Por Apollo Natali |
Com licença, vou delirar. Delírio em dois atos. Um, faz 40 anos, quando cometi este texto. O outro, mais atualizado, como se verá, mas tudo nestes
mesmos escritos.
Primeiro ato
Certa vez li num jornal que
o Brasil teve um senador que morava numa pensão e tinha só dois ternos, um com
ele e outro no tintureiro. Nada de propriedades, castelos, nada de dinheiro em
paraíso fiscal, nada de dar empregos a parentes. Um autêntico São Francisco de
Assis do Parlamento. Não se deixava tiranizar pelo jugo dos bens materiais, a
não ser por aqueles que a ferrugem não consome e a traça não devora.
Li num jornal, vejam
bem, não sonhei. Queria tanto lembrar o nome desse político, mas tenho memória
de cera. Quando li sobre ele eu era um jovenzinho e nem era jornalista. Comecei
no jornalismo tempos depois, em 1961, aos 25 anos. Cheguei a pedir ajuda ao
jornalista Carlos Chagas quando eu trabalhava na Agência Estado e ele no
Estadão, na sucursal de Brasília. Chagas
pediu alguns dias de prazo mas também não conseguiu descobrir. Isto não é um
pesadelo, eu li sobre esse senador brasileiro.
No dia em que as circunstâncias me permitirem conhecer seu nome, vou pesquisar a vida dele inteira e voltar a escrever a respeito.
Diógenes e sua lanterna: procurando um homem honesto. |
Enquanto isso, fico
imaginando, ingenuamente, como seria este Brasil do tamanho de um continente todo
ele feito de políticos com dois ternos, morando em pensão e nenhuma ambição, vivendo
apenas dos subsídios e acumulando unicamente tesouros da alma. Ingenuidade
demais, eu sei.
Quem quiser também pode
delirar comigo: políticos
desprendidos de glórias e dos bens materiais por todos os cantos, nas ruas, nos
prédios, metrôs, descendo e subindo escadas, nos palanques, tribunas, praças,
lares. Na televisão! Não legislando em causa própria, defendendo o bem comum.
Preocupados com seus irmãos menos favorecidos material e intelectualmente.
Políticos, não são eles
as principais engrenagens das sociedades democráticas? Manejando com honestidade
os bens públicos, não mentindo, falando a verdade, rejeitando para eles e para
os seus queridos a prática das mais terríveis doenças de suas almas. São duas,
a corrupção e a mordomia com o dinheiro público. São as duas mais repugnantes
doenças lesa-democracia.
Alguém existirá neste
País que lembrará o nome do senador de dois ternos e nenhuma ambição e não me
deixará mentir.
Segundo ato
(mais
delírio, atualizado)
Apenas um detalhe
falta para o Brasil se tornar o melhor e mais belo pais do mundo. Falta um
sonho, para tudo falta um sonho, o de serem honestos os representantes do povo
no governo federal, nas prefeituras, nos governos estaduais, no Senado, na
Câmara dos Deputados.
Falta essa gente
estudar com dedicação a democracia, se apaixonar por ela, essa maravilha de
vida global, estupenda prática possível de liberdade e justiça. Falta pensar no
povo e não ter os olhos voltados unicamente para o próprio estômago.
Há mil maneiras de
se acabar com a raça de uma democracia e o carro-chefe dessa empreitada
demolidora é a corrupção. Qualquer ingênuo sabe disso.
Faltaram faixas e gritos específicos contra
a corrupção nos manifestos que assolaram as ruas do país, tanto nos protestos
espontâneos de junho de 2012 que reivindicaram saneamento político, como na
manifestação de julho das nove centrais sindicais que discursaram em favor das reivindicações trabalhistas. Olvidaram
ingenuamente que, no quesito corrupção, o Brasil dá de goleada no resto do
mundo. Vamos ver o que diz sobre isso recente pesquisa da Transparência
Internacional.
Diz que os brasileiros consideram corruptos ou muito corruptos os políticos e instituições como o Congresso, a Polícia, o Sistema de Saúde, Judiciário, Funcionalismo Público, Imprensa, ONG's, Igreja. Estão tecnicamente empatadas com os outros países em nível de corrupção nossas ONG's, a imprensa, a Igreja, o setor privado e o militar.
