Então, à falta de assunto melhor, resolvi publicar pela primeira vez neste blog o texto que escrevi especialmente para o Observatório da imprensa em março de 2008, sobre o que se podia depreender do episódio vítima & algoz, a polêmica travada entre o Elio Gaspari e vários ex-militantes da luta armada (inclusive eu) a respeito da indenização pleiteada por Orlando Lovecchio Filho e não concedida pela Comissão da Anistia do Ministério da Justiça.
Até se justifica: o assunto acaba de voltar à baila pelas mãos da Mônica Bergamo, está completando 10 anos e ainda são encontradas na internet várias peças dessa polêmica, cujos link forneço (em vermelho).
Afora que, pelo jeito, o comportamento da imprensa burguesa continua sendo exatamente o mesmo, uma década depois...
Afora que, pelo jeito, o comportamento da imprensa burguesa continua sendo exatamente o mesmo, uma década depois...
ATÉ QUE PONTO UM GRANDE JORNAL RESPEITA O
DIREITO DE RESPOSTA E DÁ VOZ AO OUTRO LADO?
Protesto na porta da Folha por causa do editorial da ditabranda |
Na quarta-feira (12/3), o jornalista e historiador Elio Gaspari publicou em sua coluna na Folha de S. Paulo e outros jornais uma diatribe contra a União (‘Em 2008 remunera-se o terrorista de 1968‘), por ter decidido pagar ao suposto algoz Diógenes Carvalho de Oliveira uma indenização duas vezes maior do que a outorgada à sua suposta vítima Orlando Lovecchio Filho (ver, neste Observatório, O jornalista de 2008 não é mais o de 1968).
Como o primeiro era um militante da resistência à ditadura e o segundo, o cidadão que perdera a perna no atentado supostamente cometido por aquele, o assunto logo transbordou do circuito habitual de Gaspari para outros jornais, revistas semanais, sites de extrema-direita e correntes de e-mails neo-integralistas.
Elio Gaspari inculpou organização errada e autores errados |
No entanto, nada saiu no ‘Painel’ dos dias 13 e 14. O que o jornal publicou foi uma notícia com o mesmíssimo enfoque distorcido da coluna do Gaspari, repercutindo-a: Vítima de atentado durante ditadura se sente injustiçado.
ANÓDINA E REFUTÁVEL – Nesse mesmo dia 14, pedi a intervenção do ombudsman, no sentido de que me fosse permitido apresentar o outro lado, já que sou, como Diógenes, ex-militante da VPR e ex-preso político anistiado pelo Ministério da Justiça, além de estar desempenhando há tempos o papel de defensor da minha antiga organização e dos ex-participantes da luta armada nas batalhas de opinião.
No sábado (15/3), a Folha se viu obrigada a reconhecer que, dos quatro militantes apontados por Gaspari como autores do atentado ao consulado estadunidense em 1969, uma era inocente e havia sido, portanto, duplamente caluniada. Então, publicou no ‘Painel’ o esclarecimento de Maurício Maia de Souza, além de um ‘Erramos‘.
A saudosa Dulce Maia sofreu um ataque descabido |
No dia seguinte, domingo, o ombudsman já estava de volta das viagens que andara fazendo, mas não se referiu ao caso nem na coluna semanal, nem na coluna diária. Noblesse oblige, Gaspari pede desculpas a Dulce Maia.
No dia 17, é finalmente publicada no ‘Painel’ a nota que eu havia enviado na madrugada do dia 12. De tão cortada, fica anódina e facilmente refutável.
Então, logo aparece quem a refute: um leitor que alega ter participado da resistência, mas sem haver aderido à luta armada – e evidenciando hostilidade a quem dela participou. Este tem tratamento VIP, recebendo mais espaço do que eu e sendo publicado de imediato.
