domingo, 9 de dezembro de 2018

HÁ MEIO SÉCULO, OS ESCRÚPULOS FORAM MANDADOS ÀS FAVAS E AS PORTAS DO INFERNO SE ABRIRAM NO BRASIL

"E você tendo ido,
não pode voltar,
quando sai do azul
e entra nas trevas"
(Neil Young,
Hey Hey My My)
Na próxima 5ª feira se terá passado meio século desde que o Brasil saiu não do azul, mas de um cinza já bem escuro, para entrar nas trevas absolutas do Ato Institucional nº 5.

O 13 de dezembro de 1968 caiu numa 6ª feira –a mais funesta da História brasileira. Foi quando 17 sinistros personagens, com uma simples canetada, deram sinal verde para torturas, assassinatos, estupros, ocultação de cadáveres e todo o festival de horrores dos anos subsequentes.

Eram eles o ditador Costa e Silva e 16 de seus ministros: Albuquerque Lima (Interior); Augusto Rademaker (Marinha); Carlos Simas (Comunicações); Costa Cavalcanti (Minas e Energia); Delfim Netto (Fazenda); Gama e Silva (Justiça); Hélio Beltrão (Planejamento); Ivo Arzua (Agricultura); Jarbas Passarinho (Trabalho); Leonel Miranda (Saúde); Lyra Tavares (Exército); Macedo Soares (Indústria e Comércio); Magalhães Pinto (Relações Exteriores); Mário Andreazza (Transportes); Souza e Mello (Aeronáutica); e Tarso Dutra (Educação).  

Só um permanece vivo até hoje, Delfim Netto, que está com 90 anos e não se arrepende da autoria de uma assinatura da qual tanto sangue jorrou: continua afirmando que, apresentando-se as mesmas circunstâncias, voltaria a proceder da mesmíssima maneira.

O 16º a falecer foi (em junho de 2016) o igualmente empedernido Jarbas Passarinho, de origem militar, que  ao proferir seu voto, disse a frase mais emblemática daquela infame reunião ministerial:
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"Às favas, sr. presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência".
.
Ele continuou, pelas décadas adentro, enturmado com as aves de mau agouro, sempre defendendo o regime de exceção ao qual serviu nas equipes ministeriais de Costa e Silva, Médici e Figueiredo.

Um mês depois chegou a vez de Rondon Pacheco, cuja assinatura não consta do documento, embora chefiasse o Gabinete Civil. Talvez a lacuna se deva a haver sido um personagem reticente naquele momento, tendo inclusive tentado fixar um prazo para a vigência do AI-5: um ano apenas. 

Também se atribui a ele e ao ministro da Justiça Gama e Silva o mérito de, numa reunião prévia, terem excluído do documento alguns pontos mais duros, como o fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal.  
Outra voz dissonante foi a do vice-presidente Pedro Aleixo, que inclusive empenhou-se adiante em restabelecer a legalidade. Chegou a convencer Costa e Silva, mas este morreu antes de concretizar o intento (coincidência?).

O  golpe dentro do golpe, que levou ao paroxismo o fechamento ditatorial do País, foi o lance decisivo da disputa interna entre a linha dura militar (que queria radicalizar o arbítrio) e os conspiradores originais (oficiais veteranos da participação brasileira na 2ª Guerra Mundial).

Os últimos, encabeçados por Castello Branco, pretendiam usurpar o poder por pouco tempo. Falavam numa intervenção cirúrgica, durante a qual imporiam medidas que modernizassem o Estado e enfraquecessem a esquerda (prisões, perseguições, cassações, extinção de entidades legais, etc.). 

Aprenderam, contudo, que implantar uma ditadura é bem mais fácil que dar-lhe fim.

As duas posições competiram acirradamente pela hegemonia na caserna ao longo de 1968, mas o crescimento dos movimentos contestatórios fez a balança pender para  o lado dos ferrabrases. 

