Meu post antecipando o heptacampeonato surpreendeu um comentarista: ele não me supunha corinthiano. Isto me levou a pensar um pouco sobre os 63 anos em que o sou – sem jamais tê-lo ocultado, aliás.
Acabei redigindo estas mal digitadas linhas, sobre os recuerdos de uma relação que ora foi de amor, ora de indiferença (nas fases em que praticou futebol horroroso, como quando Mário Sérgio era o técnico), mas nunca de desprezo pela paixão ingênua de um povo que tanto carece de gratificações.
Meu pai perdeu o dele aos 10 anos. Era um italiano imponente, que só vi numa foto mofada, com traje de caçador. Viera ao Brasil para comandar uma tecelagem no Rio de Janeiro, de forma que Papai só veio conhecer o futebol paulista depois que minha avó, ao enviuvar, teve de mudar-se com a filharada para São Paulo, onde tinha parentes que a ajudariam.
Daí ter sido bem tênue sua ligação afetiva com a Itália. Nem sequer se tornou torcedor do time da colônia italiana, o Palmeiras. Talvez por trabalhar em fábrica desde os 11 anos, escolheu o que representava os operários, os baianos e toda a gente humilde: o mosqueteiro Corinthians, que, como os de Dumas, travava duelos desiguais com os poderosos e muitas vezes os vencia.
Quando eu acabava de completar quatro anos, a molecada da rua me perguntou para qual time torcia. Nunca pensara nisto, mas achei que ficaria diminuído se não apontasse algum. Disse Corinthians, talvez por influência do meu pai, talvez por causa do título recente, de campeão paulista de 1954. Meio por acaso, fiz a escolha mais apropriada para o homem que eu me tornaria: um defensor das causas do povo.
O jogo que pôs fim a 11 anos de humilhações
Minhas lembranças corinthianas seguintes são do ano de 1960. Em março, num sábado à noite em que os avós maternos estavam viajando, Papai me levou para assistir na TV deles, casa vazia, um Corinthians e Portuguesa de Desportos sem grande importância. O baiano Zague, que seria lembrado como artilheiro dos gols espíritas, marcaria um aos 15 segundos (!) de jogo e outro, mais prosaico, no 2º tempo. 2x1.
No último dia de julho, um domingo, acompanhei-o no seu bico de fim-de-semana: recolher apostas nas corridas de cavalo, também na casa do meu avô. Os apostadores eram vizinhos e amigos, passavam a tarde lá, bebendo, jogando cartas, assistindo aos páreos que passavam na TV Paulista, canal 5. No resto do tempo, futebol na TV Record, canal 7.
Rivelino comandou uma virada inesquecível sobre o Palmeiras em 1971
Jogavam o poderoso Santos e o frágil Corinthians na Vila Belmiro. Pelé marcara para o Santos. Aí, aos 20' do 2º tempo, um escanteio foi cobrado na direção da meia-lua da área santista e o veterano Luizinho empatou, acertando belíssimo sem-pulo. Eu, que nunca vira um deles, fiquei maravilhado.
Nenhum dos que estavam entretidos com as novidades do hipódromo e com o baralho percebeu. Contei e não acreditaram. Aí, quando anunciaram o placar na transmissão, alguém comentou: "É não é que o garoto estava certo?!". Fiquei inchado de orgulho.
O castigo veio na partida seguinte, que eu escutei pelo rádio: numa tarde de 4ª feira, no estádio corinthiano (a fazendinha), o Jabaquara ganhou de 3x2, selando a sorte do inesquecível goleiro Gylmar dos Santos Neves.
Guerreiros de Osvaldo Brandão tiram o Corinthians da fila, enfim!
O time praiano tinha um cobrador de faltas especialista, Hélio, que no 1º tempo fez 2x0 encobrindo a barreira corinthiana. Os donos da casa suaram sangue e empataram. Aí, aos 39' do 2º tempo, nova falta. Gylmar, para não ser atrapalhado pela barreira, mandou abrir. Só que o Hélio, ao invés de um chute colocado, desferiu um petardo indefensável.
Como Gylmar tinha proposta do Santos, a torcida concluiu que ele jogara desinteressado e o hostilizou. Tal injustiça foi a pá de cal para ele tomar a decisão de mudar de ares.
O primeiro jogo do Corinthians a que eu assisti no estádio foi um dérbi no Pacaembu, pouco antes de completar 14 anos. Fui com um colega do ginásio, palmeirense, pegando um ônibus da Mooca até o centro velho, depois a linha especial para torcedores no vale do Anhangabaú. Chegamos tarde e só conseguimos um lugar na geral, atrás de um dos gols, sendo obrigados a ficar na ponta dos pés o tempo todo. Para piorar, desabava a maior chuvarada.
Flamengo goleado: foi o canto do cisne do time da democracia.
O Corinthians, com uma equipe bem inferior à do Palmeiras, marcou um gol de pênalti no comecinho da partida e sustentou o bombardeio adversário pelos 83 minutos restantes. A dificuldade para voltar foi maior ainda, tivemos de caminhar pela avenida Pacaembu até conseguirmos pegar um ônibus que não estivesse transbordando de passageiros. Mesmo assim, valeu a pena.
Foi também no ano maldito de 1964 que tive grande esperança de ver o Corinthians sair da fila que já durava uma década. Faltando quatro rodadas para o encerramento do Campeonato Paulista, estava em 1º lugar, dois pontos à frente do Santos (vitória naquele tempo só valia dois), mas com três clássicos pela frente.