ACUSAÇÕES FALSAS – Nessa mesma terça-feira (18/3), envio à Folha e ao seu ombudsman, bem como a O Globo (que também publica a coluna do Gaspari) e às revistas Veja e Época um artigo que expressava o outro lado, em função de uma importante evolução surgida no caso: outro dos incriminados por Gaspari, Sérgio Ferro, admitiu sua culpa, relatou o episódio e desmentiu a participação de Diógenes de Carvalho e Dulce Maia.
Diógenes Oliveira, alvo principal dos ataques direitistas |
[Ferro também revelou ter sido processado por Lovecchio e obtido a vitória na Justiça graças aos dois relatórios médicos que apresentou como prova. O primeiro dá conta de que o ferimento de Lovecchio era grave, mas existia possibilidade de recuperação. Depois, o socorro a Lovecchio foi interrompido pelo Deops, que quis interrogá-lo, provavelmente para saber se ele era vítima do atentado ou um participante azarado. Quando os policiais afinal o liberaram, sua perna já havia gangrenado e teve de ser amputada (2º relatório).]
Ora, se o algoz não era algoz, então o texto inteiro do Gaspari perdia o gancho e desabava, bem como as matérias da Veja e da Época. O que fizeram os veículos, face à evidência de haverem informado mal seus leitores, além de caluniarem dois cidadãos e acusarem falsamente a VPR (Ferro esclareceu que a ação foi, na verdade, da ALN)? Deram desmentido com o mesmo destaque? Nem remotamente.
PROTAGONISTAS DO ARBÍTRIO – A Folha relegou os esclarecimentos do único participante vivo do atentado ao ‘Painel‘, contrapondo-os a uma nota em que Lovecchio recorre ao ‘Auto de Qualificação e de Interrogatório’ de Ferro no Deops para tentar desmenti-lo, como se os inquéritos conduzidos com a prática generalizada da tortura, numa nação sob ditadura e terrorismo de Estado, fossem aceitáveis para respaldar seja lá o que for quando o Brasil voltou à civilização.
Sérgio Ferro botou os pingos nos ii |
Depois a Folha publicou, no ‘Painel’, esclarecimentos do presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, mostrando quão demagógica havia sido a comparação que Gaspari fizera sobre reparações concedidas por duas instâncias diferentes do Estado brasileiro.
Finalmente, Gaspari voltou ao assunto na sua coluna de domingo (23/3), comprovando o que, desde o primeiro momento, eu afirmara: suas únicas fontes, ao fazer as capengas afirmações de que ‘o atentado foi conduzido por Diógenes Carvalho Oliveira e pelos arquitetos Sérgio Ferro e Rodrigo Lefèvre, além de Dulce Maia e uma pessoa que não foi identificada’ e de que se tratava de ‘um atentado contra o consulado americano, praticado por terroristas da Vanguarda Popular Revolucionária’, foram os famigerados inquéritos inquéritos policiais-militares da ditadura.
Destrambelhado, voltou a atacar Dulce Maia, a quem pedira humildes desculpas no domingo anterior, quando acreditara que a polêmica marchava para o fim. Que credibilidade espera ter, agindo com tanta incoerência?
Como um mero araponga, ele se pôs a revolver o lixo ensangüentado da ditadura, dando grande importância ao fato de que havia congruência entre os depoimentos extorquidos dos torturados e omitindo que os torturadores forçavam todos os presos a coonestarem a versão oficial, a síntese elaborada pelos serviços de inteligência das Forças Armadas, para que o resultado final tivesse alguma aparência de veracidade.
Inquéritos militares eram só lixo ensanguentado |
"E era muito comum os torturados simplesmente admitirem o que os torturadores pensavam ser verdade, ganhando, assim, uma pausa para respirar. Então, ao ler a versão dos algozes, eu sempre noto que, em cada ação da resistência, são relacionados muito mais autores do que os necessários para tal operação.
‘Para alguém que estava pendurado num pau-de-arara, recebendo choques insuportáveis, é desculpável que respondesse `sim´ quando os carrascos perguntavam se fulano ou sicrano participara de determinado assalto a banco. Fazíamos o humanamente possível para evitar a prisão e/ou morte dos companheiros, mas não estávamos nem aí para o enquadramento penal nos julgamentos de cartas marcadas da ditadura".
