"Morte vela, sentinela sou
do corpo desse meu irmão
do corpo desse meu irmão
que já se foi.
Revejo nesta hora
Revejo nesta hora
tudo que aprendi,
memória não morrerá!
Longe, longe ouço essa voz
que o tempo não vai levar!"
Longe, longe ouço essa voz
que o tempo não vai levar!"
(Fernando Brant e Milton
Nascimento, "Sentinela")
No próximo 1º de abril, ao se completar meio século da pior mentira já enfiada goela dos brasileiros adentro -a quebra da normalidade institucional sob justificativas falaciosas, mergulhando o País nas trevas e barbárie durante mais de duas décadas-, é oportuno lembrarmos o que realmente foi a nada branda ditadura de 1964/85, ainda louvada por seus carrascos impunes, reverenciada por suas repulsivas viúvas e defendida pelos cuervos que o totalitarismo criou.
Como frisou a bela canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, cabe a nós, sobreviventes do pesadelo, o papel de sentinelas do corpo e do sacrifício dos nossos irmãos que já se foram, assegurando-nos de que a memória não morra – mas, pelo contrário, sirva de vacina contra novos surtos da infestação virulenta do despotismo.
Nessa efeméride negativa, o primeiro ponto a se destacar é que a quartelada de 1964 foi o coroamento de uma longa série de articulações e tentativas golpistas, nada tendo de espontâneo nem sendo decorrente de situações conjunturais; estas foram apenas pretextos, não causa.
Há controvérsias sobre se a articulação da UDN com setores das Forças Armadas para derrubar o presidente Getúlio em 1954 desembocaria numa ditadura, caso o suicídio e a carta de Vargas não tivessem virado o jogo. Mas, é incontestável que a ultra-direita vinha há muito tempo tentando usurpar o poder.
Em novembro/1955, uma conspiração de políticos udenistas e militares extremistas tentou contestar o triunfo eleitoral de Juscelino Kubitscheck, mas foi derrotada graças, principalmente, à posição legalista que Teixeira Lott, o ministro da Guerra, assumiu. Um dos golpistas presos: o então tenente-coronel Golbery do Couto e Silva, que viria a ser o formulador da doutrina de Segurança Nacional e eminência parda do ditador Geisel.
Em fevereiro de 1956, duas semanas após a posse de JK, os militares já se insubordinavam contra o governo constitucional, na revolta de Jacareacanga.
Os oficiais da FAB repetiram a dose em outubro de 1959, com a também fracassada revolta de Aragarças.
E, em agosto de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, as Forças Armadas vetaram a posse do vice-presidente João Goulart e iniciaram, juntamente com os conspiradores civis, a constituição de um governo ilegítimo, só voltando atrás diante da resistência do governador Leonel Brizola (RS) e do apoio por ele recebido do comandante do III Exército, gerando a ameaça de uma guerra civil.
Apesar das bravatas de Luiz Carlos Prestes e dos chamados grupos dos 11 brizolistas, inexistia em 1964 uma possibilidade real de revolução socialista. Não houve o alegado "contragolpe preventivo", mas, pura e simplesmente, um golpe para usurpação do poder, meticulosamente tramado e executado com apoio dos EUA, como hoje está mais do que comprovado. Derrubou-se um governo democraticamente constituído, fechou-se o Congresso Nacional, cassaram-se mandatos legítimos, extinguiram-se entidades da sociedade civil, prenderam-se e barbarizaram-se cidadãos.
A esquerda só voltou para valer às ruas em 1968, mas as manifestações de massa foram respondidas com o uso cada vez mais brutal da força, por parte de instâncias da ditadura e dos efetivos paramilitares que atuavam sem freios de nenhuma espécie, promovendo atentados e intimidações.
Até que, com a edição do dantesco AI-5 (que fez do Legislativo e o Judiciário Poderes-fantoches do Executivo, suprimindo os mais elementares direitos dos cidadãos), em dezembro de 1968, a resistência pacífica se tornou inviável. Foi quando a vanguarda armada, insignificante até então, ascendeu ao primeiro plano, acolhendo os militantes que antes se dedicavam aos movimentos de massa.
As organizações guerrilheiras conseguiram surpreender a ditadura no 1º semestre de 1969, mas já no 2º semestre as Forças Armadas começaram a levar vantagem no plano militar, introduzindo novos métodos repressivos e maximizando a prática da tortura, a partir de lições recebidas de oficiais estadunidenses.
Em 1970 os militares assumiram a dianteira também no plano político, aproveitando o boom econômico e a euforia da conquista do tricampeonato mundial de futebol, que lhes trouxeram o apoio da classe média.
Nos anos seguintes, com a guerrilha nos estertores, as Forças Armadas partiram para o extermínio premeditado dos militantes, que, mesmo quando capturados com vida, eram friamente executados.
A Casa da Morte de Petrópolis (RJ) e o assassinato sistemático dos combatentes do Araguaia estão entre as páginas mais vergonhosas da História brasileira – daí a obstinação dos carrascos envergonhados em darem sumiço nos restos mortais de suas vítimas, acrescentando ao genocídio a ocultação de cadáveres.
O milagre brasileiro, fruto da reorganização econômica empreendida pelos ministros Roberto Campos e Octávio Gouveia de Bulhões, bem como de uma enxurrada de investimentos estadunidenses em 1970 (quando aqui entraram tantos dólares quanto nos 10 anos anteriores somados), teve vida curta e em 1974 a maré já virou, ficando muitas contas para as gerações seguintes pagarem.
