demétrio magnoli
BOLSONARO E
O SISTEMA
Na linguagem da ultradireita, o sistema designa as barreiras postas pela democracia no caminho de candidatos a tiranos.
O que Carlos Bolsonaro pensa é irrelevante. Mas o que escreveu sobre a democracia não é, porque ele apenas verteu para seu estranho idioma, longinquamente aparentado com o português, as sentenças emanadas do cérebro ideológico da ultradireita brasileira.
A insurreição retórica antidemocrática proporciona o ganha-pão de Olavo de Carvalho, o bruxo da Virgínia, fonte exclusiva da cultura política do clã Bolsonaro. Nas frases claudicantes do 02, descortina-se a história da ascensão de Jair Bolsonaro ao Planalto e, à frente, o programa de governo que resta ao bolsonarismo.
A campanha popular pelo impeachment, em 2015, produziu uma cisão nas falanges da direita. Num certo ponto, Olavo de Carvalho denunciou o MBL, que o tinha na conta de sábio supremo, como traidor da causa.
O bruxo da Virgínia não se associaria ao impeachment parlamentar, a mudança dentro da ordem, preconizado pelos garotos liberais.
Da sua toca no mato, protegido pela fronteira, o farsante profissional clamava por um levante do povo e dos militares contra o sistema. A desavença original segue ativa, funcionando como um divisor de águas na base ideológica do governo.
O sistema é como chamávamos a ditadura militar nos tempos em que era perigoso dar os nomes certos às coisas.
Na linguagem da ultradireita atual, o sistema designa as barreiras institucionais postas pela democracia no caminho de candidatos a tiranos: a Constituição, o Congresso, o Judiciário, a imprensa. O charlatão que pauta o 02 (e o 01, o 03 e o 00) prega a supressão dessas barreiras, a fim de limpar a trilha das “transformações que o Brasil quer”.
Deixo de lado a questão periférica de saber se o bruxo da Virgínia acredita no realismo de seus balidos pela marcha sobre Brasília. Aqui, só importa que seus seguidores ignorantes creem cegamente neles, um pressuposto da relação entre discípulos e sumo sacerdote.
Do ponto de vista de Olavo de Carvalho, a tese de que o sistema emascula o governo Bolsonaro (“os que sempre nos dominaram continuam nos dominando de jeitos diferentes!”) serve como álibi para livrá-lo da responsabilidade intelectual pelo fracasso do experimento em curso. Mas, do ponto de vista do núcleo interno do bolsonarismo, ela é um toque de reunir, um chamado à ação.
Para ser fiel à ideologia da ultradireita, o presidente deve fazer de seu governo a mola de uma revolução permanente. A aliança com Sergio Moro e o Partido dos Procuradores cumpriria essa finalidade, traduzindo-a como cruzada de caça aos corruptos.
Mas Bolsonaro descobriu que os aliados têm, na figura de Moro, sua própria candidatura para 2022 —e, em nome dela, poderiam transformá-lo na próxima vítima da caçada. Sua reação, que se organiza sob o dístico minha família acima de todos e mira o controle do Ministério Público, da Polícia Federal, da Receita e do Coaf, provocou a ruptura do pacto.
Hoje, a fim de coesionar o que resta de uma base cada vez mais estreita, o bolsonarismo precisa reciclar o conteúdo da revolução permanente. O tuíte veiculado pelo 02 aponta o rumo. O termo sistema, utilizado abundantemente pelo ministro do Isolamento Ernesto Araújo num discurso recente, é elástico o bastante para abranger quase tudo.
Nele, cabem as elites globalistas, o climatismo, Emmanuel Macron, as leis que protegem as liberdades, um juiz inconveniente do Supremo, o procurador ou policial que pergunta sobre um certo Queiroz, o jornalista canalha que não se vendeu, o general que preza a ordem legal ou indaga sobre o plano governamental para a Amazônia. São alvos suficientes para aplacar a fome dos extremistas.
Bolsonaro inveja Nicolás Maduro, que derrubou o sistema. Mas, a marcha sobre Brasília não está ao alcance de um presidente impopular ou de seus filhos fanfarrões.
No lugar dela teremos incessantes insurreições menores: o caos a conta-gotas. (por Demétrio Magnoli)
Nenhum comentário:
Postar um comentário