domingo, 5 de agosto de 2018

O APOLLO NATALI QUE EU CONHECI – 3

(continuação deste post)
Enquanto o Apollo era vivo, nunca me ocorreu ter de explicar a quem não o conhecia por que, afinal, se tratava de uma pessoa tão diferente, exemplar de uma espécie quase extinta nos tristes tempos presentes.

Fui, infelizmente, obrigado a fazê-lo nos últimos dias. E o que me veio à mente foi a lembrança de uma cena emocionante de Irmão Sol, irmã Lua (d. Franco Zeffirelli, 1972), quando o papa Inocêncio III muda a atitude da Igreja com relação a São Francisco de Assis, acolhendo-o e afirmando: "Em nossa obsessão com o pecado original, às vezes nos esquecemos da inocência original".

Não que se trate de um grande filme, longe disto. Mas é um trecho que impacta. Ademais, o despojamento e a frugalidade franciscana eram características marcantes do Apollo, um kardecista que talvez nem se desse conta disto, pois jamais me disse uma palavra sequer sobre os santos católicos.

Outra afinidade: sua visão religiosa era bela e pura, como se constata na crônica (vide aqui) em que comparou nosso sistema solar a uma árvore de Natal e se referiu ao Cristo como "pixotinho judeu ora aniversariante".

Foi um dos melhores cronistas que algum dia li. Não fazia má figura como repórter, noticiarista, redator, editorialista e editor, mas nas crônicas se superava. Percebia-se nele um homem que sempre convivera com as pessoas simples, conhecia profundamente a realidade das ruas, mas a tudo observava com olhar compassivo, solidário à dor dos humildes e sempre disposto a ajudá-los no limite de suas forças e recursos.

Por suas crônicas desfilam personagens inesquecíveis:
  • o intelectual de rua Cláudio Bongiovani (vide aqui e na foto ao lado), químico formado, que perdeu a  família num acidente automobilístico e passou a vagar sem rumo, até se tornar o personagem exótico que hoje vende revistas de uma entidade de ação social e consegue ter pelo menos um teto modesto para chamar de seu;
  • sua avó materna (vide aqui), que respondia com amor cristão às infidelidades do marido, a ponto de não hostilizar a amante que este ousou um dia trazer para pernoitar em casa ("A minha santa vovó do mato era de outro planeta, embora fosse mulher, mulher, mulher, mulher, meu Deus do céu!  O que outra mulher teria feito no lugar dela? O que todas as outras mulheres fariam no lugar dela?");
  • o bombardeiro Francisco Romero (vide aqui), que teria deixado de alterar o curso da nossa História ao desarmar a bomba por ele próprio plantada no vagão do trem em que viajaria um ditador, sem que ninguém ficasse sabendo do episódio afora os companheiros de quase-atentado;
  • a Júlia Sapeca (vide aqui), nome que emprestou de uma música da época para renomear a menina inspiradora de sua primeira e frustrada paixão, pois, apesar das mágoas de outrora, continuou sendo cavalheiro pela vida adentro e seria "grosseiro" identificar claramente quem se tornara mãe e avó, com "cabelos branquinhos, branquinhos", que ele reviu um dia "subindo uma ladeira, bem devagar, se segurando nas paredes". 
E tantos outros, reais, inventados e até meio a meio, como as crônicas do além em que nos coloca em contato com os espíritos de Tancredo Neves (vide aqui), Getúlio Vargas e Carlos Lacerda (ambos aqui).
(continua neste post) 
A cena culminante do filme, em que o papa afinal compreende Francisco

2 comentários:

Claro disse...

Caro Celso.

Lamento muito sobre Apollo.

Interessante que aprendi a gostar de Apollo devido às suas reiteradas homenagens a ele e através dos artigos dele que você compartilhava aqui no Náufrago.

Vida que segue enfraquecida com menos um combatente.

Abraço.
Claro

celsolungaretti disse...

Pessoas humildes e bondosas como ele são raras. Fazem uma falta imensa quando se vão.

O consolo é que o Apollo, em meio à precariedade na qual passava sua existência, era quase sempre feliz. Ter pouca grana nunca o impediu de estar de bem com a vida.

Foi um dos nossos pontos comuns. Eu também preciso de muito pouco para mim.

A diferença é que ele nunca casou, seus casos eram com mulheres separadas ou viúvas que o recebiam na casa delas.

Eu tive três uniões permanentes e cada uma resultou numa filha. Ser pai me completou, mas implicou a obrigação de manter um lar convencional. Foi torturante para mim. Alugava minha força de trabalho para finalidades nocivas ou inúteis e só me sentia eu mesmo quando readquiria o controle do meu tempo.

Feliz mesmo eu era nas comunidades alternativas, onde subsistíamos da forma mais frugal e despojada possível, mas tínhamos muitos sonhos, esperanças e amor.

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