quarta-feira, 2 de outubro de 2019

A ÉTICA É A ESTÉTICA DO FUTURO

Godard, Belmondo e Jean Seberg quando filmavam Acossado
Quem colocou esta frase em circulação foi o genial cineasta Jean-Luc Godard. 

Ao citá-la num de seus filmes dos anos 60, ele atribuiu a autoria a Lênin. Mas, dado aos chistes e ao non sense, Godard pode ter sido ele próprio o autor. 

Pouco importa. O fato é que sintetiza bem a visão de mundo da juventude mais idealista do século passado.

Em 1968 e anos seguintes, tivemos:
— a primavera de Paris e a de Praga; 
 o repúdio universal à intervenção dos EUA no Vietnã;
 a resistência às ditaduras em todos os quadrantes;
 movimentos os mais diversos em defesa da justiça social e dos direitos das minorias;
 bem como a revolução de costumes conhecida como contracultura

Ventos de mudança varreram o planeta. Foi um impulso generoso, solidário, irmanando os melhores seres humanos na busca de um futuro digno para a humanidade.

Houve, portanto, um tempo em que muitos acreditaram piamente na iminência de uma sociedade na qual os relacionamentos entre os seres humanos, de tão éticos e gratificantes, iriam se tornar a realização da estética no cotidiano. Não precisaríamos mais da arte para sonhar acordados com uma beleza inexistente na vida real. O paraíso seria agora.
"Ventos de mudança varreram o planeta"

Depois, claro, veio a reação. E as flores foram sendo, uma a uma, arrancadas, à medida que o capitalismo triunfante ia moldando o planeta à sua imagem e semelhança. 

Competitividade, ganância, desigualdade, parasitismo, guerras inúteis, agressões insensatas ao meio ambiente, consumismo exacerbado, condenação de vastos contingentes humanos ao desemprego crônico e à miséria aviltante, degradação do pensamento, da arte e dos padrões morais: o que veio nas décadas seguintes fez lembrar terra arrasada!

Carlos Heitor Cony, que busca (1) afoitamente outros privilégios (2) mas foi privilegiado com dotes de grande escritor, escreveu em 1974 um romance profético, Pilatos. Mostra como seria um mundo em que os homens não tivessem nenhuma motivação idealista, sentimento nobre ou limites morais. Todas as suas ações visariam apenas à satisfação de apetites e de necessidades primárias.

Era um inferno mais assustador que o descrito nas religiões. E tinha tudo a ver com aquele Brasil dos yuppies enriquecidos pelo milagre econômico e das massas anestesiadas pelo tricampeonato mundial de futebol. 

Os personagens desumanizados de Pilatos lembram – até demais! – os arautos dessa nova direita emergente no Brasil, que faz do rancor e do retrocesso sua bandeira. O que parecia exagero literário virou triste realidade.
"Nova direita que faz do rancor e do retrocesso sua bandeira"
Há indivíduos que conspiram dia e noite para arrastar o Brasil a uma nova ditadura.

Há indivíduos capazes de escrever entusiasticamente em defesa de filmes que fazem apologia da truculência e da tortura.

Há indivíduos que se regozijam quando cidadãos exemplares são flagrados em situações equívocas, como se a grandeza do rabino Henry Sobel pudesse ser empanada pela cleptomania (3e a do padre Júlio Lancelotti, por distúrbios da sexualidade (4).

Demonstram ódio homicida pelos rivais ideológicos, a ponto de se aproveitarem de suas debilidades humanas – quem não as tem? – para instigarem seu linchamento moral. Como Átila e Gengis Khan, só vêem os adversários como obstáculos a serem suprimidos.

Seus textos são um deserto de ideais. Não contêm nenhum sonho, nenhuma esperança, nada que sinalize um mundo melhor. Apenas a defesa encarniçada do status quo capitalista e o combate encarniçado aos que, bem ou mal, propõem alternativas.

São contra governos, partidos e pessoas. Abominam a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E não têm, sequer, a honestidade de seus congêneres da Espanha, adeptos de Franco, que assumiam abertamente os valores obscurantistas que professavam, ao urrarem Abaixo a inteligência, viva a morte! (5).
Por Celso Lungaretti
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1. Este artigo é de outubro de 2007, ainda em vida do Cony, que morreria no início de 2018. Foi postado no meu blog anterior, Celso Lungaretti — O Rebate. O atual, Náufrago da Utopia, nasceu em agosto de 2008. 
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2. Alusão ao fato de que Cony recebera tratamento vip da Comissão de Anistia, sendo passado na frente de pleiteantes que se inscreveram antes e recebendo uma pensão bem acima da que lhe deveria caber pelos próprios critérios daquele colegiado.
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3. O rabino que oficiou a missa de Vladimir Herzog roubara cinco gravatas numa loja de Palm Beach e as viúvas da ditadura faziam um alarido infernal em função dessa besteirinha, pretexto para desqualificarem um grande personagem da resistência à desumanidade.
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4. O padre, outro defensor célebre dos direitos humanos, denunciara um ex-interno da Febem que o extorquira durante três anos ameaçando acusá-lo de assédio sexual e este também foi um prato cheio para as baixarias da extrema-direita.
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5. Por último: por que republicar, 12 anos depois, este texto? Principalmente para deixar registrado que a tal da nova direita nunca teve nada de nova: vinha sendo forjada no espaço virtual desde a década passada pelos remanescentes da ditadura militar e pelos pupilos que eles vinham formando. 

Cansei de enfrentá-los no Orkut e na blogosfera, com destaque para a polêmica de 11 anos atrás (vide aqui) em que botei pra correr o guru farsante que faz a cabeça do clã Bolsonaro. 

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