segunda-feira, 29 de agosto de 2016

DOIS PERDIDOS NA NOITE SUJA DO CAPITALISMO: FERREIRA GULLAR E O PT.

Por Dalton Rosado
No campo dos que condenam o capitalismo por todos os desastres históricos e segregações sociais havidas no seu itinerário de sangue, há mais divergências do que no campo dos que entendem que o capitalismo é um ganho civilizacional. 

Estes, no máximo, veem o capitalismo como um mal menor dentre os sistemas sociais. É compreensível que seja assim, porque há sempre consenso em quem admite a segregação social com satisfação, tolerância ou indiferença, e não quer mesmo aprofundar discussões sobre a natureza do sistema que a promove. 

No mais recôndito interior de suas consciências, contudo, os defensores do capitalismo sabem que corroboram a injustiça, a menos que tenham um nível de ignorância tal que coloquem a culpa pelo infortúnio social nas costas das próprias vitimas.      

Entre os contestadores do capitalismo, as teses em circulação são as mais variadas e devem ser discutidas sem sectarismos. Ferreira Gullar, a quem respeito tanto por sua brilhante verve poética quanto pela sua contribuição histórica nos embates com a ditadura de 1964/85 (quando emprestou seu prestígio pessoal, juntamente com outros intelectuais, ao combate contra o arbítrio militar a serviço do capital internacional), não deve, obviamente, permanecer imune às nossas críticas no sentido de promovermos a superação dos dramas sociais vividos pelos 80% de perdedores sociais, aos quais se somam agora parte dos 15% do segmento intermediário entre ricos e pobres, a chamada classe média

Vivermos submetidos ao capitalismo é um fato que está posto. Mas, isto não significa que o devamos aceitar. Ao contrário, temos mais é de combatê-lo com todas as nossas forças, e para tanto se faz necessário pensar o impensável e fazer o impossível. 

Foi assim que Karl Marx ousou contrariar as teses então em voga no capitalismo ascendente da primeira revolução industrial da metade do século XIX, quando os burgueses emergentes confrontavam as forças retrógradas dos monarquistas constitucionais ou absolutistas do feudalismo. 

Marx foi mais além das discussões em curso e, em bases científicas (a partir de sua crítica da economia política), rejeitou as duas opções que estavam postas, condenando tanto o escravismo feudal escancarado quanto o escravismo capitalista disfarçado de liberdade de escolha da pessoa do seu novo senhor (o capital).

Karl Marx nunca foi tão atual e se Ferreira Gullar, em sua crônica jornalística, quis dizer que há uma imperiosa realidade de fim do comunismo (ele confunde o Marx exotérico, que ele conhece, com o Marx esotérico, que parece desconhecer) que se opõe à realidade posta na mente da jovem universitária, quando o primeiro defende os grandes condutores revolucionários marxistas da história, quero aqui me posicionar. 

O Marx da maturidade conjeturou com admirável acerto que a transformação dos meios de produção com o uso da alta tecnologia faria os custos de produção a partir do trabalho abstrato se reduzirem a uma base miserável, e que tal fato, consequentemente, jogaria pelos ares todos os fundamentos da vida social capitalista. 
Gullar: conformismo.

Tal dedução, cuja realidade agora foi atingida, demonstra para todos nós que os postulados do marxismo tradicional teriam de ter sido revistos no curso do processo revolucionário, independentemente da boa intenção dos seus dirigentes e dos êxitos pontuais que evitaram o esmagamento de nações inteiras. 

O papel que a URSS desempenhou na resistência ao nazi-fascismo na 2ª guerra mundial, bem como o da China em defesa de países asiáticos invadidos pelos EUA, deve ser louvado, mas não podemos esquecer que ambas se fecharam nas suas fronteiras e, à concorrência de mercado do capitalismo liberal mundial, apenas contrapuseram um capitalismo de estado autoritário

Obtiveram bons resultados imediatos, mas teriam depois de fazer uma revolução dentro da revolução e ficaram devendo, pois o uso do cachimbo faz a boca torta

O Estado marxista-leninista ou maoísta, ao invés de encaminhar a eliminação do capitalismo de estado, do próprio estado e do partido do proletariado, como já queria o Marx da juventude, seguiu o curso da expansão do capitalismo de estado, acabando por abrir as suas fronteiras para o capitalismo liberal. A queda do muro de Berlim, antes de significar o fim do pensamento de Karl Marx, significou a correção de seus ensinamentos e o limite da fronteira da expansão capitalista. 

Ferreira Gullar não faz uma análise aprofundada, encampando a racionália simplista e demagógica dos devotos do capitalismo, num conformismo que nega os postulados revolucionários. O alerta de Celso Lungaretti a ele neste blogue é procedente.

O PROJETO REFORMISTA E ASSISTENCIAL DO PT NÃO LEVAVA EM CONTA A CRISE AGUDA DO CAPITALISMO

Com o PT ocorre algo pior. Na verdade, a bandeira vermelha e estrelada do Partido dos Trabalhadores terminou por se configurar como um engodo e um arremedo de combate ao capitalismo, pois conciliou com este de forma oportunista (e está se dando mal!).

