Odiado pela ditadura e também pelos barões da mídia |
Quando se fala em censura musical nos anos de chumbo, a maioria lembra:
- das muitas canções que permaneceram proibidas durante anos e anos ("Caminhando", do Vandré, foi o episódio mais marcante);
- do artifício que Chico Buarque usou para ludibriar os serviçais da dona Solange, enviando-lhes as letras no nome de Julinho da Adelaide e conseguindo, assim, sua liberação;
- das ridículas alterações que os artistas eram obrigados a fazer, tipo Walter Franco trocar "eu quero que esse feto saia" por "eu quero que esse afeto saia" ("Mixturação"), ou Raul Seixas, em "Cachorro urubu", substituir "o que houve na França/ vai mudar nossa dança" por "o que houve na trança (?!)", como se assim ninguém fosse perceber que se tratava de uma alusão às manifestações contestatórias de maio de 1968;
- de trechos deixados em branco nos discos (como na canção "Zebedeu", de Sérgio Ricardo: "e eu encerro a cantoria, pelo amor de Deus,/ mandando vocês à ... pelo Zebedeu!") ou, ao vivo, com os vocalistas mudos e imóveis enquanto os músicos executavam a passagem vetada, etc.
Neste mês em que se comemora o centenário do evento inicial do ciclo, o 1º Festival de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Excelsior no Guarujá (SP) e vencido por Elis Regina com "Arrastão", quero acrescentar que as emissoras de tevê também fizeram aplicadamente a sua parte no serviço sujo.
A TV Globo, p. ex., além de ter pressionado o júri do 3º Festival Internacional da Canção a não premiar "canções que fazem propaganda da guerrilha", ainda apagou a memória (deu sumiço nos vídeos) dos dois momentos mais marcantes dos FIC's, o desabafo de Caetano Veloso contra a platéia que vaiava "É proibido proibir" na eliminatória paulista e a revolta do público do Maracanãzinho na final nacional, quando "Caminhando" foi anunciada só como segunda colocada. A queima de arquivos para satisfazer a pirraça dos fardados foi total. As novas gerações jamais verão o que se passou, tendo de contentar-se com áudios e fotos.
O que houve na TRANÇA, Raulzito?! |
Pior ainda pode ter feito a TV Record, pois não teria sequer a desculpa de submissão a uma força maior: é possível que ela haja assumido a posição de censora por conta própria e motivo fútil. Vale uma recapitulação.
Logo que foi extinto O fino (sucessor de O fino da bossa), fez-se uma tentativa de lançar um programa nos mesmos moldes, mas sem ter Elis Regina como apresentadora exclusiva. Chamava-se Frente Única da Música Popular Brasileira, durou apenas dois meses e o comando era confiado, alternadamente, a Elis Regina e Jair Rodrigues; Chico Buarque e Nara Leão; Gilberto Gil; e Geraldo Vandré.
Este último acabou brigando ruidosamente com o Paulinho Machado de Carvalho, da família proprietária da emissora, a quem acusou de censurar a emissão que ele e sua equipe de produção haviam concebido.
Ouça a versão de estúdio. Ver o registro ao vivo, negativo.
A ruptura se deu bem às vésperas do 3º festival da Record, que tinha "De como um homem perdeu seu cavalo e continuou andando" (ou, simplesmente, "Ventania"), do Vandré, como uma das fortes concorrentes.
Então, a emissora desencadeou uma formidável campanha de desqualificação do dito cujo, com medalhões criticando em entrevistas a "agressividade" de sua composição, mexeriqueiras espalhando que ele teria contratado uma claque para vaiar o Roberto Carlos, etc.
A pressão sobre o júri funcionou e Vandré, que vinha de retumbantes vitórias nos festivais anteriores da Record (com "Disparada") e da Excelsior ("Porta-estandarte"), despencou para a 10ª colocação.
Chocante é constatar que, na edição dos melhores momentos desse festival de 1967, que a Record exibiu quando comemorava o seu 35º aniversário, ficou faltando... exatamente a "Ventania"!!! Algo muito suspeito quando todo o resto se mostra perfeitamente conservado. Terá sido um caso de incêndio seletivo?
Tal trecho do vídeo também não deve ter passado pelas mãos dos diretores do documentário Uma noite em 67, Renato Terra e Ricardo Calil, caso contrário eles certamente o teriam aproveitado, sendo Vandré, como é, uma lenda e uma referência obrigatória da era dos festivais
Já a "Disparada", do festival de 1966, pode ser vista normalmente hoje em dia e é encontrada no Youtube. Ou seja, Jair Rodrigues interpretando Vandré, tudo bem; mas o próprio cantando, tudo mal. Das tantas e tantas vezes em que ele se apresentou na Record, só restou um registro de três míseros minutos de "Aroeira".
A pergunta que não quer calar é: foram funcionários da ditadura que --como os bombeiros daquela distopia célebre de Ray Bradbury, Fahrenheit 451-- vasculharam a emissora à cata dos vídeos do Vandré, ou era a Record que, mesquinhamente, ainda o continuava retaliando tanto tempo depois?
Cadê a "Ventania" que estava aqui? O fósforo queimou?
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