terça-feira, 27 de dezembro de 2016

APOLLO NATALI: "INTELECTUAL DE RUA".

Foragido das páginas dos livros da Festa Literária Internacional de Paraty, Napoleão Bonaparte caminha pelas ruas de pedras da velha cidade do litoral fluminense.

Em terras brasileiras, entre o mar e as montanhas, o general francês está a remoer palavras do sábio do Eclesiastes, seu grato consolo no exílio de Santa Helena.

Cabeça baixa, mão esquerda na barriga. A direita à frente, ergue o texto bíblico:

– Tudo tem seu tempo. Tempo de guerra e tempo de paz. Houve uma pequena cidade em que havia poucos homens. Veio um grande rei, sitiou-a e levantou contra ela  grandes baluartes. Encontrou-se nela um homem pobre, porém sábio, que a livrou com sua sabedoria. Então, melhor a sabedoria do que a força.

Hoje, pisando o chão de Paraty, Napoleão acredita. Levas de fugitivos das páginas dos livros acompanham em seu passeio o guerreiro derrotado. Desgarrados das prateleiras, ganham as ruas mil corações partidos de desventuradas histórias, heróis, vilões, poetas, cada qual com sua dor.

Beirais, gradis coloniais, o velho casario da cidadezinha histórica que completará três séculos e meio de existência neste ano de 2017, antigo refúgio de piratas, todos espiam a passeata dos fantasmas saídos dos livros que um dia vestiram carne. Agora eles são apenas histórias e vagueiam no festival internacional da imaginação.
Nessa atmosfera de cultura, sob os holofotes da imprensa de todo o mundo, entre casas antigas, sol forte, move-se, de carne e osso, o paulistano Cláudio. 

De imperador, só o nome.  Cláudio Bongiovani perambula pelas esquinas e vielas de Paraty a vender a revista Ocas, iniciais da Organização Civil de Ação Social, com sede no bairro do Brás, em São Paulo. Custa 3 reais. Um real para Ocas, 2 reais para ele. Ótimo. É dom de Deus que possa o homem comer, beber e desfrutar o bem de todo o seu trabalho, alegra-se o rei sábio da Bíblia.

É rotina do imperador Cláudio vender a Ocas em um ponto fixo na calçada movimentada do Museu de Arte de São Paulo, na avenida Paulista. Desta vez, esperançoso, se pôs a plantar sua revista de cultura também no meio intelectual da Flip. Certo, imperador. Semeia pela manhã a tua semente e à tarde não repouses a tua mão, porque não sabes qual prosperará, se esta, se aquela, ou se ambas igualmente, adverte o Eclesiastes.

Em suas escapadas ele vagueia até pela Europa, onde conhece algumas das 20 revistas semelhantes à Ocas, que dão oportunidade de mudança na vida das pessoas em situação de rua. A interação decorrente da compra e venda dessas publicações permite aos vendedores estabelecer contatos, ganhar algum dinheiro e dar novos passos de reintegração.
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ACHEI!
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Na rede de uma dúzia de computadores da Ocas em que busca inclusão digital, Cláudio achou mais uma feira literária na qual vai poder vender suas revistas. É em Bauru. Vai lá correndo fazer seus negócios.

Vendeu um monte, em Paraty. Ganhou bom dinheiro. Nada como trabalhar e poder pagar sua própria roupa, comida, tênis, agasalho. Hoje pode até pagar um pequeno aluguel, numa das 300 caixas de  fósforo dos 24 andares do edifício Esplanada, na Várzea do Glicério.

No chão do seu sala-e-quarto, na colmeia de favos todos iguais do prédio, uma esteira, uma escrivaninha velha, uma cadeira. Não mais o disputar lugar na calçada, no viaduto, na laje. Não mais os sobressaltos da chuva, do frio, da fome, do caminhar a esmo. Grudado na porta do lar-doce-lar, o letreiro de papel conta sua história em três palavras: sobrevivente da rua. Maravilha um teto, uma torneira, um chuveiro quente, uma esteira.

Livro de cabeceira, Um, de Richard Bach. Trata de uma viagem de alguém para dentro de si mesmo, 10 anos passados e 50 que virão. A mensagem: “Não há problemas que não lhe tragam nas mãos um presente”. Bach é autor esotérico de Fernão Capelo Gaivota, Ilusões, A ponte para o sempre.

Nos desfiles da imaginação de suas feiras culturais, tempo de os grandes vultos dos paraísos perdidos e das divinas e humanas comédias se desgarrar dos livros para ganhar as ruas,  Cláudio se entristece ao ver a realidade negar o que a imaginação promete. 