A direção petista desde cedo tratou de expurgar os marxistas do partido e cooptar com vantagens e cargos aqueles que aderissem ao seu projeto reformista e assistencial, derivado de um sindicalismo de resultados que é igualmente nocivo e prejudicial à emancipação dos trabalhadores. Daí para a conivência e a prática da corrupção e a aceitação das injustiças partidárias como norma de conduta para tentar manter o poder político foi um passo. 

A burguesia, dona do poder econômico (o verdadeiro poder sob o capitalismo), ainda que constrangida por ter sido apeada do poder político que sempre deteve, agradeceu a conciliação de classes dos governos petistas e aguardou o momento oportuno para mostrar o veneno contido na sua cauda de escorpião. É o que agora se processa no Congresso Nacional.
"fragilizados pedintes de mais empregos"

Dizia Marx que as transformações das forças produtivas transformam a própria essência da relação social capitalista. 

Na esteira destes ensinamentos, Robert Kurz assim analisou o estágio atual do capitalismo: 
"A nossa nova teoria da crise esboçou a tese de que a dessubstancialização do capital levada a cabo pela terceira revolução industrial da microelectrônica representa um limite interno absoluto do processo de acumulação. 
Pela primeira vez na história capitalista, realiza-se uma racionalização que torna dispensável a força de trabalho de modo mais rápido (e em volume maior) do que a ampliação dos mercados possibilitada pelo barateamento dos produtos. 
Assim se esvai o mecanismo de compensação das crises vigente até então. O capital foge da acumulação real para o capital fictício (Marx) em bolhas financeiras que, em última instância, têm de estourar, não apenas conjunturalmente, mas estruturalmente. 
Na medida em que se demonstra, nesta crise qualitativamente nova, o limite histórico da acumulação do “modo de produção baseado no valor” (Marx), torna-se obsoleto o sistema produtor de mercadorias, o trabalho abstrato, e, com ele, a ontologia marxista do trabalho".
O atual estágio do limite interno de expansão capitalista, previsto por Marx, contraria a ideia de uma revolução cujo sujeito histórico seria o proletariado nas fábricas, vez que o desemprego estrutural transformou os trabalhadores e sindicatos em fragilizados pedintes de mais empregos; a realidade atual, portanto, está a requerer novos conceitos revolucionários. 

A equivocada luta por mais empregos representa, implicitamente, o hoje irrealizável desejo de retomada do desenvolvimento econômico (mais capitalismo), estando incluídos na defesa desta tese todos os partidos políticos. A revolução, contudo, tem hoje outros parâmetros e formas, devendo ser, mais do que nunca, guiada por fundamentos marxianos adaptados aos tempos presentes (afinal, já se passaram 133 anos desde que o velho barbudo morreu...).

De pé sobre os ombros de Marx, haveremos de promover a emancipação humana!

3 comentários:

SF disse...

Dalton,
Nos dois últimos parágrafos vc resumiu muito bem a atual situação dos trabalhadores.

Mendigam emprego e iludem-se que haverá desenvolvimento que recoloque a mão de obra excedente.

O cara que vc citou (Kurtz) demonstra claramente a contradição que extermina o capitalismo e, consequentemente, a relação capitalistas/trabalhadores.

É bem assim mesmo.

Aliás, o sistema opressor/oprimido antecede o capitalismo. Ele foi apenas a sua mais recente máscara.

O sadismo humano tem sua origem em priscas eras.

A compreensão desta dialética foi simbolizada no Tei-ji (yin/yang); o qual mostra a origem de um no corpo do outro formando, ambos, uma círculo perfeito.

Que fizeram os filósofos?
Esmiuçaram o Tei-ji.
(E a linguagem é soporífera porque cartesiana.)

Como sou caboclo entendo melhor o Tai-chi (Tei-ji) e arrisco asseverar que o novo sistema surgirá (se é que já não surgiu) a partir dos escombros da velha ordem.

Empiricamente, desconfio que a crueldade humana abrandou muito pouco.

Pode ser que a nova ordem despreze a exploração da mais valia (anacrônica), mas alguma forma de se maltratar uns aos outros vão inventar.

Quanto a isso, pode ficar sossegado.

A única coisa que me faz desconfiar de algo menos cruel é o fato de já não nos terem exterminado. Porque meios para isso os caras tem.

Pode ser que a enxurrada de liquidez e um futuro perdão das dívidas sejam o start para um novo paradigma econômico.

As guerras terão fim com o uso de drones.

As nomenklaturas corruptas não terão mais onde esconder o butim, pois o controle absoluto das transações comerciais, se não já uma realidade, está muito próximo de ser.
A pobre que comprou bolsa cara em Paris está com os olhos arregalados até hoje: "como descobriram?"

A geração de energia de fontes renováveis.

A obsolência das cidades (fim dos burgueses = fim dos burgos)...

