Sempre defendo a tese de que quem é anticapitalista não deve ocupar cargos eletivos na esfera dos poderes executivo e legislativo.
O mandato não é profissão, pois se trata de uma função política com objetivos previa e negativamente definidos na Constituição.
O político não é um trabalhador profissional (ainda que exerça um trabalho remunerado), mas alguém que tem uma função estratégica dentro da estrutura do poder institucional capitalista: como tal, está empenhado na manutenção e indução ao desenvolvimento dessa mesma ordem.
Quando exerci função pública econômico-financeira, compreendi a um custo muito alto, por experiência própria, a absoluta incompatibilidade entre um norte referencial emancipador (e intrinsecamente anticapitalista) e o múnus político-econômico-administrativo do Estado, ainda que a experiência tenha se dado numa das menores instâncias da estrutura do poder estatal, o município de Fortaleza.
Muitos políticos de esquerda afirmam, contudo, que a recusa à participação nos aparelhos de estado do capital corresponde ao alheamento à luta política e a uma deserção ao enfrentamento eleitoral; segundo eles, estaríamos deixando o povo à mercê dos políticos identificados com o mainstream do capital e dos interesses que eles representam.
"apego fisiológico às benesses e mimos do poder burguês" |
Outros defendem a participação como forma de defesa das franquias democráticas do estado de direito (mesmo que seja um direito burguês) e freio da volúpia ditatorial de governantes identificados com tudo que é retrocesso civilizatório.
Encaro tal posicionamento como equivocado, mesmo que possa ser bem intencionado. Assim me posiciono em função da análise em profundidade da essência e consequências das duas funções públicas estatais pela esquerda.
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A INCONGRUENTE FUNÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA ESTATAL DA ESQUERDA – A primeira e primordial função de um chefe do Executivo é manter equilibradas as contas públicas, pois o contrário implica a impossibilidade de investimentos em infraestrutura e atendimento das demandas sociais, bem como a perda da credibilidade perante credores de todas as espécies (folha de pagamento do funcionalismo público, pensões previdenciárias, dívidas bancárias, fornecedores de mercadorias e serviços próprios à administração pública, etc.).
O inadimplemento das obrigações estatais traz consequências graves para o normalidade administrativa, como está a ocorrer atualmente em muitos estados e municípios, mesmo contra a vontade dos governantes (a grande maioria deles derrotados nas últimas eleições).
Como a vida mercantil no atual estágio vive as agruras da perda de sua seiva vital em razão da precarização da reprodução da massa global de valor (dinheiro e mercadorias), a resultante é que cada vez mais se observa uma diminuição da força financeira do Estado, o qual se vê impossibilitado de arrancar impostos de uma população cada vez mais exaurida.
"o best seller de Thomas Piketty está cheio de furos" |
Há quem diga que a saída seria uma maior tributação dos mais ricos, que praticamente não pagam impostos, mal tal solução é inviável sob o lógica do capital.
O francês Thomas Piketty, em O capital no século XXI, defende tal taxação progressiva. Seu best seller, contudo, está cheio de furos, porque ele não leva em conta a dinâmica autotélica da reprodução do capital, sem a qual este não vive.
A questão, portanto, não se trata de dar um jeito no capital, para torná-lo justo ou bonzinho, mas de superá-lo; e não por meio da cobrança de impostos que isto pode ser realizado.
O capital é insaciável: quanto mais o capital industrial, comercial, agrícola e financeiro se concentra, mais ele precisa se concentrar para adquirir força de reinvestimento.
Tal necessidade de reinvestir é ditada pela queda tendencial da taxa de lucro (teoria marxiana que cada vez mais se comprova), a qual implica uma crescente necessidade de mais capital fixo (em máquinas e, hoje, na robotização pela alta tecnologia da microeletrônica e de outras descobertas científicas), ao mesmo tempo em que torna menos necessário o capital variável (salários).
Consequentemente, taxar as riquezas abstratas dos mais ricos em proporção semelhante à carga tributária incidente sobre os mais pobres se torna inviável dentro da lógica capitalista
"países do socialismo real acabaram aderindo à economia liberal" |
Motivo: isso paralisaria a produção mercantil e levaria o capitalismo mais rapidamente ao colapso. Portanto, jamais as instituições burguesas, as que fazem o controle monetário em especial, aprovariam tais medidas.
E, se isto ocorresse, o Estado passaria a ser o novo concentrador de renda, tornando-se um produtor de mercadorias sem capacidade de distribuição da riqueza abstrata acumulada (tempo de trabalho nela coagulado) e pelos mesmos motivos acima referidos.
Isto sucedeu nos países que adotaram o chamado socialismo real, estatizando os meios de produção de mercadorias sem aboli-las; acabaram aderindo à economia de mercado liberal.
Na sociedade do capital, quem tem força política é sempre o próprio capital. A isto se somam, de um lado, a exigência lógica de sua auto-reprodução ad infinitum; e o poder político é exercido do outro lado, e sempre pela manipulação eleitoral (os pleitos nada mais são do que uma eterna disputa de interesses econômicos, camuflada em exercício democrático da livre escolha popular pelo voto).
Assim, os muitos exemplos históricos atestam que a esquerda no poder acaba invariavelmente subsumindo-se ao império do capital e da sua estrutura do poder institucional, a qual é voltada primordialmente para a manutenção e indução ao desenvolvimento do próprio capital (é sintomático que todos os candidatos da esquerda na última eleição defendessem o desenvolvimento econômico).
Allende (centro): "sacrificou a vida em nome da coerência" |
Um governante de esquerda sensível, brioso e digno, mas que governe sob a égide do capital, termina sempre morto (como o chileno Salvador Allende, que sacrificou a vida para manter-se coerente com seus princípios socialistas) ou defenestrado pelo próprio sistema, a partir da insatisfação popular inevitável.
Até a manutenção ditatorial no governo pela força militar (caso da Venezuela) tem prazo de validade.
Até a manutenção ditatorial no governo pela força militar (caso da Venezuela) tem prazo de validade.
Pior ainda é quando a função pública exercida pela esquerda se confunde com apego fisiológico às benesses e mimos do poder burguês (como ocorreu com o PT e tantos outros que, mediante o aparelhamento das instituições públicas, passaram a desfrutar dos mesmos privilégios do inimigo).
Quando assim agem, além do desgaste popular inevitável no longo prazo, expõem-se à desmoralização pública. Praticam atos econômicos e políticos ignóbeis com vistas à reeleição ou mesmo ao enriquecimento privado, abdicando de qualquer resquício de dignidade e contrapondo-se, lato sensu, à defesa dos interesses dos explorados.
Por Dalton Rosado |
O envolvimento promíscuo com o poder executivo burguês tem sido historicamente danoso para a esquerda, que sacrifica sua credibilidade em troca de nada, pois acaba sempre sendo dele expelida de forma trágica ou de maneira humilhante.
(continua neste post)
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