Estes iam ao encontro da cultura de intolerância que grassava nos quartéis, pois se propunham a dotar o regime de meios para reagir com maior contundência às manifestações de rua e ao desafio das organizações armadas, passando por cima dos direitos humanos e das garantias constitucionais.

Pesaram também os interesses mesquinhos dos oficiais das três Armas, seduzidos pelas perspectivas que o prolongamento do regime de exceção e a ampliação dos poderes ditatoriais abriam para seu enriquecimento pessoal:
  • os da ativa, como gestores de um setor estatal que estava sendo cada vez mais inflado, ou como beneficiários de suas boquinhas; e
  • os da reserva como facilitadores dos favores oficiais (quase todos os grandes grupos privados contrataram militares reformados para integrarem seus conselhos de administração, como forma de terem seus interesses contemplados nos altos escalões governamentais).
O pretexto para a nova virada de mesa foi um discurso exaltado do deputado Márcio Moreira Alves numa sessão esvaziada (o chamado pequeno expediente) da Câmara Federal, no início de setembro de 1968.
Discurso errado, hora errada
Tratava-se de uma lengalenga sem verdadeira importância (incluía até uma sugestão às moças, de que não namorassem alunos das academias militares –vide aqui), proferida apenas para constar dos anais e poder ser exibida depois aos eleitores, quando ele lhes fosse pedir votos no pleito seguinte.

Mas, um jornalista favorável ao arbítrio vislumbrou a oportunidade de uma provocação e trombeteou-a; em seguida, os partidários do enrijecimento a divulgaram amplamente, mimeografada, entre os fardados, insuflando a indignação.

As Forças Armadas se declararam atingidas e o governo pediu ao Congresso Nacional a abertura de um processo visando à cassação de Moreira Alves. 

Os parlamentares, depois de em tantas ocasiões, tão vergonhosamente, se prostrarem aos ultimatos da caserna, daquela vez rechaçaram o pedido, temendo que outras cabeças fossem exigidas na sequência e a caça às bruxas acabasse extinguindo o mandato de muitos deles. 

Pateticamente, encerraram a sessão cantando o Hino Nacional, sem perceberem que tinham é escancarado as portas do inferno.

A resposta da ditadura foi imediata e a mais tirânica possível: colocou os Legislativos federal e estaduais em recesso e impôs à Nação, na marra, novas e terríveis regras do jogo.
Revista tida como outro pivô do AI-5

O presidente da República (escolhido por um Congresso Nacional expurgado e intimidado) passou a ter plenos poderes para cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto e julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas totalitárias.

Principal ferramenta do terrorismo de estado, o AI-5 só seria atirado na lixeira dez anos depois. Nesse meio tempo, centenas de resistentes foram executados, dezenas de milhares torturados, mais de uma centena de parlamentares cassados, um sem-número de funcionários públicos no olho da rua, a arte amordaçada (mais de 500 filmes, 450 peças teatrais, 200 livros e umas 500 canções sofreram os rigores da censura), etc.

Quando os gorilas saíram do armário, o Brasil entrou no período mais bestial e vergonhoso de sua História.
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UM DEPOIMENTO PESSOAL – Para jovens estudantes que, como eu, ingressaram na luta a partir do novo ascenso do movimento de massas,  aquele agourento 13 de dezembro de 1968 marcou o fim da aventura e o início da tragédia.

Passáramos o melhor ano de nossas vidas descobrindo a luta e descobrindo-nos na luta. Aí veio aquele pacote de medidas draconianas ao extremo, cujas implicações captamos de imediato: haviam declarado guerra contra nós e os riscos dali em diante seriam imensos. 

Mesmo assim, diante da alternativa desistir x perseverar, fizemos a opção digna... que se revelaria das mais sofridas.

Então, o AI-5 foi o divisor de águas entre o 1968 exuberante e o 1969 soturno.

Entre o enfrentamento a céu aberto e o martírio nos porões.

Entre a luta travada ao lado das massas despertadas e a luta que travamos sozinhos em nome das massas amedrontadas.

