sábado, 4 de agosto de 2018

O APOLLO NATALI QUE EU CONHECI – 2

(continuação deste post)
Temer foi secretário da Segurança em 1992/93
Quando já marchava para a aposentadoria, lá pelos seus 55 anos, tomou a temerária decisão de demitir-se para dar assistência ao pai, em seu final de vida. Disse-me que o velho era pesado e suas duas irmãs não aguentariam carregá-lo para o banheiro, além de ser uma situação constrangedora para as duas partes.

[Apesar de nunca lhes ter sobrado dinheiro, poderiam contratar um enfermeiro, claro. O que o Apollo queria, sobretudo, era dar amor e consolo ao pai nos meses finais. Talvez tenha evitado reconhecer isto por temer que soasse piegas.] 

O FGTS foi suficiente para bancar o quase um ano que ele passou cumprindo, em tempo integral, o dever de bom filho.

Óbito consumado, já não havia emprego à sua espera na Agência Estado, nem em redação nenhuma. O máximo que conseguiu foram uns frilas encomendados pela assessoria de imprensa de um amigo e um tempinho trabalhando no serviço de imprensa da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo, cujo titular era... o Michel Temer!

Não tinha prazer em falar desta última fase. Só me lembro de me haver contado com mais detalhes um único episódio. Certa vez, durante uma coletiva, um repórter aparentemente bêbado começou a interpelar o Temer de forma muito ofensiva. Quando a paciência do amigo da onça chegava ao fim e ele parecia prestes a recorrer aos seguranças, o Apollo interveio.
De jornalista a quebra-galho. E daí? Nada abatia o Apollo.
"Deixe, que eu resolvo a situação", disse baixinho ao Temer. E, com seu jeitão bondoso, convenceu o esquentadinho a ir com ele tomar um café lá fora

Era como sempre agia quando os ânimos esquentavam na redação: um apaziguador, que permanecia equidistante das partes e ia de uma à outra para apagar arestas e facilitar a reaproximação.

Depois de dois ou três anos tentando ainda sustentar-se como jornalista, curvou-se à evidência dos fatos. Já ouvira as desculpas dos muitos conhecidos e quem não o conhecia tendia a negar-lhe emprego por considerá-lo velho demais ou pela sua aparência humilde e roupas baratas. 

[Jornalistas da velha guarda esmerávamo-nos em conseguir furos e/ou redigir textos cada vez melhores, não dando muita bola para trajes nem para certificações formais, o que nos fazia malvistos pelos selecionadores profissionais. 

Lembro-me de um que me perguntou que prato eu escolheria num cardápio em inglês e, claro, acabou escolhendo um concorrente à mesma vaga. Tratava-se de um colega que eu conhecia de outros carnavais e, tão bem vestido quanto bem falante, travava quando incumbido de textos urgentes e importantes. Já o Apollo e eu os tirávamos de letra...]
A formatura, em fevereiro de 2008

A falta de reconhecimento dos seus méritos não derrubava o Apollo; tocou a vida, trabalhando até como pedreiro, mecânico e corretor de imóveis. Enquanto as irmãs (ambas professoras, uma delas diretora de escola) trabalhavam, vivam um pouco melhor. Quando elas se aposentaram, os três tiveram de apertar mais um pouco o cinto. Mas, seguiram adiante.

De quebra, Apollo realizou o antigo sonho de obter um diploma de jornalismo — que não lhe fora necessário para o exercício da profissão, pois nela já atuava quando o curso se tornou obrigatório para os ingressantes na carreira.

Mesmo sem esperança nenhuma de voltar à ativa, passou quatro anos nas Faculdades São Judas Tadeu e, septuagenário, se graduou brilhantemente.

Remoçou uns cinco anos nesta fase. Dava-lhe imenso prazer iniciar os meninos (seus colegas) nas práticas e segredos da profissão. E familiarizou-se com a internet, passando a usar e-mails para espalhar seus textos entre as dezenas de jornalistas que conhecia.

Foi colaborador de blogs da jornalista carioca Ana Helena Tavares, como o Quem tem medo da democracia?; depois, dos meus.

E andou bancando impressões baratas do seus textos, que entregava de graça para moradores de rua venderem. Uma pequena contribuição, mas a única que estava em condições de dar, para a subsistência dos excluídos.

Estaria bem melhor financeiramente não fosse a insensibilidade de burocracias kafkianas como a do INSS, que negou-lhe aposentadoria integral porque... ela própria perdeu (e admitiu ter perdido) as provas que o Apollo anexou ao processo no qual a pleiteava, relativas a quase uma década que trabalhou sem registro nas empresas do Grupo Estado! 
[Mesmo se o extravio tiver mesmo sido acidental, a aceitação desta tese abriria um precedente juridicamente aberrante, pois os reclamados poderiam dar sumiço em tudo que lhes causasse problemas...]

Indignava-se, mas não perdia o sono, quando recebia más notícias sobre seu pleito; no dia seguinte, irradiava a costumeira alegria de viver. 

Não podia comprar roupas? Aceitava de bom grado as que um sobrinho dispensava por estar crescendo rapidamente. Sua lata velha lhe acarretaria multas se trafegasse pela cidade? Passou a usá-la só no próprio bairro, até que nem para isto servia mais. Não tinha grana para comprar outro carro? O cartão de idoso lhe bastava...

Só superestimou sua resistência a doenças, até porque parecia imune a elas. Então, jamais se preocupou em ter um convênio de saúde, nem deixou os amigos e conhecidos saberem que não possuía nenhum. Octogenário, sem fazer exames periódicos, foi surpreendido por um câncer de medula que se alastrou rapidamente e o matou em três meses. 

O que mais ouvi dos presentes ao velório e ao enterro foi que só então perceberam, em toda sua extensão, a falta que o Apollo faria em suas vidas. Talvez porque, eles como eu, tínhamos a impressão de que estaria sempre ao lado, alegrando-se conosco nos bons momentos e ajudando-nos a superar os maus. 

Quando o caixão baixou à terra, nenhum de nós tinha a ilusão de que encontraria adiante quem cumprisse o mesmo papel. Era insubstituível. 
(continua neste post)

Um comentário:

Anônimo disse...

carajo, esse texto fez a água salgada escorrer na face. Os entes queridos que já se foram...

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