Onde estão os heróis,  os poetas, os guerreiros, os gênios, os santos de toda essa literatura, capazes de apagar a lembrança do automóvel, uma bola de fogo a se despedaçar contra o caminhão na frustrada ultrapassagem de uma carreta, dizimando sua família? Carbonizados Yuri, 3 anos; Yago, 5; sua mulher Maria, sobrinho, cunhado, sogra. 
Voltavam da feira do milho em Catanduva. No dia do adeus, caixões fechados. Mudo, acompanha o despejo nas covas dos restos mortais dos seus tesouros. Vira as costas, sai a andar sem direção, horas e horas, dias inteiros, semanas, meses, anos. Desde o ano de Nosso Senhor de 2001. E olha o tamanho deste mundo.

A vida precisa ser vivida. Perambula em círculos por São Paulo. Sol, chuva, vento, calor, frio, fome, solidão. Entre a floresta de torres de concreto a alcançar o céu da terceira maior cidade do mundo, vence a Paulista, sobe e desce a Consolação, a Brigadeiro, palmilha a comprida São João, habita praças, cruzamentos. 

O tempo todo zonzo, nas esquinas de gente trombando. Finda a manhã, demora a tarde, pede um dinheiro qualquer para qualquer um, compra duas, três doses de cachaça, bebe num trago, apaga.

No outro dia acorda sem noção, sem rumo, não para em lugar nenhum, não tem condição de ficar parado em lugar nenhum. É um vagante. Enraizou-se por um pouco num lugar só, num momento qualquer, naquele viaduto atrás do Masp. Viaduto São Carlos do Pinhal. É onde tem mais tempo de localização numa só calçada. Mas esteve, sensação de torpor, em lugares por aí que nem sabe onde foi. Sabe que no outro dia é o acordar sem norte.

– Você não tem nada, não tem vida, não tem ideia, não tem suporte, você não tem nada, então você anda. Quando o cara não tem nada, anda, tanto faz ir para frente como para trás, é a mesma coisa, é andar.

Quando se aproxima de alguma pessoa, não sente que é amiga. Raro alguém sem ar de tentar se proteger, evitar. Sempre vê as pessoas com medo.  É uma auto-exclusão.

– É nessa hora que o cara está excluído dele mesmo, que tem medo das outras pessoas.

Chegar a esse ponto, ter medo das pessoas. Tanto que hoje eu falo de alma cheia que esse projeto da Ocas, a grande alavanca desse projeto, está justamente aí, colocar as pessoas que são olhadas como um nada bem de frente às pessoas a quem a revista é oferecida. Esta é a melhor parte do projeto. 

O financeiro ajuda, o psicológico é sensacional, mas a estrutura que o projeto dá para que o cara, que é tido como um nada, chegue diante das pessoas e sinta a vida e a dignidade oferecendo um produto cultural, isto é a inserção na sociedade do cara. Reinserir o sujeito na vida.

Fim de semana, coração de Cláudio dispara. A cor volta ao seu rosto pálido. A expressão de espanto, sempre a marcar o morador de rua, agora é colorida. Cláudio vai ver a filha. Emoção maior, um abraço, um papo com sua Raiza, de 16 anos. A vida está de volta. A menina mora e cresce em estatura e sabedoria em Anápolis, com um tio. Quer fazer Física. Faz Inglês. Estar com ela. Olhar nos olhos de seu bebê. Isto é aquecer o coração.

Até agora não surgiu outra mulher que pudesse refazer sua vida, ter um relacionamento seguro. Não apareceu essa pessoa. Interesse por alguém tem acontecido, superficial. Ainda tem uma marca muito grande. Foram 15 anos de casamento. Tem o vazio da grande perda, a dor a acompanhá-lo até o túmulo.
– Ter relações com as pessoas e o fato de ser reconhecido em alguns lugares que eu vou, isto também me anima. As palavras que as pessoas me falam também ajudam muito. É aí que aquece o coração, o fato de você, na situação complicada de tristeza, ver alguém, mesmo sem compartilhar a sua dor, te impulsionar a sair dela, te animar. 

Dialogar para ressuscitar, lição de humanidade que a vida passa para Cláudio.

– Fiquem sabendo, qualquer pessoa só não é moradora de rua apenas por um triz.

Sobre essa dor, Cláudio, o que fazer?

– Acredito que essa é que tem de ser a expurgação. Tenho que expurgar essa dor aí. A luta principal de tudo isso é o fato de a gente acreditar que é capaz. Em qualquer situação a gente sempre é capaz. O difícil mesmo, o peso, é a dor da perda. É que a gente não tem o preparo para ficar sem. 

– A gente não está preparado para perder nada. Esta recuperação tem que ser feita na base do paulatino, do tranqüilo, com serenidade, confiança, acreditando sempre na própria capacidade, pois se a gente não fosse capaz acho que não estaria aqui. Então, se foi dada essa missão, eu sei que vou ter força para cumprir. Fere? Fere, dói, machuca, tortura.

