sua ala majoritária, com Lula à frente, promove e impulsiona desde a década de 1980, expurgando as tendências mais combativas; abrindo as portas do partido indiscriminadamente para todos os ambiciosos obcecados em subir na vida de qualquer maneira; e direcionando a atuação partidária, cada vez mais, para as batalhas eleitorais contra a direita, de preferência às lutas sociais contra o capitalismo;
— a política econômica catastrófica que Dilma adotou no seu primeiro governo, quando tentou exumar o nacional-desenvolvimentismo da década de 1950 (alavancar o crescimento da economia à base de investimentos estatais) e incubou uma terrível recessão;
—  a tentativa que ela fez de remediar a lambança no seu segundo mandato, entregando o comando da economia para o neoliberal Joaquim Levy, que, claro, acabou sendo abatido pelo fogo amigo dos petistas que discordavam de tal guinada de 180º (repetindo, aliás, o que acontecera no Governo João Goulart, mas Dilma parece ter cabulado as aulas de História...);
— o abandono dos jovens manifestantes de junho de 2013 à própria sorte, permitindo que fossem massacrados pelos governadores reacionários e judiciários estaduais, idem; e
— a insistência em travar até o fim uma luta que já estava perdida desde o dia 18 de abril de 2016, quando foi ultrapassada a barreira decisiva para o impeachment (a necessidade de aprovação da abertura do processo por parte de dois terços dos deputados federais), quando bem melhor teria sido renunciar de imediato e possibilitar um contra-ataque na linha das diretas-já, mediante o qual a esquerda, pelo menos, acumularia forças, ao invés de passar o tempo todo as perdendo na defensiva.

Tudo isso eu apontei quando ainda havia tempo hábil para o PT seguir outros caminhos, mas o Titanic petista preferiu continuar sempre rumando na direção do iceberg, até que o encontrou.

E nos ficou devendo não uma autocrítica flagelante (como seus dirigentes alegam, de má fé, para iludir os desinformados) mas uma autocrítica segundo a tradição da esquerda: a avaliação dos erros pessoais e coletivos que determinaram grandes derrotas, a definição de novas linhas de atuação que as evitem no futuro e a apuração das responsabilidades dos dirigentes que concorreram diretamente para os desastres. 

Ou seja, as autocríticas da esquerda objetivam extrair e aplicar as duras lições recebidas da História, não rasgar as vestes como os judeus fazem nas tragédias. 

E uma autocrítica de esquerda é fundamental para se virar a página do desprestígio que a péssima condução da política econômica sob Dilma e o progressivo abandono da moral revolucionária à medida que o PT aumentava seu poder acarretaram para toda a esquerda, praticamente imobilizando-a desde a consumação do impeachment, enquanto a direita deitava e rolava.

Caracterizar o impeachment como golpe sempre foi uma forma de o PT fugir do debate fundamental: como e por que se desmoralizou tanto a ponto de perder até as ruas, tornando-se presa fácil para a direita?  Pois só admitindo que houve erros — e foram enormes! E foram crassos! — é que poderá começar a acertar doravante e conseguir, ao poucos, reconquistar o apoio popular perdido.

A narrativa do golpe tem de continuar exatamente onde já estava: na lixeira da História. (Celso Lungaretti)

Um comentário:

Anônimo disse...

***
Você é mesmo muito corajoso, Celso.
Escreve um texto que desagrada a quem não tem o hábito de meditar e avaliar o que fez, para evitar os erros que foram cometidos, caso os identifique.
Hábito salutar não só na política, mas na vida.
***
Também deve ser critério para a avaliação moral de uma organização.
Verificar se...
Há uma rotina de avaliação constante do fazer e dos resultados obtidos?
Se há. Quais são os valores que definem os resultados como bons ou maus?
***
Valores.
***
Não é que os caras do perda total não sabiam exatamente o que faziam.
Nem que não se avaliassem constantemente. Não.
Estavam se sentido certos, pois estavam obtendo exatamente aquilo que os seus valores diziam ser bom.
***
Estes dias li uma homilia católica que tratava do Evangelho segundo São Marcos (Cap 7 vers. 1 a 13), a qual narra a voadora nos peito que Jesus deu nos fariseus, apontando a hipocrisia que reinava entre eles.
Triste fim teve o jovem galileu que dizia que "é pelo fruto que se conhece a árvore".
*

Related Posts with Thumbnails