As ciências, as artes e o pensamento eram cerceados por meio de censura, perseguições policiais e administrativas, pressões políticas e econômicas, bem como dos atentados e espancamentos praticados pelos grupos paramilitares consentidos pela ditadura.
Corrupção, havia tanta quanto agora, mas a imprensa era impedida de noticiar o que acontecia, p. ex., nos projetos faraônicos como a Transamazônica, Ferrovia do Aço, Itaipu e Paulipetro (muitos dos quais malograram).
A arrogância e impunidade com que agiam as forças de segurança causou muitas vítimas inocentes, como o motorista baleado em 1969 apenas por estar passando em alta velocidade diante de um quartel, na madrugada paulistana (o comandante da unidade ainda elogiou o recruta assassino, por ter cumprido fielmente as ordens recebidas!).
Longe de garantirem a segurança da população, os integrantes dos efetivos policiais chegavam até a acumpliciar-se com traficantes, executando seus rivais a pretexto de justiçar bandidos (Esquadrões da Morte).
O aparato repressivo criado para combater a guerrilha propiciava a seus integrantes uma situação privilegiadíssima. Não só recebiam de empresários direitistas vultosas recompensas por cada "subversivo" preso ou morto, como se apossavam de tudo que encontravam de valor com os resistentes. Acostumaram-se a um padrão de vida muito superior ao que sua remuneração normal lhes proporcionaria.
Daí terem resistido encarniçadamente à disposição do ditador Geisel, de desmontar essa engrenagem de terrorismo de estado, no momento em que ela se tornou desnecessária. Mataram pessoas inofensivas como Vladimir Herzog, promoveram atentados contra pessoas e instituições (inclusive o do Riocentro, que, se não tivesse falhado, provocaria um morticínio em larga escala) e chegaram a conspirar contra o próprio Geisel, que foi obrigado a destituir sucessivamente o comandante do II Exército e o ministro do Exército.
A ditadura terminou melancolicamente em 1985, com a economia marcando passo e os cidadãos cada vez mais avessos ao autoritarismo sufocante. Seu último espasmo foi frustrar a vontade popular, negando aos brasileiros o direito de elegerem livremente o presidente da República, ao conseguir evitar a aprovação da emenda das diretas-já.
Foi responsável pela morte de 827 opositores assumidos (os 457 que a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos listou, mais os 370 posteriormente identificados num estudo sobre a repressão política no campo), por um sem-número de genocídios indígenas, pela prisão arbitrária de uns 50 mil brasileiros e pela tortura de, no mínimo, 20 mil cidadãos.
Balanço que pulveriza de vez a falácia de uma inverossímil brandura...
Foi responsável pela morte de 827 opositores assumidos (os 457 que a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos listou, mais os 370 posteriormente identificados num estudo sobre a repressão política no campo), por um sem-número de genocídios indígenas, pela prisão arbitrária de uns 50 mil brasileiros e pela tortura de, no mínimo, 20 mil cidadãos.
Balanço que pulveriza de vez a falácia de uma inverossímil brandura...
2 comentários:
companheiro,uso seu blog de apoio para meu curso,sao relatos historicos,me esclarece muito,tenho certeza que nao houve ditabranda no brasil,e temos orgulho de terem feito resistencia ao golpe,mas como algumas personalidades ja comentaram sobre a època,as facçoes de esquerda que se envolveram em movimentos armados, pós movimento estudantil,lutavam pela democracia ou regime absolutista comunista,e outra pergunta,qual era a rotina dos guerrilheiros,sem falar em treinamentos militares?
Companheiro,
o objetivo da esquerda revolucionária é sempre a tomada de poder. No entanto, num quadro como o de hoje, quem seria insensato a ponto de o tentar?
O que houve nos anos 60 foi a quebra da normalidade institucional sob pretextos espúrios. A partir daí, tudo que de pior poderia ter ocorrido, acabou ocorrendo.
A extrema-direita finca pé na retórica dos grupos guerrilheiros, como se a conquista do poder fosse só uma questão de QUERER. Mas, quem realmente PODIA levar suas definições estratégicas a bom termo? Na verdade, nenhum de nós. Jamais tivemos poderio suficiente para alcançar a vitória.
O certo é que a luta armada era secundária e insignificante em 1968, mas a radicalização da ditadura -sempre utilizando força além da necessária, sempre avançando na direção do totalitarismo- foi minando cada vez mais a possibilidade da luta política.
Até que o AI-5 a tornou simplesmente suicida. Foi quando a maioria dos quadros pegou em armas.
Então, mais do que aquilo que estava escrito em nossos programas (os programas dos partidos atuais são efetivamente cumpridos? Os nossos também não eram...), o que realmente importava era a existência de totalitários enquistados no poder, que tudo fizeram para direcionar os acontecimentos no sentido o arbítrio absoluto; e a EXTREMA DESIGUALDADE DE FORÇAS em que sempre estivemos.
Finalmente, quanto aos programas, cada um tinha o seu. Havia stalinistas, trotskistas, guevaristas, maoístas, adeptos da Teologia da Libertação, trabalhistas, defensores dos direitos humanos e da Constituição, etc., etc., etc.
Um verdadeiro saco de gatos. Por alto, pelo menos 50 siglas diferentes, com propostas diferentes, estratégias diferentes, táticas diferentes. O único elo existente entre todos esses agrupamentos era o repúdio à bestialidade ditatorial.
Finalmente, quanto à nossa rotina, creio que está bem detalhada neste artigo:
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com.br/2009/12/ai-541-anos-o-cotidiano-de-um.html
Abs.
Postar um comentário