A promessa solene de um jogador maior do que o futebol
Fui assistir ao primeiro e saí com a cabeça inchada: derrota por 4x2 diante da Portuguesa de Desportos. De positiva, só a recordação de que choveu e muitos torcedores sentaram sobre jornais para não molhar o traseiro. A chuva acabou e os que estavam em cima começaram a atirar as folhas molhadas, que grudavam nas costas dos que estavam em baixo. Estes devolviam para cima, como nas guerras de torta dos filmes de pastelão.
Torcedores dos dois clubes misturando-se nos mesmos espaços, rindo e brincando como crianças, sem altercações. Disto para as torcidas únicas nos clássicos de hoje, que terrível retrocesso! Parece que recuamos um milênio.
1990: 1x0 no São Paulo garantiu o 1º dos 7 títulos do Brasileirão.
No fim de semana seguinte, desconfiei que perderíamos do Palmeiras e tomei a sábia decisão de ficar em casa: aproveitando o desfalque do lateral-esquerdo Oreco, o ponta Gildo deitou e rolou, abrindo caminho para três gols do Servílio: 4x1.
Finalmente, o clássico decisivo com o Santos, num sábado à tarde no Pacaembu. Fui com um grande amigo corinthiano, chegamos cedinho e ele tinha grana para bancar ingressos de arquibancada.
A preliminar foi fantástica, decisão do campeonato de aspirantes, com o Corinthians enfiando 6x3 no Palmeiras. O melhor jogador logo em seguida ascenderia à equipe principal, era um tal de Roberto Rivelino...
No Mundial de 2000, um jogo inesquecível contra o Real Madrid.
Até aí, tudo ia bem demais. Depois, o caldo entornou. Mesmo lutando como leões, os titulares perderam do Santos por 7x4, com Pelé (fez quatro gols) e Coutinho (três) em tarde infernal. Só aguentamos ficar até o 5x2. Saímos chutando latas de lixo.
Outros interesses foram então me absorvendo. Em março de 1968, p. ex., como eu estava todo voltado para o movimento estudantil, foi só pela TV que eu vi o Corinthians quebrar um tabu de 11 anos e 22 partidas pelo Campeonato Paulista, derrotando o Santos por 2x0, numa partida disputada com portões abertos no estádio do Pacaembu (em razão de não terem sido reembolsados os pagantes do jogo na Vila Belmiro, interrompido no 1º tempo por causa do desabamento de uma arquibancada).
Goleada histórica sobre o Santos em 2005 foi o troco pelo tabu
Vieram a luta armada, a prisão, o tempo que passei numa comunidade alternativa recuperando-me dos traumas e descarregando as frustrações. Só voltei a me interessar pelo futebol em 1977, quando um Corinthians mais guerreiro do que brilhante afinal voltou a ser campeão paulista, depois de uma agonia de 23 anos. Valeu pelo desafogo.
A contratação do Sócrates me chamou de volta para os estádios. Eu já passara da fase de obcecado por vitórias a qualquer preço, queria é ver meu time dando show de bola. A técnica refinada e a inteligência do doutor na leitura das jogadas se evidenciavam muito mais com a visão do todo do que com os focos limitados das tevês antigas.
Volta à divisão de elite em 2008 iniciou o atual circulo virtuoso
Foram gloriosas as duplas por ele formadas com o Palhinha e depois com o Casagrande. E que cracaço era o Zenon! Um jogador sutil e cerebral como o Jadson, mas muito superior nas cobranças de faltas, cheias de veneno.
Foi quando assisti no Morumbi um partida de sonhos, pelas quartas-de-final do Campeonato Brasileiro de 1984. Depois de perder do grande time do Flamengo por 2x0 no Maracanã e apesar da descrença generalizada de que pudesse tirar tal desvantagem, o Corinthians, que tinha a vantagem do emparte, cumpriu a tarefa já no 1º tempo, depois fechou a fatura em 4x1. Eu não sabia, mas estava vendo um canto do cisne.
Dois anos após seu centenário, o Corinthians conquistou a América...
Com a democracia corinthiana, uma alternativa ao mandonismo da repulsiva cartolagem (e afinada com a luta política pela redemocratização do País!), duas das minhas grandes paixões se encontraram. Vibrei quando, numa manifestação pelas diretas-já no Vale do Anhangabaú, situado a uns 20 metros do palco, vi e ouvi Sócrates prometer que, se a Emenda Dante de Oliveira fosse aprovada pelo Congresso Nacional, ele recusaria a oferta milionária da Fiorentina e ficaria aqui para ajudar-nos a reconstruir o Brasil.
Os canalhas que fizeram o País sair da ditadura pela porta dos fundos, contribuíram também para decretar o fim de um dos períodos mais belos da história corinthiana.
...e o mundo (num dia em que o Cássio pegou até pensamento!).
Vieram os reinados de Neto e de Marcelinho Carioca, a supremacia que o Corinthians assumiu no Campeonato Brasileiro das duas últimas décadas, as maiores conquistas em sua trajetória secular (a Libertadores e o Mundial de 2012)...
Mas, o Corinthians passou a se caracterizar principalmente pela força coletiva, processo que acaba de chegar ao auge na conquista de 2017: nunca houve uma disparidade tão acentuada entre a excelência da maioria dos resultados alcançados e o que se poderia esperar de um elenco pouco mais do que mediano. O conjunto ultrapassa em muito a soma das partes.
Tanto que, mais do que o artilheiro renascido das cinzas Jô, a maioria da imprensa encara acertadamente o técnico Fábio Carile como o principal responsável pelo título.
A apoteose da esnobada quarta força do futebol paulista
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