A última intervenção de Gaspari no debate foi, de longe, a mais desastrosa. Colocou-o ao lado dos torturadores, defendendo o entulho autoritário. Se a inicial arranhou sua imagem de historiador, a final disse muito sobre seu caráter. Afinal, não é qualquer cidadão que desfruta de tal confiança de personagens como Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva, a ponto de ser por eles escolhido para trombetear suas desculpas esfarrapadas pelo papel histórico que desempenharam como protagonistas do arbítrio.
VERDADE OPERACIONAL – Se esse episódio deplorável serviu de algo, foi para comprovar que o entulho autoritário deve ficar no lugar a que pertence: a lixeira da História.
Um regime de exceção utilizou práticas hediondas para investigar a ação dos resistentes que a ele se opunham e os inquéritos assim produzidos serviram para condenar patriotas, heróis e mártires em tribunais militares, com oficiais das Forças Armadas fazendo as vezes de jurados, o que atropelava flagrantemente o direito de defesa.
O quadro era tão kafkiano que, num julgamento em que fui réu, o advogado de ofício designado para um companheiro apresentou-se completamente embriagado e começou sua peroração não falando coisa com coisa. O juiz auditor o expulsou da sala e mandou que outro advogado de ofício improvisasse a defesa, imediatamente, mal tendo tempo para ler os autos. O julgamento prosseguiu.
Advogado podia ser laçado em plena sessão para nos defender |
Um regime de exceção utilizou práticas hediondas para investigar a ação dos resistentes que a ele se opunham e os inquéritos assim produzidos serviram para condenar patriotas, heróis e mártires em tribunais militares, com oficiais das Forças Armadas fazendo as vezes de jurados, o que atropelava flagrantemente o direito de defesa.
O quadro era tão kafkiano que, num julgamento em que fui réu, o advogado de ofício designado para um companheiro apresentou-se completamente embriagado e começou sua peroração não falando coisa com coisa. O juiz auditor o expulsou da sala e mandou que outro advogado de ofício improvisasse a defesa, imediatamente, mal tendo tempo para ler os autos. O julgamento prosseguiu.
A Lei da Anistia de 1979 sustou os efeitos concretos desses julgamentos e as ações seguintes do Estado brasileiro, como a constituição das comissões de Anistia e de Mortos e Desaparecidos Políticos, evidenciaram que os antes tidos como criminosos passaram a ser considerados, oficialmente, vítimas.
Enfim, os IPMs foram, tão-somente, a versão que um inimigo apresentava do outro, para dar aparência de legalidade ao que não passava de arbitrariedade, sem compromisso nenhum com a verdade e a justiça.
Qual a credibilidade de um regime que fez afixarem-se em logradouros públicos do país inteiro, em meados de 1969, cartazes me acusando de ‘terrorista assassino’ que teria ‘roubado e assassinado vários pais de família’, embora eu fosse um dirigente e nunca um homem de ação?
Mas, para aqueles militares, a verdade não existia em si. Só lhes interessava a verdade operacional, as versões mais adequadas a seus objetivos na guerra psicológica que travavam.
DIREITO DE RESPOSTA – Passadas quatro décadas, essas versões unilaterais, fantasiosas e espúrias infestam a internet, chegando até a impregnar textos jornalísticos – por má-fé dos seus autores ou por preguiça de profissionais que preferem colher subsídios nos sites de busca do que nos arquivos de seus próprios veículos, acabando por comer na mão dos Brilhantes Ustras da vida.
Então, é mais do que tempo de a imprensa se compenetrar que, sem uma sentença lavrada por um tribunal na vigência plena do Estado de direito, ninguém pode ser apontado taxativamente nos textos jornalísticos como ‘terrorista’ ou autor de tais ou quais crimes com motivação política.
