Se eu tivesse de escolher a melhor peça do teatro brasileiro em todos os tempos, não hesitaria um segundo em apontar Arena conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, que neste ano da desgraça de 2015 completou meio século de existência.
Afora o verdadeiro achado que foi, para compensar a parcimônia de recursos do teatro do oprimido, a criação do sistema do coringa (os mesmos atores alternam-se na representação de vários personagens, só mudando um ou outro item da indumentária), tratou-se de uma peça brilhante e indignada: expressou a frustração e a raiva pela rendição sem luta de 1964, uma das páginas mais vergonhosas da esquerda brasileira em todos os tempos.
Quando a censura forçava os artistas a recorrerem a subterfúgios para conseguirem levar sua mensagem ao público, a saga dos quilombos foi utilizada para simbolizar o ascenso dos movimentos de massa e seu esmagamento pelo golpe militar. Os paralelos, ironias e insinuações perpassam todo o espetáculo. Há, inclusive, uma velada conclamação à luta armada, que dali em diante se tornaria cada vez mais explícita no teatro, no cinema e na MPB.
E o elenco era um arraso, com o próprio Guarnieri, Lima Duarte, David José, Dina Sfat, Marília Medalha, Carlos Castilho, etc.
Para os jovens conhecerem e os menos jovens matarem as saudades, eis o disco da peça, com 45 minutos de músicas (de Edu Lobo, algumas das quais se tornaram clássicos da MPB), diálogos e até o discurso de posse de um governador linha dura, cuja retórica é uma paródia hilária dos zurros dos golpistas de 1964.
De quebra, reproduzo um dos temas mais marcantes da peça, Tempo de Guerra, adaptado da poesia igualmente antológica de Bertolt Brecht, Aos que virão depois de nós:
.
Só quem não sabe das coisas é um homem capaz de rir. Ah, triste tempo presente, em que falar de amor e flor é esquecer que tanta gente está sofrendo tanta dor!
Todo mundo me diz que eu devo comer e beber. Mas, como é que eu posso comer? Mas, como é que eu posso beber? Se eu sei que estou tirando o que vou comer e beber de um irmão que está com fome, de um irmão que está com sede, de um irmão...
Mas, mesmo assim, eu como e bebo. Mas, mesmo assim: esta é a verdade!
Dizem crenças antigas que viver não é lutar. Que sábio é o que consegue ao mal com o bem pagar. Quem esquece a própria vontade, quem aceita não ter seu desejo, é tido por todos um sábio. É isso que eu sempre vejo. É a isso que eu digo NÃO!
Eu sei que é preciso vencer
Eu sei que é preciso brigar
Eu sei que é preciso morrer
Eu sei que é preciso matar
É um tempo de guerra
É um tempo sem sol
É um tempo de guerra
É um tempo sem sol
Sem sol, sem sol, tem dó! (bis)
Ah, eu vivi na cidade no tempo das desordens, eu vivi no meio da gente minha no tempo da revolta, assim passei os tempos que me deram pra viver!
E você que me prossegue
E vai ver feliz a Terra
Lembre bem do nosso tempo
Desse tempo que é de guerra
Veja bem que preparando
O caminho da amizade
Não podemos ser amigos, ao mau
Ao mau vamos dar maldade
Se você chegar a ver
Essa terra da amizade
Onde o homem ajuda ao homem
Pense em nós só com bondade
Nenhum comentário:
Postar um comentário