sexta-feira, 9 de junho de 2017

FAZ 50 ANOS QUE GLAUBER MOSTROU AS AGRURAS BRASILEIRAS COMO TRAGÉDIA. HOJE, NO TSE, AS VEMOS COMO CHANCHADA.

Foi  em 2 de maio de 1967 que, liberado após personagens terem o nome trocado por imposição da censura ditatorial, estreou a maior obra-prima do cinema brasileiro e um dos melhores filmes políticos de todos os tempos e países. 

Antes, nossas agruras eram mostradas com a dramaticidade das tragédias, hoje são encenadas, como estamos vendo no julgamento do Superior Tribunal Eleitoral, de forma tão canhestra e patética que até lembram as chanchadas da Atlântida. Eu, particularmente, gostava mais de assistir às trapalhadas do Oscarito e Grande Otelo do que às do Herman Benjamin e Gilmar Mendes.

Terra em Transe (1967) foi uma parábola perfeita sobre a quartelada de 1964, mas nem por isto válida somente para o Brasil. Flagrou uma realidade comum à maioria das nações do 3º mundo –ao qual, dizem, deixamos de pertencer em termos de pujança econômica, mas no qual permanecemos atolados até o pescoço quanto à distribuição de renda, à qualidade de vida e, mais do que tudo, em espírito, pois a alma brasileira continua pateticamente colonizada e submissa ao autoritarismo.

Glauber Rocha repetiu a fórmula de enfeixar nos seus personagens principais os atributos e posturas de classes e grupos de interesses. Assim, o poeta Paulo Martins (Jardel Filho) personifica a classe média intelectualizada, contraditória e vacilante, mas que acaba fazendo a opção revolucionária quando a crise política chega à fervura máxima.

Felipe Vieira (José Lewgoy) é o político populista a quem a esquerda se atrela, como se atrelou, p. ex., ao nacionalista Getúlio Vargas, ao trabalhista João Goulart e ao sindicalista Lula. Como na vida real, a opção oportunista de colocar-se a reboque de personagens que nada têm de marxistas ou anarquistas é punida com o fracasso: na hora da verdade, Vieira prefere não resistir ao golpe de estado, para evitar, alega, o derramamento do sangue dos inocentes. Ou seja, age exatamente como o poltrão Jango.

Felipe Vieira (José Lewgoy) é o político populista a quem a esquerda se atrela, como se atrelou, p. ex., ao nacionalista Getúlio Vargas, ao trabalhista João Goulart e ao sindicalista Lula. 

Tanto quanto na vida real, a opção oportunista de colocar-se a reboque de personagens que nada têm de marxistas ou anarquistas é punida com o fracasso: na hora da verdade, Vieira prefere não resistir ao golpe de estado, para evitar, alega, o derramamento do sangue dos inocentes. Ou seja, age exatamente como o poltrão Jango

Porfírio Diaz (Paulo Autran), claramente inspirado em Carlos Lacerda, é o direitista obcecado em conquistar o poder a qualquer preço. Mas, Glauber teve o bom gosto de não fazer dele uma mera caricatura, embora bata pesado em seus desvarios megalomaníacos e em sua amoralidade entreguista ("As nossas carnes, as vidas, tudo, vocês venderam tudo, as nossas esperanças, o nosso coração, o nosso amor, tudo! Vocês venderam tudo!", atira-lhe na cara o poeta).

Don Julio Fuentes (Paulo Gracindo) é o grande capitalista nacional a quem os comunistas convencem de que será tragado pelo imperialismo se não confrontar a multinacional que domina Eldorado. Mas, volta atrás quando recebe uma oferta vantajosa da vilã, conformando-se com a condição de subalterno bem recompensado.

Finalmente, Sara (Glauce Rocha) é a militante devotada mas impotente para mudar o destino de seu povo. Vai continuar lutando após a terrível derrota... mas, nada indica que será vitoriosa da próxima vez. 

E, se os comunistas de 1964 refugaram na hora da decisão (o que Glauber sarcasticamente ressaltou no filme, ao mostrá-los exibindo armas o tempo todo, sem contudo, jamais dispará-las...), coube à minha geração resgatar a moral da esquerda, provando ao cidadão comum que também éramos capazes de sangrar pela nossa causa. 
Ao preço de tantas vidas perdidas e de tantos sofrimentos dantescos, reconquistamos o respeito das ruas. 

Mas ele seria novamente perdido adiante, quando os nossos que chegaram ao poder nominal desonraram as pregações de décadas, prostrando-se à burguesia na ilusão de que esta lhes permitiria desempenhar indefinidamente o papel de gerenciadores do capitalismo brasileiro.

Acabaram sendo espremidos e jogados fora, sem que sequer os tanques tivessem de sair às ruas para os expelir; bastou um piparote do Congresso Nacional. 

Ou seja, o que em 1964 nos pareceu o opróbrio extremo foi amplamente superado pelo episódio de 2016, em que o governo do PT simplesmente caiu de podre, sem sequer esboçar resistência significativa, embora desta vez se pudesse tentá-la sem risco de vida. 

E a nós, os eternamente traídos, só restou desabafar, como o Paulo Martins das telas:
"Não é mais possível esta festa de medalhas, este feliz aparato de glórias, esta esperança dourada nos planaltos! Não é mais possível esta festa de bandeiras com guerra e Cristo na mesma posição! Assim não é possível, a impotência da fé, a ingenuidade da fé! 
Somos infinita, eternamente filhos das trevas, da inquisição e da conversão! E somos infinita e eternamente filhos do medo, da sangria no corpo do nosso irmão!
E não assumimos a nossa violência, não assumimos as nossas idéias, como o ódio dos bárbaros adormecidos que somos. Não assumimos o nosso passado, tolo, raquítico passado, de preguiças e de preces. Uma paisagem, um som sobre almas indolentes. Essas indolentes raças da servidão a Deus e aos senhores. Uma passiva fraqueza típica dos indolentes.
Não é possível acreditar que tudo isso seja verdade! Até quando suportaremos? Até quando, além da fé e da esperança, suportaremos? Até quando, além da paciência, do amor, suportaremos? Até quando além da inconsciência do medo, além da nossa infância e da nossa adolescência suportaremos?"
Recheado de belíssimas citações poéticas, dramático e tempestuoso como a realidade que escancara, com algumas atuações portentosas (Lewgoy, copiando trejeitos de Vargas, Jânio Quadros e Adhemar de Barros, está simplesmente magnífico!), é um filme obrigatório para qualquer esquerdista que ainda seja capaz de refletir sobre a História e sobre o papel que nela lhe cabe, ao invés de apenas seguir obedientemente a linha justa.

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