Os repórteres, comentaristas, articulistas e editorialistas que agirem de outra forma, estarão coonestando a prática de torturas e os julgamentos realizados por tribunais de exceção.
E, já que nada do que Gaspari contrapõe pode ser aceito pelos homens decentes que não aceitam mancomunar-se com práticas hediondas, subsiste o fato de que uma versão distorcida e panfletária do episódio teve enorme destaque editorial e, conseqüentemente, ampla repercussão, enquanto as novas informações que repuseram a verdade dos fatos ficaram, quando muito, jogadas na seção de cartas.
Um direito de resposta épico: o do Brizola contra a Globo |
Os repórteres, comentaristas, articulistas e editorialistas que agirem de outra forma, estarão coonestando a prática de torturas e os julgamentos realizados por tribunais de exceção.
E, já que nada do que Gaspari contrapõe pode ser aceito pelos homens decentes que não aceitam mancomunar-se com práticas hediondas, subsiste o fato de que uma versão distorcida e panfletária do episódio teve enorme destaque editorial e, conseqüentemente, ampla repercussão, enquanto as novas informações que repuseram a verdade dos fatos ficaram, quando muito, jogadas na seção de cartas.
Que cada um tire suas conclusões acerca dessa praga que cada vez mais se alastra pela imprensa brasileira: a burla do direito de resposta e a tendenciosidade no tratamento editorial, não se expondo convenientemente o outro lado ou omitindo-o por completo.
Observações:
1) afora os esforços para que a Folha me permitisse apresentar o outro lado a seus leitores, dei ampla divulgação à polêmica nas redes sociais, noticiando cada novidade que ia surgindo (os próprios textos que escrevi para o OI são exemplo disso, pois serviram para atingir outros jornalistas, formadores de opinião, capazes de darem maior quilometragem ao assunto); e
2) para fechar com chave de ouro este post, nada melhor do que a mensagem de Dulce Maia, publicada pelo Luís Nassif em 2012, quando ela ganhou a ação que movera contra o Elio Gaspari por ter-lhe feito uma falsa acusação e contra a Folha de S. Paulo por tê-la publicado.
2 comentários:
Celso,com relação a tua postagem anterior gostaria de replicar: Não obtive o número de mortos pela esquerda no Ternuma. Foi com um conhecido do Clube naval. Os números tem sido discutidos e pesquisados mas não se chega a um absoluto. Volto a questionar o centro da questão: foi colocada uma bomba e a mesma provocou uma lesão. Realmente vou tentar levantar a informação de "interrupção" no atendimento médico. Abraço
William,
no congresso de Mongaguá da VPR, em abril de 1969, a organização decidiu não mais fazer demonstrações de força (no nosso caso foi o carro-bomba do QG e a explosão na frente do Estadão, na rua Major Quedinho). A primeira tivera péssimo resultado, assim como a da ALN no consulado dos EUA.
Quando participei do congresso da VPR, por estar chegando naquele momento e desconhecer os episódios do ano anterior, não me manifestei. Hoje, seria totalmente contra. Há sempre um tanto de risco de algo sair errado, que não compensa revolucionários correrem meramente buscando um efeito propagandístico.
Mas, no caso específico do Lovecchio, acredito no relato do Sérgio Ferro, de que ele conseguiu o laudo médico da internação inicial e de quando ele voltou a ser internado, após o Deops o liberar.
Em 2008 tal informação foi IGNORADA pela grande imprensa (exatamente como agora: nem a Mônica apresentou o "outro lado" que lhe enviei, nem o "Painel do Leitor" completou a informação que saiu unilateral no jornal), mas ninguém a DESMENTIU. Nem o próprio Lovecchio. Presumo, portanto, que fosse mesmo verdadeira.
E assim sendo, temos de convir que um agente do Estado impedir um ferido de receber socorro médico é mais grave do que um particular deixar uma bomba num estacionamento, para explodir numa hora em que ninguém deveria estar por perto.
Embora, repito, este tipo de ação deva ser descartado por revolucionários.
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