Meu avô morreu quando meu pai tinha 11 anos. Como era o primogênito, minha avó fez com que começasse imediatamente a trabalhar  numa fábrica escura, barulhenta e empoeirada, burlando a legislação que exigia idade mínima de 14 anos.

Passou o resto da vida lamentando a responsabilidade que desabou cedo demais sobre seus ombros. Num dia, estava despreocupadamente jogando bola no campinho ao lado de sua casa. No outro, esfalfando-se oito horas seguidas para colocar o pão na mesa familiar.

O AI-5 teve o mesmo efeito sobre mim. Até então, a militância era puro deleite. De um momento para outro, tornou-se um pesadelo que me deixou em frangalhos, além de tragar alguns dos meus melhores amigos e tantos companheiros estimados.

Parafraseando a bela canção de Neil Young, foi a saída do azul e entrada nas trevas. (por Celso Lungaretti)

4 comentários:

SF disse...

***
Não é só aqui que os retardados estão no poder.

https://www.thesun.co.uk/news/7901575/man-hit-wife-part-of-his-culture-kirklees-brighouse/

Na Inglaterra politicamente correta respeitam-se as culturas.
Não aprenderam o paradoxo de Pope até hoje.
E o engraçado é que a esquerda apoia o politicamente correto.

Chore.

celsolungaretti disse...

Peço desculpas ao companheiro que postou um comentário sobre se o vice Pedro Aleixo teria sido reticente ao AI-5 quando ele foi discutido. Infelizmente, deletei o comentário por equívoco e não consegui restabelecê-lo, lamento a lambança.

Estou refazendo o parágrafo. Não consegui encontrar mais a fonte em que me baseei para colocar todo o ministério como responsável pelo AI-5, MAS OS SIGNATÁRIOS FORAM SÓ 17.

Se o autor do comentário fizer a gentileza de postá-lo de novo, agradecerei.

Henrique Nascimento disse...

Celso,

Meu comentário se baseou na afirmação de alguns autores sobre a figura do vice-presidente Pedro Aleixo. Nessa fatídica reunião de 13 de dezembro de 1968 ele foi o único voto contrário à promulgação do AI-5, proferindo um discurso juridicamente muito contundente para os demais presentes. Portanto, achei por bem destacar aqui esse fato, pois se realmente é verdadeira, vale como registro para fazer justiça a esse personagem. Quando o Costa e Silva adoeceu no ano seguinte, os milicos barraram a ascensão do Pedro Aleixo à presidência. Além disso, ele tinha um irmão (se não me engano se chamava Alberto Aleixo) que era filiado ao PCB e trabalhava no jornal Voz Operária. Foi preso e faleceu em 1975, no mesmo ano do irmão Pedro.

Mencionei também o fato do Ernesto Geisel não estar presente nessa reunião e sim seu irmão Orlando Geisel, então chefe do estado maior da forças armadas e futuro ministro do exército de Médici.

celsolungaretti disse...

Valeu, Henrique!

Apesar da trapalhada ao aprovar seu comentário, eu lembrava dos pontos principais e fui pesquisar.

Percebi que tinha me baseado em algum relato maquilado da ditadura sobre os participantes da reunião (incluindo até os comandantes das 3 Armas), provavelmente a versão divulgada na época, para dar impressão de que havia unanimidade a respeito do assunto.

Não encontrei a relação de quem efetivamente esteve na reunião, apenas as 17 assinaturas dos que concordaram com a promulgação do ato.

Dá para supormos que o Rondon Pacheco e o Pedro Aleixo tenham participado da reunião e optado por não botar suas assinaturas naquela imundície.

Enfim, para as pretensões do meu artigo, creio que agora a redação está consistente. Os detalhes que vc cita são interessantes, mas meu objetivo era dar uma visão geral, jornalística, da assinatura do AI-5, não esgotar o episódio, como um historiador faria.

Abs. e grato pelas observações!

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