Cláudio apaga a luz em seu favo. Encolhe-se na esteira. Noite fria, rajadas de chuva espancam a janela. De costas para o seu conforto, o pensamento sai a andar. Retoma a vida de fome e medo, na escuridão gelada das noites.

Num instante, o pensamento de Cláudio, papai de Yuri e Yago,  paixão de Maria, chega a Catanduva. No cemitério sem lua, longo tempo imóvel diante da sepultura.

Como no dia do enterro, outra vez o ímpeto de tirar mulher e filhos debaixo da terra. Nunca mais voltou para a sua casa, em Minas. Saudosa casa, em Ituiutaba, projetada por sua Maria, a arquiteta, fechada até hoje. 

O peito apertado, em imaginação, anda sem rumo pela cidade, alcança o centro velho, espia cada canto da rodoviária, também projetada por ela. De sua esteira aspira o ar adocicado das noites da cidade mineira, sempre abarrotadas de estrelas.

A mesma mão encolhida sobre a esteira em São Paulo gira a fechadura da casa em Ituiutaba. Mal respira.  De volta ao lar vazio. Na sala, nas poltronas, em tudo, quanta poeira! Passos vagarosos, alcança a cozinha. Louça por lavar. Faz que acende o fogão para ferver o leite. Na copa, a algazarra.Todos juntos, para o café. Maria, cabeça baixa, ri, equilibra a xícara. No quintal, as crianças brincam nas árvores. Jaboticaba, goiaba, limão.

Nas tardes quentes, carinhas espertas na janela a esperá-lo depois do serviço.Roupas pelo chão no banheiro. No quarto, os vestidos, com o perfume dela. Escova de cabelo, batom. A cama. Colcha desarrumada.

No baú rústico, o certificado de conclusão do seu curso de Química da Universidade Federal de Minas Gerais. Não volta lá para buscar o diploma. Não volta.

Madrugada. Cláudio sai do seu novo lar, no Glicério, para ir à Universidade de São Paulo. Vai para o segundo semestre do curso de Licenciatura em Química. Na sala de aula, no ônibus, duas horas para ir, duas para voltar, acompanha-o a velha dor, o cravo para sempre espetado no coração. Mergulha no fundo do mar, e a dor vai com nele. Dar aula, outras pessoas em sua vida para se preocupar, o melhor caminho, talvez.
De repente, o impulso de abandonar tudo e andar. Retomar a fuga que um dia o levou a dias e noites intermináveis, a olhar a polícia por um novo ângulo, a cruzar e descruzar São Paulo. Sempre um debandar sem fim, que o leva a comer mal, sentir-se fraco, doente, a não pensar com clareza, a chorar de dor nos ossos e na alma, a perder a confiança nas pessoas. 

O que é, se não uma fuga, esse andar sem fim, o vagar pela Áustria, para palestra? Pela Suécia, no campeonato mundial de futebol de moradores de rua? Portugal, pela rede internacional de jornais de rua?

Aplica o teu coração ao ensino, aconselha o sábio do Velho Testamento, a apontar caminhos. As faculdades de Psicologia, Comunicação, Direito, que começou e largou. Mesmo o conselheiro de Napoleão tem suas dúvidas  existenciais. Em sua linguagem de bruxo, o Eclesiastes quer saber: quem sabe o que é bom para o homem durante os poucos dias da sua vida de vaidade, os quais gasta como sombra?

– Pelo menos, a tribulação tem a compensação da força – geme Cláudio Bongiovani – a dor maior está em se prostrar diante de um obstáculo. A gente está sabendo que tem um meio de mostrar força para superar essas perdas. Superar perdas. Compensar perdas não existe.

– Mas quem falou que a gente perdeu? A gente tinha alguma coisa? Eu perdi meus filhos? O que eu tinha era a posse dos meus filhos.
Por Apollo Natali

– Foi muito tempo na rua para chegar a essa conclusão. Perder o quê? O sentimento de posse é perda. Então, se a gente tem posse de alguma coisa, sabe que vai perder.

– A gente não tem posse de nada. Não somos donos de nada. Somos donos do quê? Do que se faz de bem, do que se faz de bom. Aí, sim. É o que estou tentando.
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Uma curiosidade: reparem que Cláudio mantém sua dignidade, ao 
contrário do mendigo decadente emblemático que o conjunto
Jethro Tull eternizou no seu clássico Acqualung.  

Um comentário:

Maribel Dias Kroth disse...

Mesmo que eu tivesse a cultura do saber e eximia na arte de escrever, jamais conseguiria expressar a beleza desse magnifico texto, parabéns muito lindo!!!

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