-*-

Tenho um primo poeta, trabalhei com outro, eles são assim mesmo.
Não precisa temer o Gullar. Ele tem uma licença. A licença poética.
E "quando o poeta diz meta ele quer dizer o inatingível", já dizia o Gil.

Veja que a ciência tem início na observação. Não é muito precisa, mas é melhor que a divagação, ou o senso comum, e desmacara o dogma.

Se as experiências socialistas viraram capitalismo de estado e tirânicas é o que se observou e ponto.
Qualquer divagação além parece querer preservar um dogma e usa o argumento da autoridade.

Sidarta já detonou esse argumento, a 2500 anos atrás.

A ciência humildemente colocou como pedra fundamental sempre se curvar diante dos fatos.

Se um fato desmente a teoria, é a teoria quem é falsa.

-*-

E quando diz "lata" ele quer dizer o incontível - Metáfora, G Gil.


celsolungaretti disse...

RESPOSTA QUE O DALTON ROSADO ENVIOU POR E-MAIL:

Caro SF,

Vivemos um momento de rupturas, e isso é ao mesmo tempo perigoso e esperançoso.

O perigo consiste no fato de que inviabilizada a mediação social pela forma-valor (dinheiro e mercadorias), pela qual o capitalismo promove a segregação social via mecanismo de acumulação autotélica do capital, todos os construtos institucionais e privados tenderão a se viabilizar pela mão autoritária do Estado através da emissão de dinheiro sem valor. Com tal mecanismo poderemos ter o mais despótico dos sistemas, no qual serão escolhidos os que mandam e sobrevivem, e os que produzem e morrem.

A esperança consiste na possibilidade de uma consciência crítica que possa colocar todo o saber acumulado pela humanidade a serviço da liberdade; do bem estar coletivo; e do suprimento das necessidades básicos dos seres humanos de forma humanamente e ecologicamente sustentável. Estou convencido de que se soubermos aproveitar essa chance viveremos sob uma forma superior de vida que engrandecerá o ser humano e eliminará paulatinamente os resquícios da desumanidade irracional que ainda habita em nós.

A questão básica dessa superação (leia-se emancipação humana) consiste na abolição do conceito de propriedade e adoção do conceito de posse utilitária e justa; de produção de bens e serviços destinados à satisfação das necessidades e não do lucro; de um conjunto de leis que se aproxime da realização do ideal de justiça sem as filigranas de todo o conjunto de normas de direito (desde o direito constitucional até as leis ordinárias) atual que se esforça para dourar a pílula da injustiça contida na relação social capitalista que regulamenta; e a coordenação horizontalizada das ações sociais que neguem a ideia de poder verticalizado.

Esses são pressupostos básicos, sem querer dar receita de bolo para os detalhes desse processo.

Quanto aos poetas devemos estimular neles o uso de suas licenças poéticas, porque o lúdico transcende a rigidez das verdades absolutas que nada mais são do que a negação da busca idealizada da própria verdade. Entretanto, não devemos confundir licença poética com licença para a destruição de sonhos de liberdade, que é o seu contrário.

Por último, quero dizer a você que a filosofia oriental milenar tem mesmo muito a nos ensinar, pois ela foi sempre aquilo que se contrapôs ao itinerário da vida social asiática marcada pela reprovável segregação social patrocinada por castas sociais étnicas e de dissociação de gênero (as mulheres asiáticas que o digam). Buda e Confúcio eram filósofos sábios e menos belicosos do que Sun Tse, o Maquiavel asiático, tão incensado pelos militares e políticos.

Um grande abraço e mais uma vez agradeço a interação com o nosso debate.

Dalton Rosado

SF disse...

Dalton, sou grato por sua atenciosa resposta.

A bem dizer, não sou estudioso. Então, meus pitacos são muito pouco embasados.

Na dialética, por exemplo, meu conhecimento se resume a um livreto da coleção Primeiros Passos de Marilena Chauí.

Depois, fiz mais alguns estudos, diletantemente, a respeito de epistemologia.

Também sou fruto de um mundo onde o símbolo, a marca e o slogan tem muita preponderância.

Assim citei o Tai-Chi ou Tei-ji como um símbolo que condensa todo a dialética de Hegel e Marx, nunca como apoio um orientalismo ou ocidentalismo, ou qualquer "ismo".

Nossa geração é muito iconoclasta, eu só aprofundei um pouco de maneira a ver porque os ídolos devem ser destruídos.

Citei os antigos (Sidarta e Lao Tse) apenas para enfatizar que nenhum pensamento desses é novo, e muito menos revolucionário, mas a base do método para se chegar a verdade (mesmo que incompleta) passa pela negação do dogma e do argumento da autoridade, aceitando humildemente os fatos ou, se os fatos forem ocultados, os vestígios que as ações humanas deixam.

Tem um cara que disse "certo é o que dá certo" e é um beradeiro desse Rio Madeira, onde tenho o privilégio e a sina de morar.

Forte abraço.

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