Os partidos políticos tupiniquins são considerados corruptos ou muito corruptos por 81% dos brasileiros. A média mundial nesse setor é 65%. O Congresso é muito corrupto segundo 72% dos brasileiros –a média no resto do mundo é 57%.
Quanto à polícia, 70% dos brasileiros acham que ela é corrupta, contra 60% lá fora. O sistema de Saúde, 55% aqui, e 45% no mundo. O Judiciário é considerado corrupto por 50% dos brasileiros. No resto do mundo a corrupção no Judiciário é um pouco pior: 56%. Funcionalismo, aqui, 46%, do outro lado 57%. Imprensa, 38% entre nós, 39% entre os outros. Setor privado, 35% cá e 45% lá. Igreja, 31% a 29%. Militares, 30% a 34% . Nossas ONG's, 35%, são consideradas mais corruptas do que as outras do mundo, 28%.
Ingênuos como Barack Obama defendem levar a
fé a sério para deter a direita religiosa, que quer governar os Estados Unidos,
como ela quer, agora, no Brasil. Nada contra as religiões, tudo contra alguns
religiosos. Um hipotético historiador poderá ler estas linhas no futuro, quem
sabe, e se assombrar com a pretensão de um presidente da câmara dos deputados
brasileira, de impôr, com uma canetada cheia de tinta cinzento-escuro da Idade
Média, o que as mulheres devem fazer com sua gravidez.
Ah, senhores historiadores, possa a posteridade eternizar no mau sentido o nome desse político eleito pelos próprios colegas de religião do parlamento brasileiro.
Ele é o religioso –à
sua maneira–Eduardo Cunha. É sob o seu comando que a Câmara dos Deputados vai
gastar R$ 400 milhões para construir um shopping-center destinado
unicamente aos parlamentares e seus familiares e amigos. Sacrossanta
ingenuidade acreditar que eles vão pagar com dinheiro deles suas compras –colchões, cortinas, calçados, jóias, bebidas, mantimentos.
Não há ingenuidade que ofusque o
entendimento de que, onde quer que conseguem o poder político como representantes
do povo, em qualquer democracia por aí, os políticos assumem justamente o que
sofriam na pele do povo, isto é, suas mediocridades e o comportamento sádico e
sanguinário dos governantes que metem a mão no dinheiro alheio. Promovidos a
amo, suas grandes aspirações passam a ser apenas procriar e se tornar um grande
homem insignificante, tão somente rico não pelo trabalho. Não fazem a mais
tacanha ideia do que seja honestidade.
O então senador Barack Obama defendia envolver todas as pessoas de fé no mais amplo projeto de renovação americana, o que seria aplicável sem nenhuma ingenuidade, talvez, no Brasil.
O senador sentenciava: “Acredito que cometemos um erro
quando falhamos em reconhecer o poder da fé na vida dos americanos e por isso
evitamos participar de debates sérios sobre como reconciliar a fé com nossa
democracia moderna e pluralista”.
Ah, os meus delírios não devem ser tão
ingênuos. Não me deixam mentir o senador
Barack Obama e nem o senador brasileiro de dois ternos, que morava numa pensão,
de nenhuma ambição a não ser representar com honestidade o povo no poder.
2 comentários:
Numa antiga entrevista, Murillo Mello Filho informou que o deputado federal Otavio Mangabeira morava num quartinho do Hotel Glória. Não tinha automóvel, andava de bonde e tinha dois ou três ternos.
Já li outros depoimentos sobre a vida espartana de Otavio Mangabeira.
Não seria esse o político mencionado por Apollo Natali?
Prezado Antonio Carlos Pires,
Nao sei realmente quem foi o senador de dois ternos e nenhuma ambição. Eu devia ter uns 16 anos quando li sobre ele na Folha de S.Paulo. Deveria ser o ano de 1952. Nessa época Otávio Mangabeira perdera para o Brigadeiro Eduardo Gomes a vaga de concorrente à presidência da República, que ficou com Getúlio Vargas. Vou continuar atento e se você tiver novas dicas, por favor, me mande. Talvez a entrevista de Murillo Mello Filho mate a charada. Como coneguí-la? Obrigadão, apollo.natali2@gmail.com
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